* Margarita Correia
04 Setembro 2023
Muito se escreveu sobre o discurso que
Marcelo terá proferido durante as comemorações no Dia da Independência da
Ucrânia, a 24 de agosto. Percorrendo as notícias sobre o assunto, podemos ler
que Marcelo "discursa / faz discurso em ucraniano", "lê em
ucraniano", "fala em ucraniano". Será que o fez? De facto,
quando chegou a sua vez de discursar, o Presidente optou por reproduzir
oralmente, supostamente em ucraniano, um texto.
O que estava no documento? É pouco
provável que fosse um texto escrito em ucraniano: esta língua escreve-se com
alfabeto ucraniano, variação do alfabeto cirílico, que inclui 34 letras
representando 40 fonemas (representações mentais, abstratas, dos sons); dessas
34 letras: 20 representam consoantes (algumas não existentes em português); 10,
vogais (idem); duas, semivogais; um "sinal suave", que modera a
entoação da consoante que o antecede; um apóstrofo, que suaviza algumas
consoantes em contextos não esperados. Também é improvável que estivesse
escrito em Alfabeto Fonético Internacional (AFI), um sistema Internacional de
notação fonética composto por 157 carateres, que visa obter uma representação
padronizada dos sons (concretos) das línguas do mundo, que permite a um connaisseur reproduzir
oralmente uma transcrição fonética de qualquer língua, mas que é amplamente
desconhecido do cidadão comum. O mais provável é que fosse um documento escrito
em ucraniano romanizado, i.e., usando um sistema de transcrição/transliteração
de ucraniano em carateres latinos. O problema é que o alfabeto cirílico foi
criado precisamente por se assumir que o latino não representava eficazmente os
sons das línguas eslavas.
O que fez Marcelo foi tão-só
reproduzir através da voz uma transcrição em alfabeto latino de um texto talvez
escrito originalmente em ucraniano, ou traduzido de português para ucraniano.
Marcelo "leu em
ucraniano"? José Morais, no seu livro de 1992 sobre leitura, conta que
John Milton, que ficara cego, ensinou as filhas a reproduzir oralmente textos
clássicos, para, ouvindo a voz delas, poder usufruir do conteúdo deles, e chega
à conclusão de que nem Milton lia, nem as filhas liam, em sentido estrito: elas
reproduziam sinais gráficos através da voz, ele ouvia a voz delas e
(re)construía a representação mental do conteúdo dos textos. Leitura implica
compreensão e, mesmo ao ler em voz alta, compreendemos o que dizemos, o que
torna possível usar a prosódia certa, i.e., ler com entoação. Marcelo não leu
com entoação, não compreendeu o que disse e, portanto, não leu, nem discursou
naquela língua.
Marcelo "falou em
ucraniano"? Para falar uma língua é preciso sabê-la (dominar a sua
gramática e vocabulário, construir enunciados, articular os sons dessa língua e
atribuir significado ao contínuo sonoro de quem fala a língua). E Marcelo não sabe
ucraniano, como ele próprio admitiu ao comentar o seu ato. Não falou, nem
poderia falar.
Em suma, o que fez Marcelo foi
tão-só reproduzir através da voz uma transcrição em alfabeto latino de um texto
talvez escrito originalmente em ucraniano, ou traduzido de português para
ucraniano. É legítimo questionar se, após passar por tantas traduções e
transliterações, o texto faria ainda sentido, mas isso eu não sei. Quando
Cândida Pinto, na Grande Entrevista, perguntou a Zelensky se ele
tinha percebido o discurso, ele parece ter respondido que não...
O que está em causa não é o
comportamento do Presidente, que terá certamente atingido algum(uns) dos
propósitos que tinha em mente ao fazê-lo. Pergunto-me, sim, o que levará
os media a, da perspetiva do discurso, serem tão pouco
precisos no uso da linguagem ou, talvez, a pretenderem exacerbar as qualidades
de Marcelo. A cada um, a sua resposta.
Professora e investigadora,
coordenadora do Portal da Língua Portuguesa
https://www.dn.pt/opiniao/marcelo-e-o-discurso-em-ucraniano-16963607.html?
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