SEMANÁRIO Expresso #2655 - 15/9/23 Estado da Noção -
* FRANCISCO LOUÇÃ
A imersão na
colmeia digital já conseguiu resultados potentes. A vida virtual é uma
ansiedade, altera-nos a noção de tempo, promove a multiplicidade de tarefas
Imagine
que no Natal venha a estar disponível uma aplicação que lhe permite fazer a sua
própria música a partir de uma mistura de alguns acordes de Sérgio Godinho e
José Afonso, poemas da Garota Não e de Fausto Bordalo Dias e uns arranjos de
José Mário Branco. Tudo possível ao carregar simplesmente num botão. Haverá
direitos de autor que foram extorquidos? Nada daquilo será de sua lavra, mas
boa sorte para quem tentar disputar em tribunal a precedência artística, será
dificilmente identificável a inspiração de cada uma das componentes da mistura
— e a aplicação pode fazer duas diferentes com os mesmos ingredientes em
segundos. A indústria musical pode transmutar-se no futuro imediato e a
produção artística pode esgotar-se nesse processo. Esta possibilidade suscita
várias questões difíceis.
PRODUÇÃO E
MEIOS DE PRODUÇÃO
A primeira
questão é que o meio de produção é novo. A música que sairá dessa aplicação
será, ainda assim, um produto cultural, mas é uma nova forma de cultura, que
eleva o pastiche, além do roubo da propriedade intelectual, a um novo patamar.
A arte, neste caso, será só o simulacro da arte. Então, produzir-se-á mais não
se produzindo nada e a cultura será uma forma de incultura e a inspiração uma
artimanha. Para combater este risco, diversos escritores processaram as
empresas que oferecem aplicações de inteligência artificial — e há hoje uma
corrida nesse mercado — por terem treinado os seus algoritmos com textos seus
sem autorização. Piratearam para ensinar um programa a piratear.
As implicações
deste sistema são gerais. Antes mesmo da aplicação que estou a imaginar que
finja que somos bons músicos, já há uma que permite fingir que se é um
escritor, como o ChatGPT. Há já literatura escrita deste modo nas livrarias. E
há um pânico nas escolas entre quem se tinha empenhado em estimular a
criatividade, pedindo aos alunos que escrevessem ensaios, investigassem e
fundamentassem uma opinião, em vez do exame de cruzes. Tudo isso acabou, passou
a ser indistinguível um trabalho sério e um ficheiro cuspido por um algoritmo.
O sistema de ensino readaptar-se-á recuando ao tempo da chamada oral.
PRODUÇÃO E
REGULAÇÃO
A segunda
questão é o próprio modo de produção. A sociedade moderna regula a forma de
construir um automóvel ou outra máquina: há materiais aceitáveis e outros
recusados, os processos são patenteados e verificáveis. Em contrapartida,
produzem-se agora algoritmos inverificáveis, o meio de produção cultural do
século XXI. Aplicados à criação de artefactos, sejam textos, ou músicas, ou
jogos, o seu modo de tomar decisões não é escrutinável: é como se fôssemos proibidos
de saber como funciona a caixa de velocidades do automóvel.
O que tem sido
mais discutido é como este poder algorítmico gera comunidades autocentradas e
recompensa a escalada da agressividade emocional, de que os discursos de ódio
são felizes utilizadores. De facto, a hipercomunicação impede os modos
conhecidos de intermediação, supera em rapidez qualquer tentativa de
confirmação ou desmentido e é direcionável por uma caixa negra que, ao
contrário dos outros meios de produção que existem na sociedade moderna, é
extralegal, e, portanto, está acima do alcance da regulação. Mas há outra das
suas facetas que começa a merecer atenção: a ambição de nos absorver num mundo
virtual que ocupe a nossa vida desde crianças (no Reino Unido, um quarto das
crianças até aos quatro anos tem o seu aparelho para ver streaming). O projeto
Metaverso esmoreceu, mas foi só o primeiro lance deste jogo.
As
aplicações que parecem oferecer-nos um produto cultural estão de facto a mudar
o nosso padrão de atenção e a nossa capacidade de expressão
E, na verdade,
a imersão na colmeia digital já conseguiu resultados potentes. A vida virtual é
uma ansiedade, altera-nos a noção de tempo, promove a multiplicidade de tarefas
e impõe a necessidade de uma sociabilidade reconfortante pela trivialização da comunicação
permanente. Na base dessa transição está a colonização da nossa capacidade de
leitura e de concentração. A University College de Londres concluiu agora um
estudo de cinco anos sobre os hábitos de leitura a partir do registo das
pesquisas feitas por milhões de utilizadores em duas grandes bibliotecas, que
oferecem acesso a jornais, textos online e outros recursos digitais. A
conclusão é esmagadora: os leitores já não leem, saltitam, ou seja, são
conduzidos pelo algoritmo. Usam uma página ou duas de uma fonte, seguem para
outro texto, e isto “são sinais de uma nova forma de leitura, em que os
utilizadores buscam horizontalmente através de títulos e procuram resultados
imediatos. É como se estivessem online para evitar ler no sentido tradicional”,
dizem os autores do estudo.
Por esta razão,
a Suécia vai deixar de usar manuais escolares online, pois as crianças precisam
de aprender a ler um livro. O diretor de Educação da OCDE acrescenta que
“quanto maior e mais frequente for a utilização da tecnologia digital na sala
de aula, pior será o desempenho dos alunos [até] no teste de leitura digital”.
Assim, o meio de produção condiciona a nossa forma de aprender e de pensar, não
só na formatação da linguagem como também da nossa memória e imaginação. As
aplicações que parecem oferecer-nos um produto cultural, enganando os nossos
amigos, quanto às nossas capacidades musicais, ou os professores, quanto ao
estudo, estão de facto a mudar o nosso padrão de atenção e a nossa capacidade
de expressão. A inteligência artificial está a mudar a humanidade, tornando-a
mais estúpida.
Sem comentários:
Enviar um comentário