Responsável do Santuário explica que Fátima se desenvolveu mais no período pós-25 de Abril. Reconhece que é "fácil" associar Fátima ao Estado Novo, mas na verdade a relação não foi assim tão próxima.
24 mar. 2024, 10:22 1
A ideia de uma ligação profunda entre
Fátima e o regime do Estado Novo é desmentida pelo diretor do Departamento de
Estudos do Santuário, que aponta o pós-25 de Abril como o período em que
“Fátima se desenvolve mais”.
Para Marco Daniel Duarte, “a relação
de Fátima com o Estado Novo exige uma investigação que ainda não está
totalmente feita”.
“Aquilo que é o mais fácil para a
narrativa que tem sido criada é que Fátima e o Estado Novo são quase a mesma
coisa. Há, inclusivamente, uma narrativa mitográfica que diz
que Fátima é construída pelo Estado Novo. Ora, tudo isto exige que
haja, de facto, uma investigação séria”, defende.
Desde logo porque “Fátima nasce
no contexto pré-Estado Novo, num contexto de I República, (…) de um Portugal
que é claramente anticlerical, que tem muitas dificuldades em assumir uma
mensagem religiosa”, afirma o historiador, lembrando que os patriarcas do
republicanismo diziam que “em poucas gerações o catolicismo seria erradicado do
país”.
Admitindo que o catolicismo encontra
um espaço de maior conforto para a expressão da fé durante o Estado Novo, diz
não ser de admirar, por isso, que “a historiografia tenda a dizer
que Fátima cresce de uma forma muito considerável no período” da
ditadura de Salazar.
No entanto, adverte, há que “dizer de
uma forma muito clara que Fátima não é igual a salazarismo. Aliás, o próprio
presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, pouquíssimas vezes veio
a Fátima. Veio nos anos 50, numa visita que nem sequer era oficial, e veio
depois em 1967, aquando do cinquentenário das aparições com o Papa Paulo VI”.
“O poder político não frequenta
Fátima de forma assinalável. Há momentos muitíssimo importantes em Fátima
relacionados com episódios soleníssimos e não é o chefe de Estado nem é o chefe
do Governo que vem a Fátima”, lembra Marco Daniel Duarte, apontando o exemplo
de 1946, quando “a imagem de Nossa Senhora de Fátima é coroada como
Rainha do Mundo e Rainha da Paz e vem um legado pontifício do Papa Pio XII” ao
Santuário.
Nesse dia, “nem Salazar nem o chefe
de Estado estão em Fátima. Aquilo que vemos acontecer é, até no período
pós-25 de Abril, a presença do Estado e a presença de ministros, porventura até
mais detetável do que propriamente no Estado Novo”, acrescenta.
E apesar da trilogia “Fátima, Futebol
e Fado” que se tornou popular para caracterizar o Portugal das décadas
anteriores à revolução de 1974, Fátima não deixava de causar alguma
incomodidade no poder instalado.
A guerra nas antigas colónias de
África e o palco que Fátima constituía para alguma crítica, causava
desconforto.
“Os anos 60 são muitíssimo ricos na
expressão que Fátima também tem de contrariar aquilo que é a decisão política
ao mais alto nível, nomeadamente em relação à questão do Ultramar (…) e da
guerra”, sublinha Marco Daniel, lembrando que se veem “os fiéis a virem
a Fátima pedir que termine a guerra, que os soldados não sejam
mobilizados para a guerra”.
“Vemos isto a partir de várias vozes: em primeiro lugar, a partir dos próprios soldados, os militares que (…) vêm a Fátima pedir a proteção da Virgem para a sua missão no Ultramar, vêm também doentes e soldados mutilados agradecer o facto de terem sobrevivido à guerra e isto são, obviamente, manifestações muito claras de que Fátima é palco de uma reivindicação, de uma contestação em relação a esta guerra que levava à morte milhares de inocentes”, frisa o diretor do Departamento de Estudos do Santuário.
