sexta-feira, 8 de março de 2024

Gustavo Carneiro - LEVANTADOS DO CHÃO

* Gustavo Carneiro

Azi­nhaga, con­celho da Go­legã. Ali nasceu José Sa­ra­mago, o único es­critor de língua por­tu­guesa ga­lar­doado com o Prémio Nobel da Li­te­ra­tura. Oriundo de fa­mí­lias tra­ba­lha­doras, também ele o foi: ser­ra­lheiro me­câ­nico, pri­meiro; fun­ci­o­nário pú­blico, de­pois. Nos seus li­vros tomou par­tido pelos que nada são neste mundo, como diz A In­ter­na­ci­onal. Exemplo maior dessa opção, que foi a sua (José Sa­ra­mago foi mi­li­tante do PCP du­rante dé­cadas e até ao fim da vida), será por­ven­tura Le­van­tado do Chão, essa mag­ní­fica obra onde de­finiu um es­tilo li­te­rário in­con­fun­dível.

Nela acom­panha-se três ge­ra­ções da fa­mília Mau Tempo no la­ti­fúndio alen­te­jano e, através delas, a fome, o obs­cu­ran­tismo e a ex­plo­ração a que os ope­rá­rios agrí­colas eram su­jeitos às mãos dos agrá­rios, e a brutal vi­o­lência da po­lícia ao seu ser­viço, num lugar e num tempo pro­fun­da­mente de­si­guais e in­justos. Mas ali estão também ins­critos, e ma­gis­tral­mente des­critos, o des­pertar das cons­ci­ên­cias, a co­ra­josa e pa­ci­ente re­sis­tência, a luta por uma vida me­lhor – que de­sem­bo­caram na Re­vo­lução de Abril e na sua mais bela con­quista, a Re­forma Agrária.

Há dias, na terra que viu nascer o es­critor, a can­di­da­tura da CDU es­teve reu­nida com de­zenas de imi­grantes, mai­o­ri­ta­ri­a­mente oriundos da Índia e do Pa­quistão. Tra­ba­lham em ex­plo­ra­ções agrí­colas, so­bre­tudo, mas oca­si­o­nal­mente também na cons­trução civil, num como noutro caso a troco de muito pouco, por vezes até de quase nada. Nesta busca diária do ganha-pão, nas con­di­ções di­tadas pelo pa­trão (tantas vezes abaixo da lei e da ele­mentar hu­ma­ni­dade), é di­fícil não ver se­me­lhanças com as praças de jorna de má me­mória.

Nessa reu­nião, se­me­lhante a tantas ou­tras re­a­li­zadas em tantos ou­tros lu­gares, afirmou-se que o PCP e a CDU não fazem dis­tinção entre tra­ba­lha­dores, in­de­pen­den­te­mente da sua origem: «nós de­fen­demos a classe tra­ba­lha­dora» e todos – sem ex­cepção – devem ter sa­lá­rios dignos, con­tratos, pro­tecção so­cial, ha­bi­tação, saúde. Tudo aquilo, por­tanto, «a que um ser hu­mano deve ter di­reito».

Ali re­a­firmou-se também a de­ter­mi­nação em dar com­bate firme aos que pre­tendem res­pon­sa­bi­lizar os imi­grantes pelos pro­blemas do País, pro­cu­rando que se es­queça que também os por­tu­gueses emi­gram em busca de uma vida me­lhor e ili­bando os ver­da­deiros res­pon­sá­veis: os par­tidos que servem aqueles que en­ri­quecem com a ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores, sejam eles imi­grantes ou por­tu­gueses.

Pese em­bora as di­fe­renças cul­tu­rais e lin­guís­ticas, saiu re­for­çada a so­li­da­ri­e­dade que une sob uma mesma ban­deira – e uma mesma luta – os ex­plo­rados de todo o mundo e foram en­ce­tados ca­mi­nhos de or­ga­ni­zação, esse chão fértil de onde brotam todas as vi­tó­rias. Como dizia Sa­ra­mago, é pre­ci­sa­mente do chão que se le­vantam as se­aras e as ár­vores, mas também os ho­mens e as suas es­pe­ranças.

 https://www.avante.pt/pt/2623/opiniao/174875/Levantados-do-ch%C3%A3o.htm

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