CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
* António Guerreiro
8 de Setembro de 2023
A escola perdeu
os atractivos da beleza e ganhou a imagem de um cúmulo de deficiências e
problemas.
A escola é cada
vez mais esmagada pelo peso das ansiedades NELSON GARRIDO
Reinício do ano
lectivo, tempo de examinar as doenças da escola e sondar o mal-estar dos
professores. Um jornal, com vocação crítica desde o seu nascimento, fala da
“crise dos professores” e analisa as causas do desinteresse pela “mais bela
profissão do mundo”. As aspas, não sou eu que as coloco por estar a citar o
dito jornal; é o jornal que se encarrega, através das aspas, de dizer que está
a citar uma frase que nos foi transmitida pela tradição. Mas neste caso as
aspas também significam outra coisa: que a expressão já não pode ser dita sem
recuo, e só um ingénuo ousaria repeti-la sem aspas. A “mais bela profissão do
mundo”, é dito logo no início do artigo, deixou de ser interessante e, por
isso, atrai cada vez menos candidatos e provoca cada vez mais o abandono dos
que nela entraram, por causa de condições de trabalho cada vez mais difíceis e
uma remuneração pouco atractiva.
O jornal em
questão não é português, é francês, chama-se Libération e
analisa o estado da “Éducation nationale”, o mito republicano por
excelência. Mas também podia ser um jornal português,
espanhol, italiano, alemão (sim, até a escola alemã se debate com uma imensa
falta de professores e uma degradação das condições de trabalho que leva muitos
a abandoná-la). A escola, a mais bela instituição do mundo (sem aspas), ainda
que as suas práticas tenham sido tantas vezes criminosas, perdeu os atractivos
da beleza e ganhou a imagem de um cúmulo de deficiências e problemas.
Como toda a
gente passou pela escola, toda a gente tem qualquer coisa a dizer sobre ela.
Mas em Portugal ninguém sabe muito bem o que se passa no seu interior, é tudo
exterior.
Há pouco tempo,
um estudante italiano, tendo concluído o exame de maturità que
dá acesso à Universidade, escreveu um testemunho cruel da sua experiência,
publicado num jornal. Por cá, estamos a precisar deste tipo de testemunhos, tal
como precisamos de um discurso dos professores mais analítico, não
exclusivamente centrado sobre questões sindicais e as condições pragmáticas de
trabalho (por mais legítimo que seja este discurso, ele é insuficiente).
É esta falta
que me convida aqui a falar de dois livros, de uma grande escritora francesa,
Nathalie Quintane, que é professora de um collège há mais de
30 anos (no sistema de educação francês, o collège corresponde
ao ciclo de estudos que se segue aos quatro anos de ensino básico, abrange,
portanto, os alunos dos 11 aos 15 anos). Trata-se de Un hamster à
l’école e de J’adore aprendre plein de choses. No
primeiro, o de maior fôlego (mas o segundo é talvez mais maldoso e sarcástico),
Nathalie Quintane faz um retrato da “Éducation nationale”, num texto que
é um longo poema em verso livre, narrativo, entre autobiografia e reflexão, que
atravessa os seus anos de aluna e os de professora. O género e o discurso nada
convencionais deste texto justificam-se inteiramente: para criticar a instituição
escolar é preciso inventar uma língua que é estranha à instituição escolar.
A metáfora do
hamster que corre para lado nenhum, fazendo mover uma roda que está sempre no
mesmo sítio e que atinge uma tal velocidade que os seus raios até produzem uma
ilusão óptica, serve para traçar a imagem de um trabalho repetitivo e absurdo,
submetido a um ritmo infernal que tem a lógica do círculo vicioso: é um
movimento circular que não vai a lado nenhum, que tem um fim em si mesmo (“Se
soubessem o número de reuniões e de formações inúteis a que tivemos direito
desde há quinze anos [...]”). É, em suma, uma máquina de esvaziar sentido, de
treinar os alunos a dominar códigos. Um hamster movendo a roda a grande
velocidade: é assim que esta professora se sente, concentrada sobre os efeitos
de óptica que produz. Nos momentos em que emerge deste turbilhão, vê a escola
como uma violenta experiência de estranheza que lhe dá a sensação de nunca
estar no seu lugar. E, numa entrevista a uma revista francesa, declarou: “Não
há uma alteração da profissão de professor, há uma liquidação.”
O diagnóstico
desta liquidação não se compadece com aquele discurso piedoso que implora a
restauração da autoridade professoral. É um diagnóstico muito mais fino e
complexo, que Nathalie Quintane não resume a algumas proposições, a teses, a
propostas salvíficas. E se o livro nos faz compreender com grande evidência que
a escola é cada vez mais esmagada pelo peso das ansiedades que se sobrepõem em
estratos e recaem sobre os alunos (a dos pais, a dos professores, etc.), tudo
nele é muito mais subtil do que as explicações sociológicas e psicológicas. Não
é um livro de tese, é um texto literário.
Livro de
recitações
“A
tauromaquia atravessa uma fase de franco declínio, a roçar a extinção nos anos
da pandemia de covid-19.” In Expresso, 27/08/2023
O declínio da
tauromaquia de que se fala neste artigo acontece em Espanha, no país da “festa
brava”, como se dizia em tempos. Tal notícia faz-nos perguntar: mas as touradas
não são hoje uma actividade quase clandestina, cultivada por um grupo estrito
que tem cada vez mais dificuldade em mostrar a sua “cultura” sem suscitar o
desprezo e a reprovação, exercida como um ritual secreto, tão longe dos olhares
públicos como os matadouros? Em boa verdade, a tourada já só subsiste como
espectáculo que, fora do ambiente anacrónico que o sustenta, deixou de ser uma
coisa tolerável. Intolerável não é apenas o espectáculo nas praças. É todo
o habitus que germinou neste universo classista de
enraizamentos cruéis.
https://www.publico.pt/2023/09/08/culturaipsilon/cronica/bela-profissao-mundo-2062325
Sem comentários:
Enviar um comentário