"A Lã e a Neve", do Ferreira de Castro, um "romance proletário" passado na Covilhã - , teve a sua primeira edição em 1947, durante a II Grande Guerra, e lê-lo hoje é uma máquina do tempo: pelo que descreve, pela linguagem usada, pelos sentimentos contidos, pelos personagens que nos ressoam a familiares distantes e - é aí que eu quero chegar! - pela desigualdade social tão fortemente hierarquizada e pelo consequente desamparo em que as pessoas viviam.
Um desamparo a que nos arriscamos a viver cada vez mais, caso as arcaicas e interesseiras teses liberais se reforcem - ainda mais! - no país. A história começa asssim:
O jovem Horácio volta alegre a casa, a uma aldeia de Manteigas, depois de ter feito a tropa. E vem cheio de ideias. Viu Lisboa e o Estoril, as casas, os jardins, a limpeza das ruas e não lhe agradam mais como se vive na sua terra. O escritor é exímio:
Casas "negregosas, velhentas, colavam-se umas às outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais baratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzito quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas do paleio com as vizinhas".
Horácio tenta convencer a noiva Idalina a adiar o casamento para que possam viver o seu sonho. Quer deixar o pastoreio que lhe rende pouco e que o faz estar meses afastado, sozinho pela serra de neve, com os animais. Quer fazer-se empregar numa fábrica de lanifícios da Covilhã para ganhar mais e conseguir juntar dinheiro para terem uma casa, limpa, com quintal, onde possam crescer os filhos saudáveis. Mas Idalina tem medo que o casamento se adie para sempre. Não vê como vai ele arranjar esse dinheiro. Horácio insiste e acha que convenceu a Idalina. Mas o sonho mal limado esbarra em obstáculos.
Fala com o padre, pede-lhe ajuda, mas as fábricas não estão a abrir as portas. Horácio já tem mais de 20 anos e ser aprendiz não é tarefa de mancebo. Além do mais, as fábricas estão limitadas a contratar até 20% de aprendizes. Está tudo cheio. Sai acabrunhado. Encontra o seu parceiro que o deixa pensativo. Ele não trocaria a liberdade pela fábrica, fechado no fio das horas, sem fim. Mas na arte de pastoreio também não se faz fortuna. Rebanhos próprios pouco se aguentam. É uma dor de alma, mas tem de se vender ovelhas para comprar cabras que tudo comem.
Horácio vai à Covilhã que já a sente comesinha face a Lisboa, e a sua esperança esvazia-se. A mesma história das fábricas sem empregos. Horácio amaldiçoa a escolha para padrinho feita pelos pais. Outro galo cantaria se fosse aquele outro com os seus terrenos comprados aos camponeses em dificuldades e que montou em toda a região fábricas cheias de operários, onde os seus apadrinhados têm sempre lugar porque quando há greves, os apadrinhados não alinham. Tudo lhe parece afundar-se. E se isso não bastasse, os pais estão contra o seu sonho. Lá muito a custo contam-lhe porquê.
Na sua ausência, o pai adoeceu e tiveram de pedir dinheiro emprestado para o tratar. Não conseguiram hipotecar a propriedade. E a última pessoa a quem pediram foi ao patrão do Horácio, o dono dos rebanhos, a quem garantiram que o que ele ganhasse era para pagar a dívida contraída. Horácio vê-se assim obrigado a ter de trabalhar sem ganhar. O pai ainda lhe propõe que se venda a pequena courela que os pais tinham: "Assim como assim, era para ti". Horácio não aceita. Mas fica a roer-se. E nada pode dizer por causa desse segredo dos pais. Quer contar a Idalina, mas não pode.
Idalina faz perguntas, mas a medo. Fica triste, em silêncio. Conta aos pais que intervêm, como se o rapaz quisesse esquecer o casório. Filho e pais prometem que nada se altera, sem explicar o que se passa. Mesmo tendo estado longe de Idalina durante todo o tempo da tropa, Horácio decide regressar quanto antes ao pastoreio. Quanto mais cedo pagar a dívida, melhor.
Veste o seu capote de pastor, assobia ao cão que vem todo feliz ter com ele. A felicidade do cão agredi-o e Horácio atira-lhe uma pedra à pata que o deixa a mancar. Nunca mais o cão saltará feliz à sua frente. Horácio vai ter com a Idalina ao campo onde ela está a sachar. É uma cena de filme.
Ela triste porque mal esteve com ele e ele a justificar-se que quer acabar com a dependência do seu patrão, desejoso de lhe dizer o que vai na alma, mas não lhe sai. E o tempo silencioso, de poucas palavras, marcado pelo som ritmado das enxadas na terra, como um relógio a empurrar o encontro para o fim porque ela foi contratada para sachar e não para estar ali a conversar. Ele afasta-se com o cão para meses de invernia.
O que ressalta desta história? Para mim, a ausência do papel interventivo do Estado.
Um Estado capaz de conceder a justiça social onde reina a primária desigualdade, o regime imperial de classe que advém do domínio da propriedade e da propriedade dos instrumentos de produção. Os pais de Horácio teriam tido uma assistência médica universal e - mesmo que fosse! - "tendencialmente gratuita", paga pelos impostos que incidiriam sobre quem mais tem, e não precisariam de se endividar ou de aprisionar o futuro do seu filho, obrigado agora a trabalhar sem nada receber para si, para pagar uma dívida estúpida. Pugnar hoje pela redução da "carga fiscal", cheira a pedir a desobrigação por parte dos mais ricos de contribuir em prol dos mais pobres. Um regresso à selvajaria.
Para ter um emprego do seu agrado, os trabalhadores pobres não teriam de esperar reverencialmente pelo apoio impotente do padre da aldeia ou do beneplácito interesseiro dos padrinhos da terra, nem ter de condicionar a sua opinião ao emprego garantido pelos padrinhos. Hoje, os trabalhadores inscrevem-se em agências de trabalho temporário ou em plataformas que os transformam em trabalhadores por conta própria, isolados, trabalhadores desmaterializados, erxplorados até ao tutano, a pensar que estão sozinhos na sua vida. Os serviços públicos de emprego foram privatizados e os empregos deixados ao abandono por uma autoridade pública de regulação ou mesmo judicial que deixam que a lei que não seja aplicada (consultar o Código de Trabalho a partir do artigo 139º sobre as modalidades de contrato de trabalho).
Resta esperar que os representantes do Estado de hoje saibam governar no sentido de impedir que a vida de trabalho não seja uma vida de pobreza e que haja empregos para quem queira trabalhar (no 4º trimestre de 2021, a taxa de subutilização do trabalho ainda rondava os 12%) e ter uma vida que possa garantir uma casa condigna, mesmo que a referência ainda seja a ilusória zona senhorial do Estoril, já reconstruída e reforçada por todos os donos que fingem hoje nada se lembrar do passado em que foram reis de todos, ao mesmo tempo que apoiam a liberdade sem intervenção do Estado, como se fosse uma moda moderna.
Depois, conto-lhes o que aconteceu ao Horácio.
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