Crónica Elogio do Vinho
Dentro de duas
semanas, começa mais uma vindima no Douro. Se Rui Moreira quiser matar
saudades, ofereço-lhe casa e comida. E ainda lhe pago a jorna, se vier mesmo
com vontade de trabalhar.
* Pedro Garcias
26 de Julho de 2024
Rui Moreira criticou as paragens do futuro metrobus do Porto desenhadas por
Siza Vieira, comparando-as a menires
de Obélix. A apreciação mereceu uma
resposta de um investigador da Faculdade de Arquitectura do Porto, Pedro
Levi Bismarck, que acusou o presidente da Câmara do Porto de ter pouca
legitimidade para tal crítica, dado ser “um dos responsáveis políticos pela
destruição em massa do património arquitectónico” da cidade. Em resposta, o
liberal político soltou
a sua sanha sobre o pobre do investigador Bismarck, dizendo que este
“prefere idolatrar Álvaro Siza com aquela pequenez da criadagem quando
experimenta, à sorrelfa, as jóias da patroa para se ver ao espelho”.
Esperei três semanas na esperança de que algum representante da “criadagem”
atirasse um verdadeiro menir ao fidalguinho da Foz, não para o matar mas para
lhe colocar o cérebro no sítio. O termo “criadagem” é todo um programa de
desprezo e pequenez. O que incomoda na palavra são as quatro últimas letras. É
o “agem”. Lembram “vassalagem”, “miudagem”, “malandragem”, “parolagem”,
“vadiagem”, “ladroagem” e muitas outras coisas pouco simpáticas, como, mas aqui
para o lado de certos patrões, “vilanagem”, “cabotinagem”, “cretinagem” e até
“parvoagem”.
Nos anos 50 do século passado, cerca de 39% da população activa do sexo
feminino em Portugal eram criadas de servir. Na segunda metade do século,
segundo a investigadora Inês Brasão, autora do livro O tempo das criadas: a
condição servil em Portugal (1940-1970), chegou a haver 200 mil mulheres
nessa condição.
A tal “criadagem” era, sobretudo, composta por crianças que vinham do interior
pobre e analfabeto, de aldeias onde não havia sequer electricidade e as
famílias eram do tamanho de uma equipa de futebol. Os rapazes ajudavam na
lavoura e, quando podiam, emigravam. As raparigas ajudavam na lavoura e na casa
e, ainda antes de menstruarem, iam servir para uma família rica, impulsionadas
muitas vezes, como lembra Inês Brasão, pela “morte prematura do pai ou da mãe,
entrada na fase legalmente aceite para o início do trabalho (entre os dez e os
12 anos), necessidade de libertar o número de filhos a cargo, súbitos
rompimentos familiares e também o 'engano'”.
As criadas faziam de tudo: limpavam a casa, cozinhavam, tratavam dos mais
velhos, cuidavam dos meninos. Acordavam cedo e deitavam-se tarde, muitas vezes
só a troco de comida e de um quarto escuro, apertado e recuado dentro da
própria casa dos patrões ou numa dependência. Viviam para servir, numa relação
de domínio-submissão que autorizava todo o tipo de abusos, até de cariz sexual,
como o desvirginamento dos meninos. Não sei se aconteceu com Rui Moreira, mas
era comum. Muitas engravidavam dos patrões. Depois de consultar as estatísticas
dispensadas por maternidades e hospitais, Inês Brasão descobriu que a categoria
profissional das criadas “ocupava o topo na prática da interrupção da
gravidez”. “Para as criadas de servir, que esperavam filhos gerados pelos
próprios patrões, a decisão de nascimento significava uma situação de vergonha
pública difícil de suportar ao longo da vida. O filho seria considerado
ilegítimo, filho de pai incógnito e provavelmente afastado da mãe.”
Há muito vinho nesta crónica, embora não pareça.
A sorte da “criadagem” dependia do grau de submissão que as próprias criadas
estavam dispostas a suportar e da natureza mais ou menos dominadora e
insensível dos patrões. Havia de tudo. Havia patrões decentes e patrões
abusadores. E havia criadas que entravam numa casa como quem entra num
convento, para a vida toda, dispostas a suportar tudo, e outras com sonhos mais
amplos, criadas que ambicionavam um dia vestir os mesmos vestidos das patroas e
usar as mesmas jóias. O principezinho Rui Moreira é tão alto que não vê que não
existe pequenez nas criadas que colocavam as jóias da patroa à sorrelfa, só
para se verem ao espelho e imaginarem-se elas próprias patroas. A pequenez
estava nos patrões que sujeitavam as criadas a uma vida de servilismo, reclusão
e humilhação, paga com manifestações de caridade e de suposta irmandade
expressa na frase habitual: “É como se fosse da família!”. Estava também na
pelintragem de muitos deles, falidos mas vivendo como se continuassem ricos,
sempre com a campainha por perto para chamar a criada, e exímios em guardar uns
croquetes no bolso quando em festas alheias.
Hoje sou
Bismarck porque conheço bem essa “criadagem”. Vou contar o que me aconteceu.
Ela, uma de dez irmãos, veio ainda criança de Francelos, uma aldeia dos altos
de Alijó, para servir numa casa rica da vila. Teve a sorte de encontrar uma
família decente e honrada. Ele, de Alijó, vivendo em frente, já era criado para
as obras da mesma família, mas de um ramo que veio a ter como patrão um
arquitecto local instalado no Porto. Não sei se Rui Moreira ia gostar dele,
também fazia menires usando linhas rectas. O criado e a criada apaixonaram-se,
casaram-se e tiveram sete filhos. Três raparigas foram servir ainda crianças,
só os três filhos mais novos puderam estudar. E bastaram duas gerações para que
vários netos da criada de servir, que não sabia ler nem escrever, e do criado
de obras, que ainda conseguiu fazer a quarta classe, chegassem a médicos,
engenheiros e outras funções socialmente reconhecidas.
Foi assim que eu, um dos sete filhos desse casal, cheguei até esta página, que
deveria ser preenchida com assuntos sobre vinhos. Mas há muito vinho nesta
crónica, embora não pareça. Inúmeras criadas do Porto eram oriundas do Douro e
não havia família rica da Foz ou das Antas que não tivesse uma quintinha na
região duriense. Na altura, o Douro era o fim do mundo e muitos patrões só lá
iam em experiência antropológica, sobretudo na vindima, para lançar um foguete
e entregar os sapatos cheios de pó ao lenço dos trabalhadores e ainda receber
destes um ramo, como agradecimento pelo trabalho duro e mal remunerado. Em
troca, se o patrão não fosse muito sovina, podiam ter direito a uns doces e a
uma gorjeta. “Belos tempos!”, suspiram alguns.
Dentro de duas semanas, começa mais uma vindima no Douro. Se Rui Moreira quiser
matar saudades, ofereço-lhe casa e comida. E ainda lhe pago a jorna, se vier
mesmo com vontade de trabalhar. Para brincar aos ricos, já basto eu.
https://www.publico.pt/2024/07/26/fugas/cronica/criadagem-segundo-fidalgo-rui-moreira-2098443
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