CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
Heidegger sobre a cibernética: “Tudo funciona, é precisamente esse o problema. Tudo funciona e cada novo funcionamento subtrai cada vez mais o homem à terra”.
22 de Setembro de 2023
As histórias que mostram os caprichos da reversibilidade são sempre muito interessantes: o cão põe-se a salivar porque está condicionado pelo dono, pelos gestos e actos que o animal reconhece como o protocolo que anuncia a sua refeição, ou é o cão que aprendeu a condicionar o dono, ao perceber que, salivando, obtinha dele a resposta desejada? Quem tem animais domésticos conhece muito bem este mecanismo: tornamo-nos amostras de uma experiência pavloviana.
A inteligência artificial, ao atingir a rapidez e o grau de sofisticação dos chatbots, faz-nos perceber que é preciso tornar reversível o modo tradicional de entender a relação entre os computadores e o cérebro: não é o computador que imita a operação do pensamento humano, mas é o pensamento que imita o computador. E a vida imita a informática.
Entramos assim no coração de uma ontologia digital: a informática já é um mundo em si, uma segunda natureza, mais próxima de um organismo, dotado de um princípio em si mesmo, do que de uma mecânica funcional. A informática parece dotada não apenas de uma inteligência, mas de um “eu” reflexivo e de uma vontade. Há quem ache isto maravilhoso; há quem ache assustador; há quem ache as duas coisas simultaneamente; há a tecnofilia e a tecnofobia, ambas em doses superlativas; há a celebração da inteligência e a convicção de que a estupidez cresce, como o deserto. Tudo isto dá forma ao mundo em que vivemos.
Na célebre entrevista que deu em 1966, dez anos antes de morrer, à revista Der Spiegel, o mais ilustre e influente tecnófobo do século XX, Martin Heidegger, interrogado sobre o fim da filosofia e sobre o que viria ocupar o lugar dela, respondeu: “a cibernética”. E, ao argumento da eficaz funcionalidade de que a cibernética dava provas, Heidegger respondeu: “Tudo funciona, é precisamente esse o problema. Tudo funciona e cada novo funcionamento subtrai cada vez mais o homem à terra”.
Uma coisa tinha ele intuído com grande lucidez: que estávamos antrar numa época “pós” (que a informática, mais do que a cibernética, veio inaugurar), ainda que na altura estivesse distante este nosso mundo completamente produzido sob a condição informática. Poucos anos depois, o “pós” iria conhecer uma grande variedade de declinações e tornar-se um emblema epocal. De todas essas declinações, a mais popular foi a do fim da história, compreendida como a última palavra de uma democracia liberal instituída universalmente e, portanto, sem a contraposição de um outro horizonte. Tratava-se de uma interpretação, em chave actual e política, da ideia hegeliana de “fim da história”, do momento em que se realizaria o espírito absoluto e toda a negatividade estaria suprimida.
Sabemos muito bem que esta ideia de fim da história, actualizada como triunfo universal do modelo da democracia liberal, depois da queda do Muro de Berlim, foi convicção de pouca dura e não houve tese tão desmentida por tanta gente e com tanta insistência como esta. Parece que o fim da história se parece muito mais com a sociedade da informação, com a hegemonia da inteligência artificial. Talvez a intuição de Heidegger se tenha revelado muito mais certeira do que se pensava. E o que é que se pensava? Que ele, levando a sua tecnofobia ao exagero, tinha apontado a cibernética como aquilo que vinha destronar a filosofia.
Ora, estamos hoje a assistir a um coro quase universal (onde se juntam tecnófobos que não ousam dizer o seu nome aos que manifestam razoáveis e lúcidos temores que só os insensatos não têm) que se ergue ante a iminência de não ser apenas a filosofia a ser destronada. Artistas, escritores, tradutores, actores: todos se sentem hoje à beira de serem destronados e de os seus bons ofícios se tornarem excedentários. Esta nova condição epocal, sendo a mais próxima que já alguma vez nos encontrámos da situação “pós”, tem uma capacidade formadora: institui uma nova forma de vida. Afinal, o fim da história não é aquilo que se pensava. Há até quem fale de uma “informática celeste” (é o caso do filósofo francês Mark Alizart, que tem um livro com esse título) porque ela determina a “situação espiritual do nosso tempo”, como se dizia nos inícios do século passado.
Já está em curso nalgumas escolas (e noutras está em estudo) a proibição do uso do telemóvel pelos alunos porque se quer evitar (vá-se lá saber como!) que a informatização do humano seja o correspondente simétrico da humanização dos computadores, das máquinas que já começam a dizer “Eu”, que se fabricam a elas próprias e produzem uma imagem de si. Agora sim, chegou o admirável mundo novo.
Livro de recitações
Nos manuais elementares de jornalismo, diz-se que não é notícia um cão morder num homem. Mas se um ninho de vespas desfere um ataque a um bando de estudantes nas suas negras cerimónias iniciáticas, de tal modo que obriga a intervenção dos bombeiros, do Instituto Nacional de Emergência Médica, da PSP e do Serviço Municipal de Protecção Civil, como relata o Expresso, então temos notícia e até motivo para uma proposta modesta: o doutoramento honoris causa, já, para as inteligentes vespas, por terem sabotado as praxes como nunca antes ninguém tinha conseguido. É bem-sabido que nem tudo nas praxes é inteligente, alegre e indolor. Mas o saber destes insectos, no modo como leram e levaram à letra o enunciado estudantil da praxe, merece o louvor e o reconhecimento da instituição da qual se exige a tarefa de “inocular” os alunos com o seu “veneno”, que, como todo o pharmakon, cura e mata.
https://www.publico.pt/2023/09/22/culturaipsilon/cronica/computador-espirito-absoluto-2063912
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