Para o responsável, “estas vozes que
se fazem ouvir em Fátima não são apenas as vozes dos soldados, são as
vozes dos pregadores, dos padres que aqui têm discursos pró-pacifistas, a voz
das madrinhas de guerra, dos filhos de soldados, das noivas dos soldados, que
aqui deixam as suas mensagens (…) que ainda hoje são fontes inestimáveis para
perceber um período da história portuguesa”.
“Nós vemos aqui, de facto, essa
contestação silenciosa de Fátima ser um abrigo para estas angústias
da humanidade nesta época”, diz o historiador.
Havia a perceção de “que o regime
sentiria, por um lado, algum desconforto, no sentido em que há aqui um palco
onde vemos soldados a rastejar na passadeira dos penitentes com as suas fardas,
portanto, uma paisagem humana muito difícil de perceber, que não é uma paisagem
humana que apareça nos jornais de forma muito clara, mas, ao mesmo tempo,
olhava para Fátima como lugar [onde] ‘eles vão fazer as suas
orações’, quase que não é nada político”.
Mas, argumenta, “há aqui uma dimensão
que não é apenas religiosa, é fundamentalmente também política”.
E sendo política, como era o controlo
feito pela polícia do regime em Fátima?
“Não temos evidência desse tipo de controlo”, o que pode ser explicado pela sensação de que, “para a PIDE, não pareceria óbvio que em Fátima acontecesse algo que contrariasse a voz do regime”, acrescenta.
Período da revolução em Fátima ainda
é lugar de inquietações
O diretor do Departamento de Estudos
do Santuário de Fátima considera que o período da revolução de 1974
na Cova da Iria “continua ainda a ser um ‘lugar’ de muitas inquietações”.
“O 25 de Abril de 1974 é um tempo que
está ainda por estudar e que, a partir das fontes ligadas à Igreja, continua
ainda a ser um lugar de muitas inquietações”, diz em entrevista à agência Lusa
Marco Daniel Duarte, acrescentando: “sabemos que a Conferência Episcopal estava
reunida em Fátima. E não sabemos exatamente o que se passou naquela
reunião. Esses arquivos têm de ser explorados nesse sentido”.
O que se sabe é que em maio seguinte
houve a tradicional peregrinação de dia 13, desta vez presidida pelo cardeal
António Ribeiro, patriarca de Lisboa, e verifica-se que “não tem uma diminuição
de fiéis, a esplanada está cheia”.
Na homilia, António Ribeiro “vai
aproveitar o grande tema que a Igreja estava a trabalhar do ponto de vista
universal, que é o Ano Santo, que tinha palavras-chave como Redenção,
Reparação, Reconstrução”, recorda Marco Daniel, para explicar que o patriarca
“vai aproveitar essas palavras e usá-las no contexto político que se está a
viver”.
“Podemos quase dizer que é a primeira grande intervenção dirigida à massa dos fiéis para mostrar que a Igreja estava disponível para, a partir de uma renovação dos espíritos, construir e ajudar a construir um mundo novo. Expressões como mundo novo, liberdade, consciência, reconstrução, mas também responsabilidade, aparecem nessa homilia”, sublinha o historiador.
Sobre o ambiente vivido por esses
tempos em Fátima, Marco Daniel Duarte afirma que, “ao olhar para trás,
percebe-se que há uma serenidade muito grande do ponto de vista do santuário e
dos seus decisores, ao mesmo tempo que essa serenidade não deixa de estar
eivada de preocupação”.
“Sendo Fátima um ícone religioso por
excelência, estando nessa tradição de leitura conotada com o Estado Novo,
sentir-se-ia em Fátima essa necessidade de estar atento às
movimentações do novo regime que se estava a tentar encontrar”, explica.
Após o 25 de abri 1974 e até ao ano
de 1975, “são meses com preocupações relativamente à forma como a Igreja seria
tratada do ponto de vista do novo regime democrático e, dentro da Igreja,
obviamente o fenómeno Fátima como um fenómeno importantíssimo”,
lembra.
Ao mesmo tempo, pelo que “está
escrito – porque, na verdade, muitas das decisões não ficaram escritas e não as
há documentadas nos arquivos — [o que se assiste] é, de facto, [a] uma grande
serenidade, uma presença muito clara, sem temor, ainda que com receio de que
algo pudesse acontecer, mas sem temor para dialogar e enfrentar a adversidade”.
