(José Goulão, AbrilAbril, 11/07/2024)
Estivemos perante a inquietante prestação dos dois putativos chefes do império norte-americano, ou seja, do globalismo, do «mundo civilizado», os patrões dos nossos políticos «vocacionados» para o poder, os donos das nossas vidas.
As palavras que encimam este
texto são do já saudoso Fausto Bordalo Dias no épico monólogo de Fernão Mendes
Pinto em «o barco vai de saída»; tiveram evocação recente não apenas pela
partida triste de tão emblemático e inconfundível cantor e autor mas também
pelo dramático, igualmente arrepiante e nada épico debate entre os dois
candidatos à presidência dos Estados Unidos da América, Joseph Biden, pelo
Partido Democrático, e Donald Trump, pelo Partido Republicano; isto é, segundo
a praga dos comentadores que infesta os nossos dias, entre «a esquerda» e «a
direita».
Aquilo era o retrato do inferno,
não só porque entre os debatentes venha o diabo e escolha, mas também porque
estivemos perante a inquietante prestação dos dois putativos chefes do império
norte-americano, ou seja, do globalismo, do «mundo civilizado», os patrões dos
nossos políticos «vocacionados» para o poder, os donos das nossas vidas.
Achei prudente aguardar algum
tempo antes de abordar o tema, não pela complexidade e a profundidade do
conteúdo ideológico, intelectual, político e programático dos dois ogres;
esperei até ter uma ideia feita sobre as abordagens dominantes assumidas pela
comunidade dos comentadores, analistas, especialistas, politólogos e
cartomantes que transtornam os cérebros das populações submetidas ao «nosso
modo de vida», pelo menos dos cidadãos que ainda têm pachorra ou estômago para
se deixarem torturar por eles.
E estiveram uns para os outros,
candidatos e analistas, domésticos ou da estranja «civilizada». A indigência
pega-se, pelo menos foi o que demonstrou o tenebroso efeito em cadeia. Não
apenas porque a corporação do «comentariado» – parece que é assim que se
autodenominam – conseguiu encontrar matéria relevante no vácuo das ideias
expressadas pelos contendores, espremeu-se até para encontrar um vencedor e um
vencido, teorizou sobre as capacidades cognitivas de cada um, como se a
demência política pudesse ser aferida por uma qualquer escala científica. O
drama que tornou assustadoramente exponenciais as consequências da contenda
entre dois indivíduos sem carácter, esclerosados, irresponsáveis, ignorantes,
avatares de seres humanos degenerados, foi a maneira como este universo da
opinião única ignorou ou omitiu deliberadamente o que esteve e está
verdadeiramente e quase exclusivamente em causa nos episódios que envolvem os
candidatos e as próprias eleições presidenciais nos Estados Unidos da América.
Eles são os nossos chefes
Aquilo, o debate, era sem
qualquer dúvida o retrato do Inferno. O Inferno em que vivemos sem que muitos,
talvez a maioria, se dêem conta do risco de podermos transformar-nos em
poeiras radioactivas de um momento para o outro; o Inferno da vida que os
poderes representados por aqueles dois psicopatas nos impõem e garantem
continuar se as relações de forças internacionais e, sobretudo, a impaciência
activa dos povos do mundo não fizer desmoronar o império. Existem muitos
indícios de que ele já mal se aguenta de pé, mas não tenciona suicidar-se.
Ainda possui muitos recursos, explora sem reservas o ódio pelos seres humanos,
põe e dispõe das nossas vidas através dos métodos mais violentos e também mais
insidiosos, sem que se vislumbrem quaisquer limites para a sua sanha capazes de
o travar antes de chegar ao extremo de eliminar a vida no planeta.
Ainda há quem entenda estas
considerações como coisa de lunáticos, mas não percamos a noção de que o
simples facto de observarmos a colocação de marionetas transtornadas à cabeça
das coisas político-militares dominantes no mundo revela o grau supremo de liberdade
usufruído pelos monstros que, movendo-se silenciosamente em mundos
subterrâneos, conduzem a economia e as finanças globais. Esse poder real,
absoluto e incontestado serve-se da política e do militarismo como braços
visíveis, como centros de imposição comportamental, de manipulação e engenharia
social para transformar metodicamente os seres humanos em meros instrumentos ao
serviço de interesses que não são os seus, tornando-se até inimigos
involuntários de si próprios.
