terça-feira, 26 de março de 2024

Carlos Coutinho - Metamorfoses

 


* Carlos Coutinho 

Há não sei quantos milhões de anos, a mais que milionésima bactéria tremeu nas águas primordiais e começou a perder os seus primeiros borbotos e estes, imitando a mãe, bacterizaram-se também e, logo que adultos, desataram a povoar os mares igualmente emergentes, iniciando verdadeiras dinastias de bactérias diferentes e ávidas de novas diferenciações.

É o que deduzo das muitas leituras que tenho feito sobre o assunto.

Muitas bactérias do frio e do quente optaram por abandonar as diversas águas planetárias, continuaram a metamorfosear-se, de espécie em espécie, e atingiram a humana, aquela que ainda não sabemos o que será, nos próximos séculos ou milénios, se ainda viver.

Mas sabemos que a sua primeira compulsão foi alimentar-se para sobreviver, disputando os alimentos com as vizinhas e, assim, aprendendo a lutar. Criou, portanto, os primeiros modos de matar e nunca mais parou de os aperfeiçoar, aperfeiçoando também a coragem, a ira, o ódio, condições instrumentais de sobrevivência.

– A inteligência animal começou assim, por total inexistência de ética e, muito menos ainda de filosofia, para desgosto de Santo Agostinho que descobriu, milhões de anos mais tarde, na cidade argelina de Hipona, o mal e a sua sede original na mulher.

– Mas foram precisos também milhões de anos para os moluscos marinhos galgassem as areias das praias, adquirissem esqueleto e exoesqueleto, escamas, penas, couro e pelo, vulva e pirilau, luxúria e autorreprodução sem gâmetas, fossem eles óvulos ou espermatozoides, e muito menos fecundação in vitro, até que o primeiro primata optou por se amacacar ou se antropolizar.

– E ainda não foram poucos os milhões e anos necessários para a fundação do Antropoceno, com o homo neandertalensis e o homo sapiens a alterar irremediavelmente a ordem e as formas das coisas, até os primeiros analfabetos conscientes inventarem os hieróglifos e as primeiras gravuras rupestres com as mãos borrifadas por bocas cheias de líquidos cromáticos nas rochas mais adequadas das cavernas.

– Daí ao sumério Gilgamesh e, seguidamente, à arca de Noé, ainda tiveram de transcorrer mais alguns milhares de anos, porque faltava formular a teoria da impulsão, a carpintaria naval, a arte da navegação e, assim, foi imposta a entrada com senha para a barca, visto a bicharada ser tanta que teve de se organizar filas, entrando cada novo passageiro só quando algum outro, lá dentro, já tinha sido devorado por alguns dos seus famintos semelhantes em luta compreensível de sobrevivência das espécies, das raças e dos costumes.

– A revista “Nature” publica agora um estudo sobre a perda da cauda nos símios, ocorrida há 25 milhões de anos. A hipótese inicial do estudo é a de que os nossos ancestrais perderam os rabitos abanadores quando mutações alteraram um ou mais dos seus genes.

Os cientistas compararam o ADN de seis espécies de símios com o de nove espécies de macacos caudados, descobrindo que a mutação compartilhada por símios e humanos – mas ausentes nos macacos com cauda – no gene TBXT. Esta mutação terá afetado TBXT aleatoriamente um único símio, fazendo com que este desenvolvesse um coto em vez de uma cauda e passasse o “defeito” para os seus descendentes. Com o tempo, a mutação TBXT tornou-se norma nos símios e nos humanos atuais, incluindo os que já funcionam com ginástica digital da conectividade radical e com a inteligência artificial.

– Quando as primeiras mitologias apareceram e os filósofos as normalizaram, para Jeová aparecesse a legislar e Homero a encher caldeirões de amores, ciúmes, viagens à ilha das tragédias, egípcios a fazer perguntas à esfinge de pedra, Aristóteles a pôr carne nas sombras de Platão e Spartacus a dizer “já basta!”, enquanto Afrodite fazia de Helena, a mais bonita de todas as mulheres e esposa do rei grego Menelau, se apaixonar-se pelo troiano Páris, que então a levou para a sua cidade. Agamenon, rei de Micenas e irmão de Menelau, reuniu os aqueus (gregos), liderou uma expedição contra Troia e cercou essa cidade frugal da Lacónia ou Leçademónia, na Península do Peloponeso, durante dez anos, como uma represália pelo insulto de Páris.

Após a morte de muitos heróis, incluindo os gregos Aquiles e Ájax, bem como Heitor, Páris recuperou a sua imprescindíveel Helena com a ajuda de um cavalo de pau.

– Claro que infinito, acumulação, conectividade radical, biocósmico, morte e força de viver são os temas da japonesa Yayoi Kusama, de 65 anos, acabados de fazer, que, depois e tantas décadas a viver voluntariamente numa instituição de saúde mental, personifica hoje um dos mais estrondosos fenómenos de popularidade na arte contemporânea, mas isso não implica que os dadores de gâmetas tenham de ficar eternamente anónimos, como a lei portuguesa, felizmente, já aceita.

Nem que só haja um os dois cardiologistas nos hospitais do Interior, sabendo-se que há mais de 500 nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde!

– E certo é também não devia ser permitido abater árvores em todos os cantos do mundo para fazer papel desnecessário ou simplesmente prescindível, mesmo que para substituir os sacos de plástico nos supermercados.

E menos ainda seria de permitir que se continuasse a plastificar tudo, ao ponto de já se ter encontrado no estômago de um mastodóntico cachalote lulófilo, morto na praia, um emaranhado rolo de 43 quilos de redes de nylon, escovas de dentes, copos de plástico, sapatilhas, etc.

