segunda-feira, 4 de março de 2024

Fernando Pessoa e Oliveira Salazar


Cartoon - Fernando Pessoa visto por Rita Ravasco


* Fernando Pessoa

 Sim, sou situacionista. Mas vamos lá a uma coisa…
 

Há três maneiras de ser situacionista, isto é, de ser partidário de qualquer situação política. A primeira é a conformidade por doutrina; a segunda a conformidade por aceitação; a terceira a conformidade por não-oposição. Deixo de parte uma das mais vulgares — a conformidade por vantagem —, porque não é disso que se trata, pelo menos em mim.

A conformidade por doutrina quer dizer que o partidário está de acordo com o programa político da situação a que adere. A conformidade por aceitação quer dizer que o partidário, sem que adira ao todo ou a parte desse programa, confia todavia na situação e se abstém de pôr pontos doutrinários. A conformidade por indiferença vale por adesão por só não ser hostilização.

Sou situacionista por aceitação. Não discuto problemas políticos, constituições ou programas. Confio instintiva mas não irracionalmente, no General Carmona e no Professor Salazar.

Confio no General Carmona porque tem a mais segura mão de timoneiro que há muitos anos temos tido. Desde quando, no período agudo da Ditadura, apoiou a acção defensiva e patriótica do General Vicente de Freitas, até quando, havendo já calma para pensar, deu apoio à acção coordenadora do Prof[essor] Salazar, o Presidente da República tem-se mantido numa atitude que é rara em qualquer caso, e raríssima em política — a maleabilidade dentro da dignidade. É um aristocrata da adaptação.

Confio no Prof[essor] Salazar por um motivo primário e dois motivos secundários. O motivo primário é aquele de ter as duas notáveis qualidades que ordinariamente falecem no português: a clareza firme da inteligência, a firmeza clara da vontade. Dos motivos secundários, o primeiro é o que tenho notado de realmente feito e que antes se não fazia — tudo isso que vai desde os navios e as estradas até tentar dar a um país sem ideal nacional pelo menos o pedido de que pense em tê-lo. O segundo desses motivos é o acréscimo do nosso prestígio no Estrangeiro. Conheço a sua realidade por informações directas, e não por citações de jornais, susceptíveis sempre de suspeitas reais, factícias ou fictícias. E, neste esquema de adesão translata, é de meu dever dizer que junto ao nome do Prof[essor] Salazar o do Prof[essor] Armindo Monteiro.

Disse que confio porque confio. Não vou mais longe. Se me perguntarem se compreendo a obra financeira do Prof[essor] Salazar, digo que não, porque nada sei de finanças. Confio. Se os seus opositores me disserem que por estas e aquelas razões, essa obra é má, digo, com igual fundamento, que não sei. Confio.

Dito isto, compreendamo-nos melhor. Além do situacionista que sou, sou um individualista absoluto, um homem livre e um liberal. E isto faz que tenha uma perfeita tolerância pelas ideias dos outros, que seja incapaz de considerar um crime o pensar outro do modo que não penso.

Por isso, esta confiança, que tenho no Prof[essor] Salazar, me não impõe a mais pequena sombra de aversão a, por exemplo, o Prof[essor] Afonso Costa. Timbro em afirmar por ele a minha absoluta consideração. Esse homem foi o único que cumpriu integralmente, no Governo Provisório, o que prometera na propaganda. Prometeu a Lei do Divórcio: fê-la. Prometeu a Lei da Família: fê-la. Prometeu a Lei da Separação: fê-la. Se as fez bem ou mal, do ponto de vista jurídico, não sei, porque não sou jurista. Sei que prometeu e cumpriu. Não sou, evidentemente seu correligionário, mas não consigo ser seu inimigo. Nego-lhe o meu apoio; não posso negar-lhe o meu respeito. Sigo o preceito do Prof[essor] Salazar: política de verdade.

E neste critério, e com os fundamentos de que for capaz, continuarei, sempre que Deus quiser, a defender a Maçonaria.

1928
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.  - 217.