Joseph Biden e Donald Trump são
os nossos chefes visíveis. Para todos os efeitos, pensando apenas em termos da
ponta do iceberg dos poderes mundiais, são eles que mandam
na NATO, na ONU, na União Europeia, em cada um dos nossos
países que em tempos foram soberanos; que mexem os cordelinhos do terrorismo
transnacional «moderado», como a al-Qaida, o Isis e tantos outros heterónimos,
que fazem a guerra e decidem sobre a paz, que definem o que é a democracia e
como deve ser praticada, que funcionam como o alfa e o ómega do grande aparelho
transnacional de controlo mental, que impõem o mercado como a ditadura das
nossas existências, que espiam e se apropriam da nossa privacidade com métodos
e meios cada vez mais desumanos e sofisticados; que agem como arbitrários
«legisladores» e gestores da «ordem internacional baseada em regras», sistema
comportamental compulsório que subverte e impede o regular funcionamento do
direito internacional. São eles, em suma, o paradigma actual da nossa
democracia liberal, o «farol» da liberdade, dos «valores ocidentais», do
respeito pelos «direitos humanos», da «responsabilidade de proteger», através
da guerra, em cada recanto do mundo. A imagem que esses trastes alienados
transmitem aos olhos da população mundial espelha fielmente o estado em que se
encontram a política ocidental e a «nossa» democracia liberal – um retrato
do Inferno.
Veja as diferenças
Há quem pretenda estabelecer
distinções entre Joseph Biden e Donald Trump, como fariam em relação a qualquer
outra dupla em competição, suponhamos Hillary Clinton e a vice-presidente de
turno Kamala Harris. É uma atitude que não passa de um esforço irresponsável
para dar credibilidade a um sistema caduco, subvertido desde as proclamações
iniciais, já lá vão quase 250 anos, malévolo, desumano em nome da humanidade,
agressor em nome da paz e da democracia, expansionista e salteador dos bens e
das riquezas alheias, cobrindo e fundindo agora, sob as suas asas, o velho e o
novo colonialismo como práticas inerentes ao sistema imperial.
Diferentes e iguais, Biden e
Trump representam, apesar da pungente exibição de um grau irreversível de
decadência humana, duas faces da mesma moeda, um autêntico partido único
imperial gerindo simultaneamente os seus tentáculos que se movem através do Ocidente
colectivo como instrumentos indispensáveis da democracia liberal, a autêntica,
exclusiva e à qual temos de obedecer em rebanho e sem balir.
Nos Estados Unidos, os aparelhos
encarregados de fazer política designam-se Partido Democrático e Partido
Republicano; na Europa e no resto do Ocidente podem chamar-se, entre outras
coisas, «centro político», «bloco central», «convergência» entre socialistas,
conservadores e liberais, sistema que prevalece na composição e funcionamento
do aparelho autoritário baptizado como União Europeia.
Mecanismos de poder todos
diferentes e todos iguais, a exemplo do que sucede na cúpula do poder imperial
– quando é necessário que a política exerça o papel que lhe está reservado para
fazer cumprir as ordens do neoliberalismo e do seu deus inquestionável, o
mercado.
Analistas de «esquerda», muito
úteis para compor o ramalhete «pluralista» do comentariado doméstico, chegam a
qualificar Biden como um candidato «sério» perante um «mitómano» e outras
coisas do mesmo jaez que Donald Trump efectivamente é, além de mentiroso
contumaz, corrupto, ladrão de petróleo e outras riquezas alheias. Actividades
que, mantendo a memória em funcionamento, também não são estranhas ao
presidente e incumbente democrata.
Pela «seriedade» de Joseph Biden
falam a sua carreira política medíocre, mas, principalmente, corrupta,
manipuladora, belicista, cleptómana e sangrenta ao longo de mais de 50 anos. E
sempre afecta ao poder, fosse democrata ou republicano, como no caso do apoio
activo às invasões do Iraque cometidas por Bush pai e filho.
