sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Antero de Quental - Poesia

* Antero de Quental


AOS MISERÁVEIS


Vós vedes esses lobos carniceiros,
Que em volta d0s redis andam bramindo?
Que onde se espalha o sangue são primeiros,
E últimos onde o Amor esta sorrindo?
Tremeis de medo ao vê-los? ou, rasteiros,
Da vista deles vos andais sumindo?
Ou, cheios de ódio, estais a invejá-los?
Pois, em verdade, que é melhor chorá-los!

Eles não vêem deste grande mundo
Mais que os tectos dourados de seus paços...
Vós tendes todo o céu largo e profundo
Por tecto, e por palácio esses espaços!
O que Deus dá a todos... o fecundo...
Que não se nega aos mais mirrados braços...
O brado que de um peito amado sai...
E o que do olhar das mães n’alma nos cai...

A herança é bela, miseráveis! vede...
Miseráveis! porquê? porque no estio
Só piedoso olhar vos mata a sede?
Porque, quando tremeis de fome e frio,
Deus só seio de amigo vos concede?
Só tendes a esperança, como rio,
Para banhar-vos no maior calor?
Eles têm tudo... sé lhes falta o Amor!

Não têm inteligência! a que vem d’alma!
Esse grande entender da Grande Cousa!
Cacho nascido na mais alta palma!
Coroa de quem crê e de quem ousa!
Sangue de irmãos a sede lhes acalma.
Dão banquetes no mármore da lousa...
E saber isto? é isto inteligência?
Não! que o Bem é o perfume dessa essência!

A cânfora… a balsâmica resina...
A essência que destila sobre os Povos,
Na fronte deles, como unção divina...
Quando o tronco deitou rebentos novos,
E palpitou a ave pequenina
Por um leve rumor dentro em seus ovos,
Então caiu também da imensidade,
Sobre a fronte dos povos, a Verdade!

É Ela, que ressalta, como lume,
Do choque das ideias e das cousas!
Não há grilhões que a prendam... que os consume!
Nem campa… que ela estala as frias lousas!
Machado de aço fino, com o gume
A árvore decepou onde te pousas
Tu, negro mocho da Hipocrisia,
E tu, águia fatal da Tirania!

Odes Modernas – Livro Segundo (Antero de Quental, Poesia Completa. Círculo de Leitores. 1991)


HINO À RAZÃO

Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações
buscam a liberdade entre clarões;
e os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

*

A UM POETA

Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afuguentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

*

EVOLUÇÃO

Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afuguentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

*

AMOR VIVO

Amar! mas d'um amor que tenha vida...
Não sejam sempre tímidos harpejos,
Não sejam só delirios e desejos
D'uma douda cabeça escandecida...

Amor que vive e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser — e não só beijos
Dados no ar — delírios e desejos —
Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipa-lo nos meus braços
Como névoa da vaga fantasia...

Nem murchará do sol á chama erguida...
Pois que podem os astros dos espaços
Contra débeis amores... se têm vida?

Antero de Quental, in 'Sonetos' 

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