sexta-feira, 26 de julho de 2024

Carlos Matos Gomes - OTELO | o fantasma da Revolução




* Carlos Matos Gomes 

25 Abril 2024
 

A ação que celebramos, o 25 de Abril de 1974, foi planeada e comandada por um fantasma. Um fantasma com o nome dissolvido num ácido de conveniências.

Os fantasmas são por definição aparições de inconvenientes. Terei lido num texto de Miguel de Unamuno, o filósofo espanhol, que Dom Quixote, a personagem de Cervantes prenunciou o destino final, solitário e triste, de todos os cavaleiros andantes, fantasmas, digo eu, que citaria também uma declaração de Simón Bolívar, em que o revolucionário das Américas, admitia que Jesus Cristo, Dom Quixote e ele próprio eram (tinham sido) os maiores ingénuos da História.

Otelo pode com propriedade ser incluído nesta lista.

E quanto à forma como tem sido esquecido também pode ser comparado a uma outra figura marginal da historiografia oficial, neste caso do Brasil, porque o fenómeno dos fantasmas da História é universal, o do negro João Cândido, que no início do século XX liderou uma revolta de marinheiros contra a violência na Marinha, a «Revolta da Chibata». A ação foi meticulosamente planeada e executada, mas esquecida, por inconveniente, porque contrariara a doutrina da superioridade racial branca. João Cândido viveu o resto da sua vida esquecido, por inconveniente.

Otelo foi e continua a ser inconveniente a vários títulos. Como militar, era um major recente, regressado de uma comissão na Guiné, professor de artilharia na Academia Militar, sem cursos nem pergaminhos de estado-maior, também não o aureolava o estatuto de herói da guerra colonial, apenas cumprira com competência as suas funções de comandante de companhia, no entanto foi ele quem planeou com o brilhantismo confirmado pelo êxito a operação nacional das forças armadas de Norte a Sul do país e quem comandou a execução das ações a partir da sala de operações montada no quartel da Pontinha, acompanhado por outros oficiais, alguns deles mais antigos e teoricamente mais bem preparados do que ele. Foi ele o comandante! Um facto revelador da sua personalidade, da sua energia e determinação.

Como alguém escreveu, ser herói é ter coragem de fazer o que é certo num determinado momento. Otelo teve essa coragem: É ele que apoia a ação de contenção de Salgueiro Maia, de correr os riscos de não precipitar a ação no Largo do Carmo, com um ataque imediato. De contemporizar. É ele que autoriza que o povo envolva as tropas e os blindados de Salgueiro Maia: o povo pode entrar, porque a ação militar é para o povo. Ele e Maia têm desde o início a consciência do destinatário da ação militar: «O povo, pá!» Ora o povo é sempre inconveniente para os poderes de facto. Otelo e Maia serão fantasmas que têm o povo atrás deles. Mais Otelo do que Maia.

Desde a primeira hora Otelo e Maia estão do lado da (in)conveniência popular. É Otelo que dá ordem a Salgueiro Maia de disparar contra o quartel da GNR, para forçar a definição da situação, e é ele que decide que a rendição de Marcelo Caetano seja feita ao general Spínola, com vantagens e inconvenientes, mas foi ele quem decidiu!

As inconveniências de Otelo que o transformaram no fantasma em que ele hoje é tido atingiram o cume com o que fez no COPCON, ou do COPCON. O poder assenta sempre na força. Na ponta das espingardas, na frase de Mao Tse Tung, ou na que o rei Luís XIV de França mandou inscrever na boca dos canhões ultima ratio regum, “a força é o último argumento dos reis”.

Otelo fez do Comando Operacional do Continente, das forças armadas portuguesas, a força do povo, e aqui é de recordar dois outros fantasmas: Carlos Fabião e Eurico Corvacho que estiveram desse lado, e também Pezarat Correia, que embora subscritor do Documento dos Nove, o manifesto que agregou as “forças da normalidade”, mas que por ter desenvolvido um papel de grande relevo na descolonização de Angola e de, em Portugal, ter comandado a Região Militar de Évora, empregando as forças militares com apurado sentido político durante o dificílimo período da Reforma Agrária, pagou a compreensão pela atitude dos camponeses alentejanos com a não promoção a tenente-general. Não me esqueço do esquecimento de outro fantasma, Ernesto Melo Antunes, com quem nunca privei, de quem discordei, mas de quem conheço e reconheço o papel relevante que desempenhou no 25 de Abril. Recordo a forma como foi tratado até no seu último ato: no seu funeral, no cemitério do Alto de São João, onde estive, não apareceu nem um membro do governo, nem nenhum político de primeira linha. A verdadeira Liberdade paga-se com esquecimento.

