* Carlos Matos Gomes
Na cozinha da casa dos meus pais
existiam umas caixas de lata com rótulos Arroz, Massa, Açúcar, Café… O que se
encontrava no interior nunca correspondia ao rótulo. A lata que anunciava café
de umas vezes tinha biscoitos, de outras nozes, a do açúcar podia ter massa ou
farinha, havia uma que habitualmente servia de mealheiro e guardava moedas.
Habituei-me a não confiar nos rótulos. Também passei mais de dois terços da
minha vida a comer em refeitórios de instituições. Sou um consumidor de rancho
geral, não espero maravilhas gastronómicas, mas procuro saber o que os
cozinheiros lá colocam para evitar diarreias.
Com estas habilitações, fruto das
circunstâncias, tendo a apreciar a “nobre arte da política” como um cozinhado
de rancho geral elaborado com os produtos das latas que se encontram na
dispensa. Hoje a política é um rancho geral produzido com uma receita de
politicamente correto. As recentes eleições em Inglaterra e em França e as
sondagens sobre as intenções de voto na Alemanha fornecem pistas para os
clientes-consumidores que nós somos entenderem o que lhes estão a colocar no
prato. O que devemos comer e o que devem rejeitar para não ficarmos doentes.
Pelo menos isso: haja saúde!
Na Europa estão em hasta pública dois
produtos políticos. O dos situacionistas e o dos anti situacionistas. As
grandes máquinas promocionais, aquelas que nos convencem que uma bebida
xaropada, escura como um esgoto, que desentope canos e desoxida moedas é a
melhor bebida do mundo, impuseram o bom e o mau para a nossa saúde. As fontes
produtoras de opinião etiquetaram os primeiros de moderados e os segundos de
radicais. Mas a caixa com o rótulo moderados contem mesmo moderados? E a do
rótulo: radicais, extremistas e outros que tais, conterá de facto ingredientes
alternativos? A França é um bom tubo de ensaio para análise, mas os reagentes
são os mesmos do Reino Unido e da Alemanha.
Qual é o produto político que os
situacionistas propõem em França e cuja vitória saúdam como se os sans
culottes tivessem tomado de novo a Bastilha (uma história muito
adulterada)?
O situacionismo em França tem como
ponto de partida o fim do mandato de Jacques Chirac e com ele o conceito
gaulista de uma política autónoma da França e da Europa, de uma Europa com um
núcleo formado pelo antigo império de Carlos Magno, a França, a Alemanha e o
Norte de Itália (a lotaríngia). Chirac foi substituído por Sarkozy e este por
Hollande e este por Macron. Este trio de PP ( petits presidents)
corresponde em Portugal a Durão Barroso, Passos Coelho e Paulo Portas, em
Espanha a Aznar e a Zapatero, em Inglaterra a Blair, Gordon Brown, Cameron,
Theresa May, Boris Johnson.
Em termos de latas de cozinha temos
uma prateleira de produtos que metidos em panela e deixando a cozer em lume
brando produz uma papa que é o neoliberalismo. Uma ranchada que ilude a fome a
curto prazo, mas mata a médio, porque lhe foram retirados, em nome do lucro, os
elementos essenciais de vitaminas e proteínas.
Com que produtos se cozinha o
“Ensemble” de Macron que ficou em segundo lugar nas eleições francesas e que
tem sido celebrado pela caldeirada reunida sob o ressuscitado lema de “Nova
Frente Popular”, que nem é nova, nem é uma frente, menos ainda é popular como a
salvação da democracia tricolor da Liberdade, Igualdade e Fraternidade? Uff!
Titulou o progressista moderado Liberation. Mas uff a propósito de
quê? Os franceses vão ressuscitar o sistema europeu Galileo de geolocalização
para substituir o GPS americano? Vão impor uma administração europeia para o
BCE, que faça do euro uma moeda de troca universal e ao serviço de uma política
europeia?
E o que se encontra na caixa da Nova
Frente Popular? O sereno desespero dos coletes amarelos que colocaram a França
a ferro e fogo para depois permanecer tudo na mesma? Com a atual política da
França (e da Europa) de crispação contra meio mundo: Rússia, China, Índia,
África e até a América latina a quem vai a França da Nova Frente Popular vender
produtos de luxo? Se a NFP mantiver a politica de Macron, dita moderada, de
guerra aos BRICS, passará a submissa sem nunca ter sido insubmissa. Mélenchon e
os seus aliados ficam com as malas, os perfume, os vinhos à porta dos clientes.
Mas se quiser ser a França Insubmissa, os Estados Unidos tiram-lhe o tapete,
passam-lhes uma rasteira, como fizeram no negócio dos submarinos para a
Austrália (que vai entrar para a NATO, com a Nova Zelândia e com o apoio da
França!) A NFP de Jean-Luc Mélenchon tem boas hipóteses de ficar isolada entre
Putin, Xi Jiping e Trump. Deve ter sido essa possibilidade de quadratura do
circulo, de comer o bolo e ficar com o bolo, que celebraram ontem! Dentro de
dias saberemos novas dos extremistas moderados que salvaram a República!
