domingo, 3 de setembro de 2023

A FOME vista por Galeano

* Eduardo Galeano


 UMA COLÓNIA SUPERPOVOADA

Não saía fumo das chaminés. Em 1850, depois de quatro anos de fome e de pragas, os campos da Irlanda despovoaram-se, e pouco a pouco as casas desabitadas ruíram. Os habitantes tinham partido para o cemitério ou para os portos da América do Norte.

A terra nem batatas dava. Só a produção de loucos crescia. O manicómio de Dublin, pago por Jonathan Swift, tinha noventa internos quando foi inaugurado. Um século depois, havia mais de três mil.

Durante a fome, Londres enviou alguma ajuda de emergência, mas a caridade acabou passados alguns meses. O império decidiu não continuar a socorrer esta colónia incómoda. Conforme explicou o primeiro-ministro, lorde Russell, o ingrato povo irlandês pagava esta generosidade com rebeliões e difamações e isso caía muito mal à opinião pública.

E Charles Trevelyan, alto funcionário encarregado da crise irlandesa, atribuiu a fome à Divina Providência. A Irlanda tinha a mais alta densidade demográfica de toda a Europa, e uma vez que o excesso de população não podia ser evitado pelos homens, Deus solucionava-o em toda a sua sabedoria, de forma imprevista, inesperada, mas com grande eficácia.



DESASTRES NATURAIS

Um deserto vazio de passos e de vozes, apenas pó fustigado pelo vento.

Muitos chineses se enforcam, antes que a fome os leve a matar ou antes que a fome os mate.

Os triunfantes mercadores da guerra do ópio fundam em Londres o Fundo de Socorro para a Fome na China.

Esta instituição de caridade promete evangelizar o país pagão por via digestiva: do Céu choverão alimentos, enviados por Jesus.

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OUTROS DESASTRES NATURAIS

Em 1879, depois de três Invernos sem chuva, há menos nove milhões de indianos.

A culpa é da natureza:

– São desastres naturais – dizem os que sabem.

Mas na Índia, nesses anos atrozes, o mercado castiga mais do que a seca.

Como lei do mercado, a liberdade oprime. A liberdade de comércio, que obriga a vender, proíbe comer.

A Índia é uma plantação colonial, não uma misericórdia. O mercado manda. Sábia é a sua mão invisível, que faz e desfaz; e ninguém tem razão para corrigi-la.

O governo britânico limita-se a ajudar a morrer uns quantos moribundos, nos seus campos de trabalho chamados Campos de Socorro, e a exigir os impostos que os camponeses não conseguem pagar. Os camponeses perdem as suas terras, que se vendem ao desbarato; e ao desbarato se vendem os braços que nelas trabalham, enquanto a escassez eleva até às nuvens o preço  dos grãos que os empresários açambarcam.

Os exportadores vendem mais do que nunca. Montanhas de trigo e de arroz são despejadas nos portos de Londres e de Liverpool. A Índia, colónia esfomeada, não come, mas dá de comer. Os britânicos comem a fome dos indianos.

É muito cotada no mercado esta mercadoria chamada fome, que multiplica as oportunidades de investimento, reduz os custos de produção e aumenta os preços dos produtos.

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O PAI DA CRUZ VERMELHA

A Cruz Vermelha nasceu em Genebra, fruto da iniciativa de alguns banqueiros suíços, para socorrer os feridos abandonados pelas guerras nos campos de batalha.

Gustave Moynier, o primeiro presidente, encabeçou o Comité Internacional durante mais de quarenta anos. Ele explicava a Cruz Vermelha, instituição inspirada na moral evangélica era bem recebida nos países civilizados, mas deparava com muita ingratidão nos países colonizados.

— A compaixão — escreveu — é desconhecida por aquelas tribos selvagens, que praticam o canibalismo. Este sentimento é-lhes tão estranho que as suas línguas não têm nenhuma palavra para expressar essa ideia.

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CHURCHILL

Todo-poderosa era a influência dos herdeiros de lorde Marlborough, conhecido como Mambru; graças à sua família, o jovem Winston Churchill conseguiu entrar num dos batalhões de lanceiros que iam combater no Sudão.

Ele foi soldado e cronista da batalha de Omdurman, em 1898, nos arredores de Cartum, nas margens do rio Nilo.

A coroa britânica estava a criar um corredor de colónias que atravessasse África do Cairo, a norte, a Cidade do Cabo, no extremo sul. A conquista do Sudão era fundamental para esse projecto de expansão imperial, que Londres explicava dizendo:

— Estamos a civilizar África através do comércio,

em vez de confessar:

— Estamos a comercializar África através da civilização.

Esta missão redentora abria caminho a ferro e fogo. Como os raquíticos cérebros africanos não conseguiam compreendê-la, ninguém se dava ao trabalho de lhes pedir opinião.

Nos bombardeamentos da cidade de Omdurman, reconheceu Churchill, morreu um grande número de infelizes não-combatentes, vítimas do que passou a chamar-se, um século depois, danos colaterais. Mas, finalmente e segundo as suas palavras, as armas imperiais obtiveram o triunfo mais eloquente jamais alcançado pelas armas da ciência contra as armas da barbárie, a derrota do exército selvagem mais poderoso e mais bem armado alguma vez amotinado contra um moderno poder europeu.

De acordo com os dados oficiais dos vencedores, este foi o resultado da batalha de Omdurman:

nas tropas civilizadas, cerca de dois por cento de baixas;

nas tropas selvagens, cerca de noventa por cento de baixas.

(Eduardo Galeano, “Espelhos – Uma História Quase Universal. Antígona, 2018.)

https://temposdecolera.blogs.sapo.pt/a-fome-vista-por-galeano-119778?fbclid=IwAR18acpxl2-IGfXzyZIMaSPGjS_ND5k_qJoAl6j8pDX1MgsI2GA3mfyi1WI

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