Colocar as forças armadas como suporte das forças populares era e foi uma heresia inadmissível pelas classes reinantes. As que a 25 de Novembro de 1975, tendo contratado tropas para o seu serviço, impuseram o regresso aos quartéis dos conscritos, isto é, à função tradicional de defesa dos grupos dominantes, os velhos devoristas que saíram das tocas onde se haviam escondido, das sacristias, os que regressaram de exílios e os novos devoristas que se haviam aproveitado dos vazios abertos pela retirada dos velhos senhores — os novos oportunistas que hoje são os que pretendem sacralizar o 25 de Novembro, como o dia em que lhes saiu a lotaria e se fizeram democratas, como os poltrões sucessores dos que no vintismo do século XIX se fizeram viscondes e barões.

A revolução portuguesa, como todas as revoluções, ou se definiria por uma alteração de campo da força que exercia o poder, ou não seria uma revolução, nada mais seria do que uma atualização de figurino para o exercício do poder. Otelo é a personagem que configura a revolução, porque transfere o poder das armas da defesa de uma minoria, a oligarquia nacional representante dos poderes e dos interesses instalados no espaço civilizacional da Europa e dos Estados Unidos, para defesa das classes sociais historicamente dominadas a todos os títulos, social, económica e politicamente. Otelo, através do COPCON, não só deu voz aos emudecidos, como lhes proporcionou o acesso ao discurso e à decisão.

Foi a existência do COPCON sob o comando de Otelo que possibilitou a suprema heresia da nacionalização da banca, o que corresponde à profanação do sacrário do sistema que desde 1825 a família Rothschild criou em Londres, tecendo através do Banco de Inglaterra o sistema de “dívidas soberanas”, que replicou nos Estados Unidos ao conseguir que, em 1913, o Congresso dos EUA autorizasse a criação do Federal Reserve Bank, o Banco Central dos Estados Unidos popularmente conhecido por “Fed”, de que a família Rothschild também tomou o controlo, garantido o direito de emissão de moeda nos EUA através do Tesouro Americano e sem juros. A nacionalização da banca portuguesa foi uma ofensa ao dólar! Imperdoável! Não seria possível sem o suporte da força armada, do COPCON!

Na história de oito séculos de Portugal apenas no episódio do que ainda hoje o discurso oficial hesita em considerar como crise de 1385 ou revolução de 1385, o povo teve a força armada a seu lado. Mas foi sol de pouca dura. Leiam-se as «Crónicas» de Fernão Lopes. Após a incensada batalha de Aljubarrota toda a narrativa se concentra na normalização do complexo processo de transformações políticas e sociais que recriaram a antiga hierarquia de poder das ordens, clero, nobreza e povo, e que conduziram Portugal à dependência da Inglaterra, na condição de estado vassalo, em que se manteve até ao final da Segunda Guerra, quando passou a depender dos Estados Unidos. No século XIV rapidamente os revolucionários, segundos filhos e bastardos, reunidos à volta das figuras de linhagens secundárias de João de Avis, um bastardo, e Nuno Álvares Pereira, filho natural do prior da Ordem do Hospital, reconstituíram naturalmente a velha ordem dos privilégios e recolocaram o povo no seu lugar, a remar nas naus e a cavar nas terras senhoriais. A experiência de dar armas ao povo apenas ocorrerá numa outra única oportunidade com a tentativa de legitimação como rei de Portugal de António, prior do Crato, derrotado na batalha da ribeira de Alcântara.

Otelo representa ainda hoje o perigo de expor a podridão em que assentam os pilares da ordem que nos rege. Em 1975 esse conhecimento podia gerar (ou degenerar) um movimento de contestação popular que alastrasse pelo continente europeu. Havia que apresentar Otelo como um tresloucado. Para as aves de gaiola, voar é uma doença. Para os predadores, voar é uma fuga dos seres que lhes servem de alimento.

