sábado, 9 de setembro de 2023

António Rodrigues - Museu da resistência e liberdade

4 ESQUINAS - 

* António Rodrigues 

8 de Setembro de 2023

O mundo que se conta a partir do que se diz.

But it'll never come close/ To the rage built up inside of me/ Fist in the air, in the land of hypocrisy!”, em Wake Up, dos Rage Against the Machine

A raiva entronizada

Tom Morello foi convidado para as comemorações oficiais dos 50 anos do golpe de Pinochet no Chile, que se assinalam na segunda-feira. O guitarrista dos Rage Against the Machine (RATM) e dos Audioslave é um activista (criou a Axis of Justice com Serj Tankian, dos System of a Down) que sempre assumiu a música como uma questão política. “Todos os concertos que dei foram uma celebração da resistência”, dizia em Abril, numa entrevista à Rádio Rock.

Num concerto no Chile em Junho afirmou-se como um “Víctor Jara com uma guitarra eléctrica” a tentar falar com as pessoas para lhes dizer: “O mundo não vai mudar por si mesmo, depende de ti.” O mesmo Morello disse esta semana, numa entrevista a Paul Brannigan para a Louder, que um disco dos Sex Pistols lhe mudou a vida: “Comecei a tocar guitarra numa banda 48 horas depois de ouvir Never Mind the Bollocks.

Armado com “as ideias da solidariedade, igualdade, luta pela justiça e o antifascismo”, Morello e os RATM construíram uma carreira de desafio ao capitalismo e ao neoliberalismo, contra o racismo enraizado e a violência policial nos mesmos Estados Unidos que em Novembro os vão entronizar no Rock & Roll Hall of Fame, o museu de Cleveland que documenta a história do rock’n’roll.

Na tournée de reencontro da banda no ano passado, depois do primeiro concerto no Wisconsin, alguns dos fãs criticaram as mensagens políticas da banda, nomeadamente a posição assumida em palco contra a decisão do Supremo Tribunal de reverter a decisão Roe v. Wade e abrir caminho à proibição do aborto nos Estados Unidos.

Que os fãs de uma banda, que sempre assumiu o activismo político como essencial à sua criação musical (começando pelo próprio nome: raiva contra a máquina), só descubram 30 anos depois que a banda tem ideias políticas radicais deixa-nos a pensar: ou os RATM foram muito bons na passagem subliminar das suas mensagens ou, então, e estou mais tentado para esta hipótese, desde que toques muito alto e com energia, até o Livro Vermelho do Mao pode ser cantado integralmente num palco em Wall Street.

O golpe como jogo de vídeo

Cinquenta anos depois, o Chile do presente continua extremamente marcado pelo passado, pelos acontecimentos de 11 de Setembro de 1973, cujos 50 anos se assinalam na segunda-feira. Um país que passou a segunda década deste século em movimentos de protesto contra a sociedade cada vez mais desigual deixada pelos anos de chumbo político-militar, eivados do mais puro neoliberalismo versão Escola de Chicago (o Chile foi o seu laboratório na terra, com o beneplácito do ditador e milhões de cobaias à disposição), e que hoje se mantém dividido.

Apesar de ter um Presidente, Gabriel Boric, que saiu directamente dos movimentos estudantis que ocuparam as ruas, o seu principal adversário é o filho de um antigo ministro das Finanças da ditadura e pinochetista convicto e assumido, José Antonio Kast.

E é nesse contexto que surge Dirty Wars: 11 de Septiembre, um jogo de vídeo agora lançado para chegar a tempo da data redonda dos 50 anos. Criado, desenhado e desenvolvido pelo sociólogo Jorge Olivares, é a história de um casal (Maximiliano e Abigail) que depois do golpe opta por entrar na clandestinidade para lutar contra o regime militar.

"Os personagens principais são basicamente inspirados na história dos meus pais", disse Olivares à Reuters.

Lançado na plataforma online Steam, Dirty Wars (guerra suja é o termo usado para definir as acções ilegais levadas a cabo por um regime para combater um determinado grupo social ou político) é um jogo stealth que demorou seis anos a ser desenvolvido e que pretende “mostrar o contexto daquele tempo”: um tempo em que os espectros invadiram a luz do dia para enterrar a sociedade mais justa que Salvador Allende não teve tempo de construir.