Pior só a existência de triliões de triliões de partículas de plástico na corrente sanguínea dos peixes que comemos e, agora, até já na dos frangos e de outros bichos de aviário e de viveiros para aquacultura.

E mesmo no ar que respiramos, como nos disseram na recente 11.ª Cimeira Mundial dos Oceanos!

– E por que carga de água, quando a PSP registou entre 2020 e 2323 algo como 15 mil furtos por carteiristas, caçada que lhes rendeu 7,1 milhões de euros, vêm agora certos interessados reclamar a implementação da muito perigosa, energia nuclear em Portugal, sabendo-se que, ainda por cima, sai “demasiado cara, mesmo sem se contabilizar os custos escondidos – os de armazenar os resíduos, os dos seguros contra acidentes e seus efeitos, os do desmantelamento das centrais em fim de vida, etc.”

É que é mesmo “muito mais cara – 10 a 20 vezes mais cara (segundo o catedrático e investigador Manuel Collares-Pereira) por unidade de potência instalada que as renováveis – solar, eólica, hídrica e outras que estão em desenvolvimento” – e que já provaram poderem continuar de vento em popa.

“O combustível nuclear convencional (U235)”, diz ele, “é escasso; psra ser considerado abundante (U238, Th232), implicaria uma mudança de tecnologia (mais risco, mais tempo…); neste contexto fala-se hoje da tecnologia dos pequenos reatores, pré-fabricados, algo que não existe ainda … e que muito provavelmente, serão ainda mais caros. (…) Para uma central de 1600MW, estamos a falar de um investimento de mais de 1000 milhões de euros, se registarmos o exemplo finlandês de Olikuoto, acabada de construir), e podemos mesmo contar com mais de 19 000 milhões, se tomarmos como referência o idêntico EPR francês de Flamanville (em construção).”

Mas, por cá, os lóbis movem-se. Vá-se lá saber porquê.

– E não me esqueço de que dos anuros, com penugens ou com pelagens, com escamas ou com viscos, com espinhos ou com pelado coiro impermeável, com guelras ou com pulmões, com bico com boca, houve que vencer mais alguns milhões de anos, até se poder atingir o cataclismo que cósmico e ardente que nos dinossaurizou os territórios livres, criando uma ordem nova – ordine nuovo, como a do Mussolini – que até o Pio XI e o nosso Cerejeira cardeal, ombro com ombro com o nosso sempre solteiro Salazar, tanto apreciaram.”

Daí até aparecer a besta do “Apocalipse” ainda tivemos de aturar os aedos que deram histórias e mitos Homero e a Virgílio, os delirantes que souberam desnudar as estrelas e ainda sobrevivem como espíritas e horoscopizáveis em modo Pessoa, os Abraões decalógicos, os Plutarcos e os Arquimedes, os Avicenas e os Averróis, o milagre de Ourique e a mirabolante conversa do Condestável com Cristo antes da batalha de Aljubarrota, como antes acontecera com D. Afonso Henriques, o Nuno Gonçalves dos painéis de S. Vicente, o zarolho Luís Vaz da Ilha dos Amores, o salaciano ou alcacerense Pedro Nunes da Matemática, os arquitetos da Baixa Pombalina, os versos de António Nobre e dos de Cesário Verde, as composições de Lopes Graça e até o descaramento com que misturo tudo isto.

– Talvez faça falta a esta lista de figurões o nome do jesuíta Luís Frois que viveu 34 anos no Japão e assistiu à batalha A “História” de Luís Fróis é também uma narração dos acontecimentos histórico-políticos de uma das fases históricas mais cruciais do país.

A sua “História do Japão” abrange o declínio da dinastia dos Ashikaga que começou a sua regência em 1338 e acabou em 1573.

Abrange a ascensão e o fim do comandante Oda Nobunaga (1534 - 1582) que iniciou o processo da unificação do Japão de um modo decisivo.

Abrange os anos mais importantes do sucessor de Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi (1536 - 1598), que continuou a obra de Nobunaga e completou a unificação do país, mas que também iniciou a perseguição dos cristãos em 1587. Sob o seu reinado foram mortos também os primeiros 26 mártires católicos, em 1597.

O historiador de circunstância Luís Frois nasceu em Lisboa e, em 1563, viajou para o Japão, encarregado de pregar o Evangelho, isto uns 20 anos depois de os primeiros mercadores portugueses, a bordo da “Nau do Trato”, terem desembarcado no Sul nipónico. Foi seguidamente para Quioto, onde se reuniu com Ashikaga Yoshiteru, que então era xogun. Em 1569 tornou-se amigo de Oda Nobunaga e permaneceu na sua residência em Gifu (cidade), enquanto se dedicou à escrita por um curto período.

Descreveu, então, pormenorizadamente as suas impressões sobre as tradições e cultura japonesas do século XVI através de cartas enviadas para Macau, Roma (ao Papa) e aos reis de Portugal.

É considerado o primeiro cronista europeu daquelas paragens. Entre as suas obras encontra-se uma “História do Japão”, um clássico que recolocou o país do sol nascente na história do mundo moderno e que Akira Kurosawa seguiu milimetricamente para filmar o também clássico “Kagemusha” (“A Sombra de um Samurai”) e que o também clássico Claude Lévi-Straus catalogou como “o primeiro antropólogo”

– Que bom ter nascido no país dos milagres, onde em contramão, também, nasceram pastorinhos videntes e sádicos da tauromaquia!


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