Em 1974 e 1975 já eram visíveis as nuvens negras sobre o sistema político e económico que se impusera (ou fora imposto) na Europa Ocidental após a Segunda Guerra. Os alemães crismaram como “anos de chumbo” esse período que antecipava o mal-estar do modelo civilizacional de compromisso entre capital e trabalho, entre público e privado, entre liberdade e servidão voluntária. Uma decadência que hoje parece evidente num modelo que apresenta claros sintomas de rutura por esgotamento, de que os movimentos populistas são uma face visível, acompanhados pela corrupção dos valores de equidade nas relações entre os povos promovida pelos dirigentes europeus e americanos do “Ocidente alargado” nas suas decisões sobre juros, dívidas, imposição de despesas com material de guerra, redução de serviços públicos, promoção de guerras como as da Sérvia, Iraque, Líbia, Ucrânia, ou o genocídio de Gaza.

O esquecimento de Otelo, o seu aviltamento quer durante o período revolucionário, quer no que se lhe seguiu e chegou até ao presente são fruto da ideologia dominante e dos interesses dos seus beneficiários. Otelo não quis ser o “condestável” do novo regime e a sua condução para fora do sistema, para a marginalidade em todos os sentidos, foi meticulosamente planeada e executada. A sua personalidade, a sua generosidade e ingenuidade foram estudadas para servirem de arma contra as causas que defendia e para defesa de uma dada ordem que não pode ser questionada.

Para os que apagaram Otelo é reconfortante falar da revolução simpática que, podendo ter tido a energia de um mar, desaguou num vulgar lago de jardim europeu. Mas um mar é uma coisa que gera energia e vida e um lago é uma coisa já domesticada, adormecida, em decadência.

Acontece, no entanto, que o deliberado esquecimento de Otelo e a desvalorização do movimento popular que ele apoiou e incentivou enquanto comandante do COPCON não teve a consequência que parecia lógica por parte de quem o derrotou e prendeu, mesmo com a legítima intenção de impedir uma revolução, de reclassificar o resultado da ação militar que ele planeou e comandou como o “golpe da Calçada da Ajuda”, ou da Amadora. É evidente ser muito mais agradável ao ego e ficar melhor na fotografia da História utilizar a fórmula de “Revolução dos Cravos” do 25 de Abril que da restauração de estado de ordem do 25 de Novembro de 1975. É um facto. Não é uma crítica. Otelo prosseguiu o seu voo. Outros poisaram.

Os títulos e os símbolos são importantes para hierarquizarmos e classificarmos os fenómenos, mas resta a realidade e quanto a esta, é significativo que na celebração do meio século do 25 de Abril, Spínola seja mais recordado do que Otelo, que entre tantas obras e trabalhos de investigação o COPCON e o seu papel no movimento popular não tenha merecido o interesse dos académicos, ou que esta singular e fugaz instituição militar tenha despertado tão pouca curiosidade intelectual e política.

É evidente que ainda vivemos num regime em que podemos falar e escrever sobre Otelo, mas como de alguém fora da História, do “sistema democrático” como um excêntrico, quando ele foi o autêntico revolucionário do que não chegou a ser uma Revolução. É certo e sem margem para dúvida que os 3 D do 25 de Abril são matéria de alegria e celebração, mas não são uma revolução. Revelam apenas a tacanhez do salazarismo, a mediocridade do seu padroeiro e dos seus acólitos. A Democracia, a Descolonização e o Desenvolvimento chegaram a Portugal com 30 anos de atraso relativamente aos regimes de democracia representativa e do estado social implantados na Europa após a Segunda Guerra.

Embora com trinta anos de atraso celebremos contudo essa coisa magnífica e essencial que é a Liberdade de expressão, mas fique a lembrança dos que como Otelo a queriam enquanto condição para conquistar a Justiça em todos os seus componentes, desde logo o da Igualdade.

Antes de se acomodar, engravatada, formatada, mais ou menos vociferante no modernizado convento de São Bento, Otelo queria a Liberdade na casa de cada um dos portugueses.

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