Bisnagas

O seu nome esteve envolvido numa polémica que o levou a deixar o jornal Le Monde em 2021, onde durante quase duas décadas publicou os seus pinguins da série Os Inegáveis. Um cartoon que falava das novas famílias feitas de pais que já tiveram outras famílias e de como as definições da lei ficam aquém desses novos vínculos desatou uma tempestade por apologia da pedofilia.

Não foram as críticas que o empurraram para a porta de saída, mas a atitude da direcção do jornal, que resolveu pedir desculpa por ter publicado um desenho que tinha aceitado publicar, e sem o ouvir.

Para Xavier Gorce, numa entrevista publicada esta semana pela webzine franco-belga ActuaBD, tratou-se de “uma reacção de medo do jornal” perante a “tempestade digital” criada pelo desenho. “Acho que foi uma atitude cobarde recuar perante a pressão das redes sociais”, uma decisão “cobarde e tola” que deixou o jornal e a imprensa mais frágeis: “Quando se dá um passo atrás neste caso, só estamos a apontar o caminho para mais recuos.”

O criador compreende que a imprensa vive sob pressão, que as polémicas nas redes sociais podem chamuscar ou mesmo deitar abaixo um projecto, mas que aderir sem questionar a todo esse fenómeno de cancelamento pode trazer consequências negativas. Para a imprensa em particular, como mediador na transmissão de informação, e para a evolução da sociedade em geral, usar a indignação na Internet como barómetro pode empurrar-nos para vielas esconsas.

Os cartoons sempre foram “contrapoder, político, religioso e económico”, tentam “chocar, sacudir um pouco”, “procuram despertar as pessoas que estão um tanto ou quanto apáticas”, desafiam a ordem com a simples arma da caneta. Querer domesticar os cartoonistas é trocar-lhes a caneta por uma bisnaga, e já se sabe como as bisnagas ajudaram tanto à evolução da espécie humana.

Pedro Sánchez e um poema sufista

Publicado em 2019, é um livro de memórias políticas que fala de um socialista que chegou à liderança do seu partido, foi empurrado para fora pelos barões e acabou a regressar pelas mãos da militância até se vingar com a sua chegada a primeiro-ministro. É, pois, um Manual de Resistência, assinado em nome próprio por Pedro Sánchez, mas cuja escrita foi entregue a Irene Lozano, com quem o ainda Presidente do Governo espanhol teve longas conversas e a quem reconhece no prefácio a autoria.

A razão pela qual se volta a falar do livro esta semana nada tem a ver com a controvérsia causada pela escritora-fantasma, nem pelas qualidades literárias da obra ou o ajuste de contas nela contido. A divulgação pelo Congresso espanhol da declaração de bens, rendimentos e interesses económicos dos deputados esta semana deu a saber que o primeiro-ministro ganhou 42 mil euros com os direitos de autor, mas não ficou com nenhum. Depois de pagar impostos, entregou a verba à Obra Social Nur. Tal como aliás tinha feito em 2022, embora até aí o livro só lhe só tivesse rendido 8900 euros.

A associação ligada ao Centro Sufí Nematollah entrega comida a pessoas necessitadas desde 2009 em Córdova e Madrid. E apesar de estar ligada ao sufismo, a corrente mística e contemplativa do Islão, a Nur diz que está ao “serviço de todas as pessoas, qualquer que seja o seu credo, cultura, etnia ou nacionalidade”.

Além de comida, a associação também envia medicamentos a centros médicos em África - em Porto Novo (Benim) e Abidjan (Costa do Marfim) - e presta apoio à manutenção e desenvolvimento dos projectos da Casa Esperanza, em San Miguel de Allende (México).

Ibn Marzuq, que chegou de Marrocos no século XIV para ser pregador da mesquita do Alhambra, em Granada, foi um dos grandes influenciadores de Ibn Zamrak, o maior poeta do Alhambra, a quem dava lições de sufismo. É de Zamrak o longo poema na Sala das Duas Irmãs, de que extraímos estes versos: “Por autorização do juiz da beleza/ paga, a duplicar, o imposto em duas moedas/ porque se à alba, o Zéfiro que nas mãos/ deixa dracmas de luz, bastaria/ logo atira no espesso, entre os troncos/ dobras de ouro de sol, que o engalanam.”

tp.ocilbup@seugirdor.oinotna

https://www.publico.pt/2023/09/08/mundo/cronica/museu-resistencia-liberdade-2062582


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