Biden foi fervoroso adepto dos
golpes terroristas na América Latina, África e Oriente, distinguiu-se nas
frentes de apoio ao sanguinário desmantelamento da Jugoslávia, à colonização
neoliberal e saqueadora da Rússia, às invasões do Iraque, do Afeganistão e da
Somália. Meteu e mete directamente as mãos nas permanentes carnificinas
sionistas contra o povo palestiniano – dizendo-se «sionista cristão» – e nas
invasões da Síria, através de «procuradores» terroristas, e da Líbia,
patrocinando a destruição e matança gerais, a começar pelo bárbaro assassínio
de Muammar Gaddafi. «Chegámos, vimos e ele morreu», proclamou, num arroubo
imperial, a então secretária de Estado Hillary Clinton, da administração Obama,
na qual Biden foi vice-presidente. Cargo onde desempenhou funções primordiais
no golpe nazi da Praça Maidan, na capital da Ucrânia, abrindo as portas ao
massacre de aproximadamente 14 mil pessoas no Donbass, entre 2014 e 2022, e à
perda de pelo menos 500 mil vidas no confronto militar directo entre a Ucrânia
e a Rússia que se lhe seguiu. Um currículo invejável para um político «sério».
A elite de «referência» do
garboso exército do comentariado acha que no confronto entre os Partidos
Democrático e Republicano tem o dever de assumir uma polida e até snob
inclinaçãozinha pela ala democrata, de comportamento muito mais «europeu»,
eivada de boas maneiras, capaz de fazer das guerras acontecimentos humanitários
e até ecológicos, – como se diz a propósito das manobras militares da NATO.
Exprime até sonoras condescendências e bem calibradas manifestações de afecto
pelas minorias LGBT, negras, de salvadores do planeta e tantas outras causas
ditas «fracturantes» como as questões do aborto e dos direitos da mulher. Ao
contrário do brutamontes Trump, que solta pela boca fora o que lhe passa pela
cabeça, carecendo da moderação, do cinismo e do oportunismo de discurso que
Biden foi praticando ao longo de meio século, movendo-se pelos corredores e
gabinetes de Washington.
Não esqueçamos, além disso, que o
Partido Democrático tutela até a Internacional Socialista, um ponto a seu favor
para a penetração mais profunda da Europa, com o mérito acrescido de ter
contribuído, como nenhuma instituição, para a evolução do anacrónico
«socialismo democrático» – uma aberração em tempos de extinção das ideologias –
em direcção ao «socialismo» com as cores neoliberais, que devem ser
obrigatoriamente ostentadas por todos os partidos «com vocação de poder».
Joseph Biden, um demente político
ao nível do seu rival Trump mas com um património de poder que deixa o
adversário nas divisões distritais, encaixa às mil maravilhas na encenação
cultivada pelo Partido Democrático. Fala bem (às vezes titubeia um pouco, é
certo, e quando mente é em defesa da democracia e dos direitos humanos), veste
melhor, exibe um esgar de sorriso bastante diplomático, caminha como se
estivesse numa passerelle (os esporádicos tropeções devem-se a sujidade nos
Ray-Ban de sol, imagem de marca dos expoentes securitários), cuida do corte de
cabelo e mantém o branco natural; usa boné apenas quando lhe é emprestado ou
oferecido por um craque da primeira liga de beisebol; até a sua evidente
demência cognitiva não passa de um sintoma de jet leg e de
cansaço inerente à complexa e aturada actividade no desempenho do cargo.
Donald Trump traduz melhor que
ninguém a actualidade do Partido Republicano. Fala como um trauliteiro, mente
por vício e não é para defender a democracia e os direitos humanos, veste como
um bimbo, ri-se de maneira alarve e boçal, caminha como um arruaceiro e
provavelmente até escarra no chão, tem o cabelo oxigenado e um penteado que não
lembra a ninguém, engana a Melânia, usa óculos escuros comprados nos
escaparates à porta dos armazéns Valmart numa vilória perdida do Kentucky,
prefere bonés nacionalistas e bacocos copiados dos gangs do
Metro de Nova York; e a sua demência cognitiva é de nascença, nada tem a ver
com a provecta idade.
