sábado, 9 de setembro de 2023

José Manuel Ribeiro - Constituição: o que se faz quando o Presidente mete o pé na argola?


Admitindo que não compete a um primeiro-ministro avaliar a constitucionalidade dos pronunciamentos do Presidente, pergunta-se: a quem cabe então avaliar tal coisa?

A atuação de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República está, nestes dias, no centro da discussão política. Desde logo, pelo facto de os seus atos recentes serem discutidos como intervenções de “um Presidente de fação”. Mas também por as suas intervenções não se enquadrarem no que a Constituição da República Portuguesa estabelece quanto aos poderes e competências do Presidente da República.

Na terça-feira, interrogado pelos jornalistas antes do Conselho de Estado, o primeiro-ministro António Costa recusou-se a comentar se o Presidente da República tem ultrapassado as competências que lhe estão cometidas. Advertiu, contudo, que “as coisas correm sempre mal quando há confusão de papéis”. E concluiu: “Esse é um comentário que não me compete a mim fazer”.

Admitindo que não compete a um primeiro-ministro avaliar a constitucionalidade dos pronunciamentos do Presidente, pergunta-se: a quem cabe então avaliar tal coisa? A questão inversa tem uma resposta clara dada pela Constituição e, de resto, regularmente praticada desde 1983: sempre que o Presidente tem dúvidas sobre a constitucionalidade das intervenções do Governo dirige-se ao Tribunal Constitucional.

O problema surge quando o Presidente da República age de tal forma que os seus atos ou palavras saem dos domínios e competências que a Constituição lhe atribui. O que é que se faz? A quem é que se dirige o pedido para a análise sucessiva da constitucionalidade da intervenção presidencial? Que órgão tem competência constitucional para essa avaliação? E que consequências se poderão extrair da constatação jurídica que o Presidente violou a Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir?

Esta não é uma questão meramente teórica, como se depreende das perguntas dos jornalistas ao primeiro-ministro no Montijo. Esta é uma questão que palavras e atos recentes de Marcelo Rebelo de Sousa levantam e, por consequência, confrontam a organização do sistema político inscrita na Constituição da República Portuguesa com uma lacuna.

As declarações de Marcelo Rebelo de Sousa em Kiev sobre a entrada da Ucrânia na União Europeia, ou as suas declarações em São Tomé e Príncipe sobre decisões da CPLP antes de estas terem tido lugar, e antes de o Governo se ter pronunciado sobre elas, são dois exemplos dessa lacuna. Nada da “Competência nas relações internacionais” do Presidente da República inscrita da Constituição (Artigo 135.º) parece autorizar Marcelo Rebelo de Sousa a falar como falou.

Do mesmo modo, a ameaça feita na Festa do Livro em Belém quanto ao pacote Mais Habitação (não deixar passar a regulamentação que tem de ir às suas mãos) configura um posicionamento “a priori” de contra-governo que parece extravasar, e ofender, o espírito e a letra da Constituição.

Voltamos ao problema da lacuna na Constituição: quem e a que instância se poderá pedir, ou exigir, que avalie a constitucionalidade dos atos do Presidente da República? Se a Constituição não o prevê, os comportamentos de Marcelo Rebelo de Sousa exigem que passe a prevê-lo em futura revisão. Não só para que o Tribunal Constitucional passe a ter a competência explícita de o fazer, mas, também, para que, para além do “Sim” ou do “Não” sobre a conformidade do Presidente com a lei suprema, se estabeleçam consequências para as respostas negativas. Acórdãos que funcionem como repreensões escritas – por exemplo – ou, em casos limite, a perda de mandato.

A lacuna constitucional que hoje verificamos é tanto mais flagrante quanto o comedimento de presidentes anteriores a manteve indetetável ao longo de décadas. O facto é que, mesmo sem juízos de valor sobre a ação política de Marcelo Rebelo de Sousa, este Presidente tem sido um agente subversivo do equilíbrio semipresidencialista com que o sistema funcionou ao longo de quatro décadas.

Esta subversão exige, para reequilibrar no sistema os mecanismos de “checks and balances”, uma revisão constitucional. Até que tal suceda, o país terá de viver com um Presidente que mina sistematicamente a autoridade democrática do órgão de soberania executivo. Uma forma clássica de populismo, como sabemos.

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