Um dos maiores sucessos da propaganda
política é ter conseguido “vender” o neoliberalismo como um produto saudável,
moderado, equilibrado depois da sua apresentação pública como religião de
salvação no golpe de Pinochet no Chile em 1973. O “Ensemble” de Macron é uma
mixórdia neoliberal metida numa embalagem que tem sido impingida como sendo
genuinamente democrata e que, como os meios de propaganda nos matraquearam
ontem, contribuiu para a derrota do que os taxionomistas políticos
classificaram como extrema-direita, que passou de Frente Nacional a União
(Rassemblement) Nacional e da direção de Marine Le Pen para um seu meio genro
(casado com uma sobrinha), Jordan Bardela.
A lata dos produtos que compõem o
“Ensemble” são conhecidos desde que a escola de economistas de Chicago
patrocinada por Milton Friedman os utilizou para cozinhar a ditadura de
Pinochet, no Chile: um deus — o mercado; um princípio - homem é o lobo do homem
— sobrevivem os mais aptos, sucesso é estar acima dos outros. Um programa de
vida: que cada ser humano viva e morra segundo as suas possibilidades.
Obediência aos Trés Mandamentos de Margareth Tatcher: não há sociedade, há
indivíduos; não há cidadãos, há consumidores, não há eleitos, há predadores de
votos. Um sacrário: a Reserva Federal dos Estados Unidos.
O situacionismo assenta em duas
bases, no neoliberalismo económico e social e no alinhamento estratégico pelos
Estados Unidos.
As eleições no Reino Unido e em
França revelam o beco sem saída do situacionismo e a alienação que os meios de
comunicação conseguiram ao colocar as massas de futuros desempregados, de
futuros SDF, os sem abrigo na sigla francesa e em homenagem aos franceses tão
aparentemente felizes por manterem Macron no Eliseu, Mélenchon na animação
popular e Marine Le Pen a esperar por ele para as próximas eleições
presidenciais, onde lhe perguntará o que o distingue de Macron quanto ao euro,
quanto à relação com o BCE, quanto à relação com os Estados Unidos, a Rússia, a
China e a África, o que o distingue de Macron quanto à caótica política
ambiental, quanto às fontes de abastecimento de energia, quanto à política
aeroespacial da Europa, quanto às guerras com que os Estados Unidos cercaram a
Europa desde os anos 80 do século passado — Irão, Iraque, Afeganistão,
Jugoslávia, Síria, Palestina, Líbano, Líbia, produtoras das vagas de migrantes.
As eleições na Alemanha produzirão
com elevada probabilidade o mesmo tipo de vitória dos situacionistas com mais
ou menos sociais democratas ou conservadores no grande bolo. O situacionismo
europeu, o grande grupo dos democratas moderados, que inclui conservadores e
sociais democratas, constitui a religião oficial na Europa. O situacionismo
teve a arte e os meios financeiros para vender o seu extremismo (são os
defensores de que eles representam o Fim da História) como um produto de
moderação e que todos os que lhes expõem os punhais que trazem escondido são
extremistas. Extremistas são os outros.
O extremismo que se esconde na lata
com o rótulo de moderados, juntos, unidos, conservadores, nas também democratas
cristãos, trabalhistas e socialistas está no poder. É o poder e há largos anos!
Em Inglaterra Boris Johnson não era mais nem menos moderado, ou extremista que
Toni Blair! Ursula Von Der Leyen não é mais ou menos extremista ou, à
francesa va-t-en guerre contra a Rússia e a China, que Macron
desde que Putin o colocou na ponta da quilométrica mesa do Kremlin. A warmonger Kellie
Kallas a estoniana que vai entrar de representante da política externa da União
Europeia é mais moderada ou extremista que Marine Le Pen? Em quê? E a madame
Lagarde do BCE é uma moderada que ajuda pobres e remediados a pagar os juros
exorbitantes aos bancos para terem um teto? E o trabalhista Keir Starmer recém
eleito primeiro ministro do Reino Unido tem uma politica mais moderada para
deportar migrantes para o Uganda ou os deixar afogar no Canal da Mancha dos
seus moderados antecessores conservadores? E o que distingue as políticas
migratórias do Reino Unido, dos Países Baixos, da Alemanha (que é a maior
financiadora dos campos de concentração de migrantes na Turquia) das de Marine
Le Pen, ou da primeira ministra italiana?
Falecido em 2019, após uma vida bem
gozada, Jacques Chirac foi o último gaulista no poder. Com a sua morte morreu
qualquer laivo de desalinhamento da Europa e da França com a política de
domínio económico, financeiro e militar por parte dos Estados Unidos. Sendo
assim, o que estão a celebrar os situacionistas europeus e os franceses em
particular e, mais aberrante ainda, os que se afirmam gaulistas? O que defendem
aqueles que o pensamento dominante classifica como extremistas e colocou numa
lata com um autocolante: Perigo!
Se o perigo para a Europa é, em
primeiro lugar, o do alastramento e subida de patamar das guerras na Ucrânia e
no Médio Oriente. Se, em segundo lugar o perigo é a da conjugação de inflação e
depressão económica na Europa (a França dos moderados vitoriosos já está na
categoria penalizadora de défice excessivo); e se, em terceiro lugar, o perigo
para a Europa é o da irrelevância política e económica, transformada como está
um mero apêndice dos Estados Unidos foram os extremistas que trouxeram a Europa
até aqui. E estão a celebrar a vitória. Celebram o quê?
https://cmatosgomes46.medium.com/em-que-caixa-est%C3%A1-a-extrema-direita-0acc164f4c1e
Sem comentários:
Enviar um comentário