Também eu…
DESDE Séneca, Adriano, Averróis, Afonso X, Lope de Veja, Cervantes, Goya, Ortega y Gasset, Picasso e também os seus simétricos Loyola, um biltre desejoso da Inquisição, e Escrivá, o fundador já canonizado da Opus Dei e mesmo o general franquista Millán-Astray, que, em 1936, gritou a Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, “Viva la muerte! Muera la inteligência!”, desde então, convém saber, a vida e a morte são as duas faces indescoláveis da mesma questão.
Agora há mais dois espanhóis, Juan José Millás, um escritor muito na berra, dentro fora do país nosso vizinho, e um paleoantropólogo não menos célebre, Juan Luís Arsuaga, que tropeçam na mesma questão, mas em termos mais inquietantes, ou mesmo desestabilizadores das consciências que se mantenham atentas aos maus encontros da ciência sempre inacabada.
Em conjunto, refletem ambos sobre o humano, a evolução, a morte e o envelhecimento. Vão pondo isso em livros o último dos quais é “A Morte Contada por Um Sapiens a Um Neandertal”. Ou seja, na confissão do paleoantropólogo, coescreveu um “objeto” que tem tanto de ciência como de literatura, que pode ler-se como um ensaio e como um livro de ficção.
Arsuaga é professor da Universidade Complutense de Madrid e co-diretor, desde 1991, do projeto de investigação das jazidas fósseis da serra de Atapuerca, em Burgos, Espanha, um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo – que, deploravelmente, eu até agora desconhecia – e isto no que toca à evolução humana.
Passou os últimos 40 anos a estudar os nossos antepassados, o que o leva a reconhecer que “os nossos genes são paleolíticos” e que “as pessoas do Paleolítico comiam tudo o que conseguiam, com grandes períodos de jejum forçado”.
E pergunta se alguém consegue “imaginar um pássaro granívoro cujo nutricionista o aconselhasse a comer alguns insetos que não existem no seu ambiente”.
É que “não se pode viver num nicho e comer o que outro produz. Os peixes não comem carne de vaca”.
Isto, neste tom coloquial, para nos advertir de que “a morte é o maior problema da biologia. Há dois tipos de morte, a morte que vem de fora sob a forma de acidentes, parasitas, infeções, catástrofes naturais, ataques de animais, fome, sede, insolação, frio ou violência e a morte que vem de dentro. Mesmo que eliminássemos a morte que vem de fora, restaria sempre a morte que vem de dentro, que se chama doenças crónicas. Porque é que as doenças crónicas existem? Porque é que a evolução não as eliminou? (…) A morte é impossível de admitir, mas a verdade é que não pensamos nela durante todo o dia. A morte não é visível. A velhice é muito mais visível”.
Tudo isto parece muito simples, mas há coisas que podem não o parecer e têm enormíssima complexidade, o que Arsuaga não simplifica, como é o caso da perda de vigor sexual, um dos grandes marcos do envelhecimento, a perda de alguma rapidez do raciocínio e a progressiva decadência física.
E assevera:
“Pessoalmente não posso falar, porque ainda não me sinto limitado pela idade em nenhuma função importante”, disse ao “Público” (2.3.2024). O que mais temo, claro, é a doença de Alzheimer e qualquer outra doença neurodegenerativa.”
Também eu. Obviamente.
2024 03 02
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Luto ou luta?
VOLTANDO ao melancólico tema do meu apontamento de anteontem, em que cito o paleoantropólogo espanhol Juan Luís Arsuaga e o seu medo da doença de Alzheimer, há que pôr aqui algumas reticências. É que, para ser absolutamente honesto, como gosto de ser e parecer, eu devia também tê-lo citado quando assevera:
“O que o ser humano procura é ser eternamente jovem, não eternamente velho. Reverter a velhice e recuperar a juventude, ou seja, o rejuvenescimento, é impossível. Mas podemos tornar-nos centenários com uma qualidade de vida razoavelmente boa. Este é um objetivo científico que faz sentido e que é possível e aceitável.”
Por mim, tudo bem, desde que, por essa via, não se duplique a população do planeta para se morrer de fome e não de Alzheimer ou de qualquer outra doença neurodegenerativa.
Até porque, diz ele, “muitos dos nossos problemas têm origem no dualismo/mente corpo da cultura ocidental. Temos de ser felizes através do corpo, não fora do corpo. Somos corpo toda a vida, em qualquer idade, e podemos sempre desfrutar do corpo, se soubermos como o fazer. Não é preciso ser jovem para ter um corpo. (…) Os gregos pensavam que o nosso corpo era o abjeto mais belo e harmonioso da Terra. Receio que tenhamos perdido a perspetiva grega – e renascentista – e é urgente recuperá-la.”
Nem mais!
E, como tenho o ecrã da televisão à minha frente, reparo que, no Mezzo, a Orquestra Sinfónica de Londres ataca virtuosamente uma peça muito enérgica de Bruckner, a 7.ª Sinfonia.
Quem rege é um multiexpressivo e ondulante Simon Rattler, ora sorridente, ora ameaçador, de farta cabeleira branca e todo de preto vestido. Ou seja, todo em modo corvídeo, do pescoço aos pés. Ao contrário dos outros, não usa camisa, embora também não esteja de gravata e tenha bem apertada a gola do casaco talhado a rigor.
A totalidade vasta do o pessoal da orquestra, igualmente sem gravata, exibe-se também de negro vestida a tem a branquíssima camisa desabotoada. São mulheres e homens, loiros e morenos, carecas uns e detentores outros de cabeleiras volumosas, onduladas, a cobrir orelhas e, nalguns casos, até os ombros.
As notas de Bruckner são-nos entregues, uma a uma, perfeitamente definidas, nos pianíssimos e nos fortes, articuladas numa sequência cósmica, como estrelas intangíveis.
Indefeso neste assombro, agarro-me à tarefa de retratar estas luminosas figuras escuras, os seus trajes e o cristalino som que me enviam do Mezzo, mas que podia vir do Olimpo.
E, pensando em mim, pergunto-me, agora, se eles e elas estão de luto ou em luta.
2024 03 04
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