sexta-feira, 12 de julho de 2024

Tiago Franco - Morrer em Kiev ou desaparecer em Gaza


* Tiago Franco 

Não sei se sabem onde fica Khan Yunis e por isso recorro ao amigo Google para ilustrar. Como podem verificar, fica ali naquela zona sul de Gaza para onde a populacão foi aconselhada a procurar "refúgio", durante o período em que o exército israelita tratava da saúde ao Hamas.

Há pouco dias uma escola em Khan Yunis foi atingida por um míssil, enquanto uns miúdos jogavam à bola e outros ocupantes (a escola estava transformada em abrigo) assistiam. Morreram 31 pessoas, entre mulheres e criancas, e outros 50 ficaram feridos.

Não houve discussão sobre o autor do ataque, dúvidas ou sequer desculpas de última hora. Israel disse, apenas, que usou um míssil de alta precisão para matar um importante alvo do Hamas. Matou 31 e feriu mais de 50, para acertar em 1. Agora imaginem se não fosse de alta precisão.

Aqui do nosso lado, no famoso Ocidente, tudo bem. Pouca discussão, nenhuma condenacão e obviamente sem solidariedade que se apalpe. Como nos diz Helena Ferro Gouveia, a culpa das mortes em Gaza é exclusivamente do Hamas. E aqui entre nós, mesmo que não fosse, quem é que quer saber de árabes que andam a morrer há décadas? Aquilo é gente que só está bem a rebentar, como nos diria um gato que já foi fedorento. 

É aliás caricato culpar o Hamas pelo genocídio em curso na faixa de Gaza. Foi o Hamas que construiu muros, meteu palestinianos numa prisão a céu aberto e os humilhou, durante décadas, em gaiolas e revistas, só para poderem ir trabalhar. Andamos, aqui no Oeste (selvagem), a desculpar as atrocidades contra palestinianos que se arrastam desde o século passado. Quando a resposta dos povos ocupados aparece em formato de guerrilha (não podem ter outro dada a desproporcão de meios), passamos a culpá-los por não aceitarem apenas morrer em silêncio.

Não vos dá, por um segundo que seja, vergonha de serem representados por uma retórica hipócrita e desonesta?

Em Kiev um hospital foi atacado por um míssil. Morreram duas pessoas (adultos) e ficaram outros 16 feridos (7 criancas). Ao contrário da nossa Helena, eu acho aborrecido morrer e não faco esse aborrecimento depender da zona geográfica em que acontece a morte. E também não separo mortes por credos, etnias, cor da pele ou quantidade de cachos no cabelo. Lamento a morte de um homem num hospital de Kiev, de um miudo em Gaza, de um soldado das IDF ou de um russo no Donbass. São os pobres que dão o corpo, militar ou civil, para enriquecerem as elites, os senhores da guerra e os interesses corporativos das nacões. 

Depois do missil ter aterrado no hospital, seguiram-se dias de absoluta condenacão e discussões nas mais altas instâncias (NU, por exemplo). Os representantes ucranianos mostraram a rota do missil para provar que era russo e os russos, por seu lado, rejeitaram as acusacões, dizendo que se tivesse sido um missil deles, o hospital tinha ficado todo no chão. O alvo, segundo os russos, era uma fábrica de armamento ali ao lado e o que atingiu o hospital foi um da defesa anti-aérea. 

Não faço ideia quem diz a verdade e sei ainda menos se existe verdade sequer. Morreram pessoas e é esse o problema. É essa a consequência de quando queremos perpetuar uma guerra. Pessoas morrem.

Eu entendo pouco de mísseis e, como tal, fui ouvir quem sabe da coisa. Dizem os entendidos que o KH-101 (o tal míssil que afirmam ter caído no hospital) é uma coisa com quase 8 metros, tem umas asas e quando bate não pede licenca. Em princípio não deveria ser muito difícil apresentar destrocos de um projétil com 8 metros mas, segundo o que vou lendo, ainda não apareceu.

Ainda assim, esta discussão é, na minha opinião, estéril. Já passámos por isto na central de Zaporizjzja, em Mariupol, no Nordstream 2 e até no avião da Malasia Airlines. A primeira vítima de uma guerra é a verdade e eu não espero que de um lado venham as virtudes e, do outro, os defeitos. É uma guerra e, no seu curso, não existem bons e maus. Quem vê isso (ainda) assim, como diria Miguel Tiago, andou a aprender história no Rambo III.

O que realmente me importa discutir aqui são os valores do Ocidente e como a UE, que nos representa, se mete nisto. Se morrem 2 pessoas num hospital de Kiev, o discurso inflama-se e até a Nato comeca a apertar com os chineses. Já se um hospital é arrasado em Gaza ou se uns putos, perto de Rafah, levam com um  missil enquanto jogam à bola...são os danos colaterais. Lembrem-se que "nós" cantámos vitória quando Israel matou 300 pessoas para libertar 4.

Eu não entendo, mas não entendo mesmo, como é que vidas podem ter valores tão diferentes e solidariedade com povos invadidos pode ser tão distante.

Na Ucrânia enfrentam-se dois exércitos, um deles patrocinado por todos nós. Mesmo todos nós, querendo ou não. Em Gaza enfrentam-se um exército e um bando de gajos com rockets e motas famel. No primeiro caso o mundo pára e faz tudo para segurar o invasor. No segundo, bom, o invasor só se está a defender contra um exército que não existe e um povo que eles próprios prenderam.

Em Kiev morrem pessoas, gente que existe e com quem todos nos preocupamos. Em Gaza desaparecem seres humanos sem nome que, quanto muito, vão ser relembrados em forma de número, no gráfico das mortes.

Se isto não é a mais simples, básica e cristalina, definicão de racismo, então não sei o que será.

2024 07 12

https://www.facebook.com/tiago.franco.735

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