Apesar disso, foi possível vislumbrar
que a Voz da Fátima — órgão oficial do Santuário, através da palavra
do seu reitor monsenhor Luciano Guerra, “vai ter muitos pontos de ligação às
preocupações humanitárias que decorrem do 25 de Abril, nomeadamente (…) sobre a
descolonização e sobre a forma como os irmãos – ele chama-lhes assim – que vêm
das colónias devem ser recebidos por aqueles que estão na chamada antiga
metrópole, como que a dar uma nota muito clara sobre o comportamento” que os
católicos dessa época devem ter.
“E ele não tinha de falar senão e apenas sobre Fátima, mas ele toma esse assunto, que é um assunto nacional, um assunto muito difícil, a questão dos retornados, e a partir da sua palavra encoraja a que essas pessoas sejam enquadradas de forma feliz na sociedade que se está a reerguer”, aponta Marco Daniel, que sublinha a consolidação que Fátima assumiu no panorama nacional e internacional após o 25 de Abril.
“Fátima, de facto, não é subserviente
do Estado Novo, nem está colada ao Estado Novo. E a prova máxima disso é que o
seu desenvolvimento não é apenas durante o Estado Novo. Esse desenvolvimento
não está relacionado com o Estado Novo, mas está relacionado com a política
religiosa do mundo contemporâneo, sobretudo a partir do pontificado de Pio XII.
É uma questão religiosa já de escala universal”, afirma o diretor do
Departamento de Estudos do Santuário.
É a partir do 25 de Abril, “se
quisermos marcar aqui uma barreira política, que Fátima se desenvolve ainda
mais, no pontificado de João Paulo II e em todos os pontificados seguintes.
Portanto, de forma muito evidente, Fátima tem dentro de si um motor
que não é um motor que dependa da política nacional”.
E, no horizonte, vislumbra uma Fátima
viva dentro de outros 50 anos, pois “o fenómeno Fátima é um fenómeno
que interessa à Humanidade, porquanto tem na sua génese uma temática que nunca
estará vencida, que é a temática da Paz”.
O pós-revolução na linguagem própria
da Voz da Fátima
O leitor mais desprevenido que, em
1974, tentasse obter informações sobre o 25 de Abril e as suas repercussões na
Igreja, em particular no Santuário de Fátima, através do órgão oficial da
instituição, encontrava algumas dificuldades.
Nas páginas da Voz da Fátima,
mensário oficial do Santuário, a linguagem usada nos meses pós-revolução é
difusa sobre a ação militar que levou à queda do regime, com poucas explicações
e mensagens pouco explícitas.
O diretor do Departamento de Estudos
do Santuário, Marco Daniel Duarte, em entrevista à agência Lusa assume que
“essa é a linguagem típica da imprensa católica da época”.
“Há quase como que um desviar do
próprio nomear do acontecimento do 25 de Abril. É, de facto, sempre dito ‘os
acontecimentos recentes’, ‘os acontecimentos que assolaram o país’, ‘os
acontecimentos que estamos a viver’. E isso diz respeito a uma posição defensiva
da Igreja perante os cenários que estavam a ser desenhados”, afirma.
Com efeito, no número de 13 de maio
de 1974, na página 2 é publicada apenas uma pequena breve sobre a reunião da
Conferência Episcopal que decorria em Fátima no dia 25 de abril, mas
sem qualquer referência à revolução.
No número seguinte, de junho, é
publicada a homilia que o cardeal António Ribeiro proferira na peregrinação de
maio.
“Somos Igreja. Por isso, em nós deve transparecer o rosto sereno e firme, alegre e confiante, humilde e penitente, de quem caminha na história dos homens e com eles partilha, bem de dentro, as esperanças e as angústias, as alegrias e as penas, as certezas e as interrogações da hora atual”, afirmou o patriarca de Lisboa perante milhares de peregrinos.
