* Filipe Tourais
Filipe Tourais está 📷a sentir-se positivo. 2022 08 24
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Bolas, que isto agora é tudo em grande. Há pouco, como faço sempre ao pequeno-almoço, liguei a rádio. Estava a dar aquele programa da rádio pública que nasceu quando o Passos Coelho convidou a malta jovem toda a emigrar e surgiu a necessidade de dourar a pílula, uma rubrica de entrevista a casos de sucesso, sempre de sucesso, de portugueses que resolveram o seu problema de falta de oportunidades, que deixou de ser seu quando se piraram daqui.
Ali ninguém é emigrante. Relatam-se “experiências internacionais”, nada a ver com ser emigrante e ter que emigrar porque o país ficou como ficou, que também não é tema abordado. Quem está mal que faça como os entrevistados, todos de sucesso, não há que ter medo, que seja “resiliente”, agora toda a gente é, e parta “à aventura”. Depois é questão de esperar por um contacto para contar na rádio de viva voz as suas “experiências internacionais” de felicidade absoluta, sem nunca falar dos que ficam nem do país maravilhoso que deixaram para trás e lhes desperta saudades várias, a família, a gastronomia única que temos, o sol, as paisagens, os pasteis de nata, essas coisas que depois os avós gostam de ouvir aos netinhos que este país avançado até pôs a falar na rádio.
O programa é todo ele “pela positiva. Não se diz “mal” de nada e é muito moderno e cosmopolita até na gramática. Os entrevistados falam “desde” ou “a partir” das cidades onde estão a viver. No tempo em que havia emigrantes é que se mandavam beijos de Paris e não a partir de Paris ou desde Paris. Evoluímos tanto, caramba.
Peço desculpa. Caramba, não, agora diz-se brutal, fantástico, incrível. A expressão “caramba” tem uma genética muito negativa de inconformismo, perplexidade e, em casos extremos a evitar pelo seu potencial de perturbação da normalidade, até de protesto. E toda a gente sabe que as coisas são como são, que vivemos na mais absoluta normalidade apesar da resiliência que às vezes as situações nos impõem.
No bloco noticioso que passou um pouco antes, falaram do caso de uma resiliente. Mais uma. Uma grávida que foi obrigada a fazer 150 Kms em 5 horas de ambulância para dar à luz devido ao dilúvio de encerramentos de urgências obstétricas que está a afectar a região da grande Lisboa e, como qualquer dilúvio que se dê ao respeito, decerto estará relacionado com aquilo das alterações climáticas e assim. O episódio conta-se em duas penadas. A rapariga fez o trajecto por duas vezes. Primeiro, foi encaminhada para o Hospital de Santarém. Azar nítido. Garantiram ao pessoal da ambulância que havia obstetra mas esqueceram-se que não havia anestesista. Enfim. Nada que não se resolva. Teve que ser reencaminhada para as Caldas da Rainha e foi aí que a Benedita finalmente nasceu.
Aqui, perdoem, mas parece-me um caso flagrante de falta de pontaria. Faziam mais uns quilómetros e a Benedita teria nascido na Benedita. Faria imensamente mais sentido uma Benedita nascer na Benedita do que ter nascido no Seixal, onde reside a mãe e onde não nasceu por mera sorte. Bom, se houvesse obstetra e se houvesse anestesista na Benedita. Há "casos pontuais" em que felizmente não há. Daí ter feito a viagem que a salvou de nascer no Seixal.
Coitadinha da Benedita. Se isto continuar a descambar ao ritmo a que está a descambar, vai ter que ser mesmo muito resiliente e partir para onde possa enviar beijos desde ou a partir do palco da sua “experiência internacional”. Ela depois conta-nos tudo na rádio. Eu só não me conformo com aquilo de não a terem levado à Benedita para nascer Benedita. Ó pá. Não se fazia. Andavam apenas mais 19,3 Kms e a notícia "positiva" da Benedita da Benedita faria muita gente feliz. A vida pode ser tão simples. Um gajo tem é que ser positivo e abster-se de reparar que a filha mais pequenina da normalidade também já partiu para a sua experiência internacional. Não emigrou, atenção. A palavra acho que até já nem existe.
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