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ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR

António de Oliveira Salazar.

Três nomes em sequência regular...

António é António.

Oliveira é uma árvore.

Salazar é só apelido.

Até aí está bem.

O que não faz sentido

É o sentido que tudo isto tem.

......

Este senhor Salazar

É feito de sal e azar.

Se um dia chove,

A água dissolve

O sal,

E sob o céu

Pica só azar, é natural.

Oh, c'os diabos!

Parece que já choveu...

......

Coitadinho

do tiraninho!

Não bebe vinho.

Nem sequer sozinho...

Bebe a verdade

E a liberdade.

E com tal agrado

Que já começam

A escassear no mercado.

Coitadinho

Do tiraninho!

O meu vizinho

Está na Guiné

E o meu padrinho

No Limoeiro

Aqui ao pé.

Mas ninguém sabe porquê.

Mas enfim é

Certo e certeiro

Que isto consola

E nos dá fé.

Que o coitadinho

Do tiraninho

Não bebe vinho,

Nem até

Café.

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979. 

 - p. 349.

1ª publ. in Diário Popular , Lisboa, 30 Maio e 6 Junho 1974 . inc? CF. lello - fotoc



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Salazar - Um cadáver emotivo,

Salazar


Um cadáver emotivo, artificialmente galvanizado por uma propaganda...

Duas qualidades lhe faltam — a imaginação e o entusiasmo. Para ele o país não é a gente que nele vive, mas a estatística d'essa gente.


Soma, e não segue.

1932?

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

  - 221.

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O Prof. Salazar é muito mais inteligente e muito mais culto,

O Prof. Salazar é muito mais inteligente e muito mais culto, ainda que a sua inteligência seja monocórdica e a sua cultura unilateral. Tem uma inteligência do tipo científico, mas sem ser céptica; tem uma cultura do tipo humanístico, mas sem ser literária. Isto lhe dá aquela unidade psíquica de onde resulta a sua formidável disciplina e energia; isto, ao mesmo tempo, o desumaniza.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

  - 220.

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O Prof. Salazar tem, em altíssimo grau, as qualidades secundárias…

O Prof. Salazar tem, em altíssimo grau, as qualidades secundárias da inteligência e da vontade. É o tipo do perfeito executor da ordem de quem tenha as primárias.


O chefe do Governo tem uma inteligência lúcida e precisa; não tem uma inteligência criadora ou dominadora. Tem uma vontade firme e concentrada, não a tem irradiante e segura. É um tímido quando ousa, e um incerto quando afirma. Tudo quanto faz se ressente d'essa penumbra dos Reis malogrados.


Quando muito, na escala da governação pública, poderia ser o mordomo do país.


Faltam-lhe os contactos com todas as vidas — com a vida da inteligência, que vive de ser vária e, entre os conflitos das doutrinas, não sabe decidir-se; com a vida da emoção, que vive de ser impulsiva e incerta; com a vida da (...)

O Chefe do Governo não é um estadista: é um arrumador. Para ele o país não se compõe de homens, mas de gavetas. Os problemas do trabalho e da miséria, como há ele de entendê-los, se os pretende resolver por fichas soltas e folhas móveis?


A alma humana é irredutível a um sistema de deve e haver. É-o, acentuadamente, a alma portuguesa.


Às vezes aproxima-se do povo, de onde saiu. E traz-lhe uma ternura de guarda-livros em férias, que sente que preferiria afinal estar no escritório.


É sempre e em tudo um contabilista, mas só um contabilista. Quando vê que o país sofre, troca as rubricas e abre novas contas. Quando sente que o país se queixa, faz um estorno. A conta fica certa.


O Prof. Salazar é um contabilista. A profissão é eminentemente necessária e digna. Não é, porém, profissão que tenha implícitas directivas. Um país tem que governar-se com contabilidade, não pode governar-se por contabilidade.


Assistimos à cesarização de um contabilista.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

  - 222.

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POEMA DE AMOR EM ESTADO NOVO

Tens o olhar misterioso

Com um jeito nevoento,

Indeciso, duvidoso,

Minha Marta Francisca,

Meu amor, meu orçamento!

