CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
* António Guerreiro
7 de Março de 2024
A política-espectáculo cresce à
medida que diminui o poder político que se exerce no interior de um Estado que
é cada vez menos soberano.
Um dos slogans inventados no Maio de 68,
às vezes recordado como uma peça de arqueologia revolucionária, como muitos
outros surgidos nesse tempo, desdenhava alegremente do acto essencial da
afirmação da democracia: “Élections, piège à cons”.
Traduzido em português nunca funcionaria porque perde a rima e o ritmo
prosódico: “Eleições, armadilha para imbecis”.
Actualmente, não existe no
espectro político nenhum extremo que ouse pôr em causa o formalismo democrático
do voto. “Porquê votar?” não é pergunta que hoje se faça publicamente e com um
alcance político programático. Em contrapartida, tem aumentado incessantemente
os que se interrogam – “Em quem votar?” – até ao momento de colocar a cruz no
boletim e os que, incapazes de decidir, engrossam as fileiras dos
abstencionistas.
Os “indecisos”
tornaram-se uma categoria decisiva. Por isso é que as sondagens, outrora tão
fiáveis, se tornaram um deficiente instrumento de medição do resultado final.
Podemos pressentir que se deu um fenómeno de inversão ou de reversibilidade: as
sondagens, que dantes calculavam com precisão as intenções de voto sem
interferir nelas de maneira significativa, tornaram-se um elemento que
determina, em última instância, a escolha do eleitor. O eleitor informado toma
as sondagens para calcular o sentido do seu voto.
Evidentemente, isso deu-se à
medida que se multiplicaram as sondagens pré-eleitorais e que os cidadãos
aprenderam a lê-las e a avaliá-las na sua dimensão performativa, isto é,
enquanto acção pragmática. Mas tal aconteceu porque aumentou o voto estratégico
que oscila em função das configurações da paisagem eleitoral, das posições dos
partidos nos rankings. Isto significa que as
sondagens, através deste processo de retroacção, entram ilegitimamente no jogo eleitoral? Se elas,
afinal, são um instrumento do cálculo do eleitor e não a sua
instrumentalização, então não devemos tirar essa conclusão. O problema está
noutro lado: na modalidade do discurso político que engendrou este
cidadão-termostato cuja acção é profundamente uma reacção.
Vivemos colectivamente (refiro-me
ao espaço público mediático), durante estas últimas semanas, sob o primado da
política dos políticos e da política dos media. A cena
política, em momentos como este, transforma-se numa arena onde cada um exibe
uma virtual potência de decisão em todos os domínios da sociedade. Sabemos, no
entanto, que tanta vontade e preparação para fazer mil e uma coisas não passa
de tagarelice por várias razões: porque quem chega ao poder governamental tem
de se conformar com uma fraca soberania, só pode agir respeitando os poderes
formais e informais das instituições europeias, das contingências
internacionais do mundo globalizado (as guerras, as crises económicas, os
ditames da grande finança mundial, etc.); porque a classe política, por mais
que tenha a seu cargo a acção administrativa e gestionária, não consegue
realizar o que propõe nos seus discursos porque se confronta com o
condicionamento dos poderes burocráticos.
Há uma regra que não devemos esquecer: a política-espectáculo cresce à medida
que diminui o poder político que se exerce no interior de um Estado que é cada
vez menos soberano.
Este discurso funciona sob o
signo da infantilização. Por todo o lado a política é vista como uma vulgata
para crianças retardadas. E as campanhas eleitorais não são mais do que um
simulacro. Mas talvez esta seja uma condição benévola: muito pior seria que não
se cumprissem os protocolos para salvar as aparências que asseguram, apesar de
tudo, alguma estabilidade do sistema.
Seria, no entanto, muito
interessante saber em que acreditam verdadeiramente os protagonistas políticos,
quando já estão fora do jogo eleitoral. Ao contrário do que se passa noutros
domínios de actividade, este é um campo onde raramente se pratica o metadiscurso,
o desdobramento reflexivo: há um pathos de
primeiro grau que sobrevive e se torna duro como pedra em quem ocupou cargos
políticos de relevo. Entre nós, Cavaco
Silva ilustra com uma rara intensidade expressiva esta persistência do
discurso naïf de primeiro grau.
Livro de Recitações
“Travar a crise climática não está na mesa de voto
Slogan do
movimento máximo
Entre as várias razões que tornam
inadequado e até contraproducente alguns aspectos do discurso e da acção destes
“activistas” (tratarei de analisar em breve esse discurso) está o uso da
expressão “crise climática”.
É certo que ela chega até nós
mediada por muitas instâncias e entrou na linguagem corrente. Mas quem assumiu
a missão – louvável e grandiosa – de alertar a opinião pública para este
problema e levar os poderes políticos e económicos a agir de modo a interromper
uma desastrosa corrida tem de começar por rejeitar a linguagem que neste campo
é acriticamente usada e transmitida: a metáfora da “crise”, que até na política
e na economia tem muitas vezes um objectivo de ocultação, revela-se pouco
certeira para designar as alterações climáticas. As crises são momentos breves
no curso das sociedades, correspondem a situações temporárias em que se dá uma
perturbação do que antes dela era a normalidade.
A saída de uma crise implica, em maior ou menor grau, uma metamorfose. Ora,
aquilo que é designado como “crise climática” afecta o receptáculo de todas as
nossas actividades, não é uma “crise” particular e localizada.
E, ainda mais importante, a temporalidade dos acontecimentos ambientais não tem nada que ver com a temporalidade das perturbações sociais e políticas que a palavra “crise” designa: trata-se de uma temporalidade que se situa numa escala geológica.
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