“Renovar os homens e as instituições,
sem atropelo ao direito e na observância da fraternidade humana e cristã é
tarefa a que todos somos convocados no momento atual. Uma sociedade nova
precisa de homens novos. E as instituições, ainda que alteradas na forma, só
deixarão de ser velhas quando forem servidas e constituídas por homens
renovados. E ninguém pense já ter atingido a meta da renovação”, avisava então
o sucessor de Manuel Cerejeira à frente do Patriarcado de Lisboa.
De seguida, e sempre sem se referir
explicitamente ao 25 de Abril, António Ribeiro preconizava que “a nova ordem
social terá de assentar na verdade e na justiça, na liberdade e no amor e na
paz. São estes, por certo, os valores que presentemente se anunciam e, diante
de tal anúncio, nenhum cristão deixará de se alegrar. Com todos os homens de
boa vontade, os cristãos são pregoeiros e artífices de um mundo novo, sempre
voltado para o futuro, onde a mentira seja abolida, onde a injustiça não tenha
foros de cidadania, onde a reta liberdade de todos possa ser respeitada e
vivida, onde o ódio desapareça e a guerra dê lugar à paz e à concórdia
fraterna”.
Em agosto desse ano, a Voz
da Fátima começou a publicar — num processo que durou meses — a Carta
Pastoral do episcopado “sobre o contributo dos cristãos para a vida social e
política”.
Quem fosse lendo apenas este
mensário, ficaria na dúvida sobre as razões da publicação do documento que
pretendia “ser uma ajuda à leitura cristã dos últimos acontecimentos da vida
portuguesa”.
Em setembro, um tema polémico era
tratado na última página da Voz da Fátima, que dava conta de “uma grande
campanha para a liberalização do divórcio em Portugal”.
“Não é de agora. Vinda da Primeira
República, um tanto abafada durante o regime de Salazar, começou a tomar vulto
por volta de 1965, com a fundação do Movimento Pró-Divórcio. Mas foi a partir
do 25 de Abril, favorecida pelo atual clima reivindicativo e libertário, que a
campanha assumiu proporções que não deixarão de impressionar a opinião pública
e as próprias autoridades civis e religiosas”, lia-se no jornal do Santuário.
O título era um alerta: “Para os
católicos sinceros o divórcio não traz solução”.
No número de outubro, eram
reproduzidas as palavras do Papa Paulo VI durante a cerimónia de entrega de
credenciais do embaixador de Portugal junto da Santa Sé, Calvet de Magalhães. O
pontífice abordava, entre outras, a questão do Ultramar.
“Seguimos, com vivo interesse, as
iniciativas referentes aos territórios do Ultramar”, desejando que se “possam
garantir em tais regiões seguras condições de justiça, de paz e de progresso”,
desejava o Papa.
Um mês depois, era dada nota da
necessidade de se evitar “o aproveitamento abusivo de Fátima como arma
anticomunista, aproveitamento que poderia desvirtuar a Mensagem da Fátima
(segundo a qual a conversão da Rússia está dependente da nossa própria conversão)”,
ao mesmo tempo que se considerava ser uma “traição a Fátima calar-se
o pedido de Nossa Senhora em favor da conversão da Rússia, como se o mesmo não
fosse lugar central da Mensagem, e as intenções sociais dos regimes políticos
pudessem fazer esquecer o seu ateísmo militante”.
E o ano de 1974 terminou na Voz da
Fátima com a manchete “Será Fátima anticomunista?”.
“No clima de liberdade política
introduzida pelo 25 de Abril, tem vindo à tona, com bastante frequência, o
problema das relações de Fátima com o comunismo. (Diga-se, aliás, entre
parêntese, que Fátima tem sido, nestes últimos meses, alvo predileto de uma
série de pessoas e instituições que chegam a dar-nos a impressão de que, já
desde muito antes do 25 de Abril, tinham as suas armas aperradas e a mão no
gatilho, à espera duma primeira ocasião para dispararem
contra Fátima – e não só pelas suas relações com o comunismo! Sem
paixão, convém que pensemos no assunto, mas a longo prazo)”, escrevia o reitor
do Santuário, monsenhor Luciano Guerra.
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