Biden e Trump são como a água e o
azeite também quando chega o momento de produzir os cartazes e os videoclipes
de campanha, quando são chamados à televisão para debater ideias que não têm,
preocupações que não sentem, para usar e abusar dos truques ensinados pelos
assessores de imagem – e para reduzirem o confronto a ataques e insultos
pessoais, ainda que com ademanes díspares e opostos de elegância.
Porém, são gémeos na política,
igualmente eficazes quando se trata de servir como agentes administrativos e
«democráticos» do neoliberalismo; isto é, cumprem a tarefa para a qual são
indigitados pelo omnipresente e submerso «Estado profundo» e posteriormente
«escolhidos pelo povo» através de mecanismos eleitorais distorcidos,
antecedidos de peditórios milionários junto da gente que conta, concebidos em
delicadas degustações e capitosas soirées dançantes; e recorrendo também a
feiras de comércio político montadas em cenários de Hollywood, seguindo guiões
da série mais rasca onde se estipulam discursos ricos em piadas idiotas
recebidas com coros de gargalhadas a pedido, abrilhantadas por claques de cheerladies equipadas
à Barbie.
É assim a política que orienta a
prática da democracia liberal, a «nossa democracia», uma sucessão de rituais
cumpridos enquanto os verdadeiros donos disto tudo, de nós todos, senhores dos
impérios económicos e financeiros planetários decidem quanto há para decidir
nos cenáculos do mercado, deus da modernidade política, militar, social e
cultural. De vez em quando juntam-se nos conclaves conspirativos e decisórios
de Bilderberg, da Trilateral, do Fórum Económico Mundial e outros, para os
quais arrolam alguns plebeus prometedores para fazer deles os magarefes que
mantêm a política e os universos do comentariado nos eixos.
E a guerra, as guerras que
estamos vivendo e sofrendo, com as catástrofes humanitárias e as incertezas
inerentes, mais não são do que os veículos a que recorre o império em
desespero, tentando evitar que a evidente e irreversível decadência se torne
real mais dia menos dia, dando eventualmente lugar a uma ordem internacional
assente no direito internacional existente e na cooperação entre países
soberanos e iguais. Caso isto não aconteça, a loucura dos políticos «com
vocação de poder» instalados no areópago dos areópagos ocidentais, mergulhados
no seu autismo demente ao mesmo tempo que são manipulados pelos insaciáveis
senhores do dinheiro, deixar-nos-á sem apelo à mercê desses degenerados. Num
cenário assim consumado os insaciáveis monstros do mercado, que não admitem
limites ao respeito pelas suas exigências e são imunes a qualquer vínculo
emotivo com os seres humanos, usarão e abusarão do poder absoluto facultado
pelo fascismo neoliberal e, se acharem necessário, não hesitarão em
condenar-nos ao terror supremo capaz de limpar o planeta do excedente de
gentalha que os incomoda.
O debate patético, incongruente,
surreal na verdadeira acepção do conceito entre os dois homúnculos que lutam
pela gestão formal e a rogo de um império agónico revelou que a «nossa
civilização», o orgulhoso e arrogante «mundo ocidental» atingiu o grau zero e
mais rasteiro da política. Os políticos a quem o mercado entrega o poder por
via «eleitoral» e «liberal» não passam hoje de burocratas serviçais que, a bem
dizer, já quase nem tentam convencer-nos de que representam os nossos
interesses e a nossa vontade manifestada em papelinhos inúteis depositados num
caixotinho sem fundo. Eles são, afinal, juntamente com os acólitos da
propaganda e os salteadores do jornalismo, da academia e da cultura, os
autênticos idiotas úteis de um sistema infernal e incontrolável de poder do
qual só nos apercebemos (e já não é pouco) por via dos afloramentos que
infernizam a vida de cada um.
Aquele debate entre a fina-flor
demente dos idiotas deste «Ocidente» – e que terá pelo menos uma sequela,
segundo se diz – foi um retrato do inferno.
Desejamos, e para isso temos uma
tarefa tão urgente como gigantesca nas nossas mãos, que tal retrato não se
transforme num facto da vida – ou talvez aqui deva escrever-se morte – real.
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