quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Natália Correia - Poesia

*   Natália Correia 


COSMOCÓPULA

I

Membro a pino

dia é macho

submarino

é entre coxas

teu mergulho

vicio de ostras.

II

O corpo é praia a boca é a nascente

e é na vulva que a areia é mais sedenta

poro a poro vou sendo o curso de água

da tua língua demasiada e lenta

dentes e unhas rebentam como pinhas

de carnívoras plantas te é meu ventre

abro-te as coxas e deixo-te crescer

duro e cheiroso como o aloendro.

(Inédito)

(“Antologia de Poesia Portuguesa – Erótica e Satírica” de Natália Correia. Ponto de Fuga, 2019)

*

DA CLARA À NEGRA CIÊNCIA

Uma laranja cai

E o chão impede

Que ela infinitamente caia.

Impedimento

Ou o invento

De uma ciência

Que já foi gaya

E agora é triste-

Mente astronómica.

Raios a partam

A bomba atómica!

*

DURANTE O DEBATE DA LEI CONTRA O ALCOOLISMO

Num pais de beberrões

Em que reina o velho Baco

Se nos tiram os canjirões

Ficamos feitos num caco.

 

E querem os deputados

Com um ar de beatério

Que fiquemos desmamados

Quais anjos num baptistério.

 

Se o verde e o tinto são

As cores da nossa bandeira,

Ai, lá se vai a nação

Se acabar a bebedeira.

 

De abstemia não se faça

A lex neste plenário

Que o direito à vinhaça

Esse é consuetudinário.

*

NO SERVO ANINHA—SE O DÉSPOTA

A um deputado do PSD, ferozmente anti-comunista que, no seu fanatismo partidário, batia o mais grosseiro estalinista

Do pequeno-burguês tem, na medula,

A vérmina sabujo-partidária.

A fossanguice teimosa tem da mula

Em estalinismo de instrução primária.

 

Só perante o patrão é mole, é lula

Sua mínima alma funcionária.

Mas com a vara na mão, o vilão pula

E dá ordens em couces de alimária.

 

Comigo tal marmanjo baixe a bola

Que a palmatória desse mestre-escola

Eu lha faço engolir pelo bocal

 

Por onde expulsa asneiras a vapor;

Pois versos não me faltam nem humor

Para, com sátiras, forrar este animal.

*

«O acto sexual é para fazer filhos»

 disse ele

Um poema de Natália Correia

A João Morgado (CDS)

 

«O acto sexual é para ter filhos» — disse, com toda a boçalidade, o deputado do CDS no debate anteontem sobre a legalização do aborto. A resposta em poema, que ontem fazia rir todas as bancadas parlamentares, veio de Natália Correia. Aqui fica:

 

«Já que o coito — diz Morgado —

tem como fim cristalino,

preciso e imaculado

fazer menina ou menino;

e cada vez que o varão

sexual petisco manduca,

temos na procriação

prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,

lógica é a conclusão

de que o viril instrumento

só usou — parca ração! ­—

uma vez. E se a função

faz o órgão — diz o ditado —

consumada essa excepção,

ficou capado o Morgado.»

in Diário de Lisboa, 5 de Abril de 1982

*

UMA SÓ VOZ DE INUMERÁVEIS BOCAS?

De Eva a mulher astronauta

vivo todas as idades,

um fausto de lua lauta

no brilho das brevidades.

 

Canta-me um louco na pauta,

demónios e divindades

compartilham essa flauta

das minhas variedades.

 

O universo inventado

de noutros me perceber.

Tanto tempo utilizado

numa manhã, por nascer!

 

Sujeitos a estranhas leis

com a sua loucura a sós

solitários como os reis

os poetas dizem: nós.

 

E pela mesma magia

que ainda ninguém entendeu,

no côncavo da poesia

um deus que falta diz: eu.

 (“O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II”, Natália Correia. Projornal, 1993)


https://temposdecolera.blogs.sapo.pt/natalia-correia-cem-anos-121181

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