A tua face de rosa

Tem o colorido esquivo

De uma nota oficiosa.

Quem dera ter-te em meus braços,

Ó meu saldo positivo!

E o teu cabelo — não choro

Seu regresso ao natural —Abandona o padrão-ouro

Amor, pomba, estrada, porta,

Sindicato nacional!

Não sei por que me desprezas.

Fita-me mais um instante,

Lindo corte nas despesas,

Adorada abolição

Da dívida flutuante!

Com que madrigais mostrar-te

Este amor que é chama viva?

Ouve, escuta: vou chamar-te

Assembleia Nacional

Câmara Corporativa.

Como te amo, como, como,

Meu Acto Colonial!

De amor já quase não como,

Meu Estatuto de Trabalho,

Meu Banco de Portugal!

Meu crédito no estrangeiro!

Meu encaixe — ouro adorado!

Serei sempre o teu romeiro...

Pousa a cabeça em meu ombro,

Ó meu Conselho de Estado!

Ó minha corporativa,

Minha lei de Estado Novo,

Não me sejas mais esquiva!

Meu coração quer guarida

Ó linda Casa do Povo!

União Nacional querida,

Teus olhos enchem de mágoa

A sombra da minha vida

Que passa como uma esquadra

Sobre a energia da água.

Que aristocrático ri,

O teu cabelo em cifrões — Finanças em mise-en-plis! —

Meu activo plebiscito,

Nunca desceste a eleições!

Por isso nunca me escolhes

E a minha esperança é vã.

Nem sequer por dó me acolhes,

Minha imprevidente linda

Civilização cristã!

Bem sei: por estes meus modos

Nunca me podes amar.

Olha, desculpa-mas todas.

Estou seguindo as directrizes

Do professor Salazar.

9-9-1935

Fernando Pessoa - O Último Ano. (Catálogo da Exposição Comemorativa do Cinquentenário da Morte de Fernando Pessoa, organizada e coordenada por Teresa Sobral Cunha e João Rui de Sousa.) Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985.

  - .

N. do A.: «o demoliberalismo maçónico-comunista»



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[Carta ao Presidente da República - b]

Quer isto dizer, Senhor Presidente, que uma nação haja sempre de ser governada por chefes acentuadamente tais, que não haja período em que possam estar no poder os inteligentes sem aura e os patriotas sem prestígio? Não o quer dizer. O que porém quer dizer é que esse prestígio de chefe, desnecessário muitas vezes num governo de época normal, é indispensável num governo de época anormal, imprescindível num governo de autoridade. O que porém quer dizer é que o Prof[essor] Salazar, não tendo tal prestígio, nem maneira de o ter, se deixou investir da aparência d'ele. É a sua túnica de Nessus[.J


Ninguém pode legitimamente culpar o actual Presidente do Conselho de não ter qualidades que não tem; pode legitimamente fazer-se de, não tendo tais qualidades, pretender tê-las e ter-se colocado em situação de, não podendo tê-las, ser todavia necessário que as tenha.


Culpa-se o Prof[essor] Salazar d'isto: de ser incompetente para o cargo que assumiu.

1935

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

  - 229.


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[Carta ao Presidente da República - d]

Destinado assim naturalmente por Deus para executor de ideias de outrem, visto que as não tem próprias, de secretário de prestígio alheio, porque o não pode conquistar seu, o Prof[essor] Salazar quis alçar-se, ou deixou que o quisessem alçar, a um pedestal onde mal se acomoda, a um trono onde não sabe como sentar-se. Não conseguiram os titãs, e eram titãs, escalar o Olimpo; como o conseguirão os anões, condenados, para que possam parecer grandes, ao desequilíbrio constante das andas que lhes ataram às pernas?

1935

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

  - 231.


Pesquisa porsalazar:  in Arquivo Pessoa  http://arquivopessoa.net/ 

Cartoon in https://industriacriativa.pt/projeto/3171/fernando-pessoa

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