quarta-feira, 24 de julho de 2024

Manuel Loff - Uma cultura comum

 

Opinião

Falsificações históricas é o que mais há. O grave é que os seus autores cheguem ao poder e por lá se pavoneiem.

* Manuel Loff

24 de Julho de 2024


O regresso da direita ao poder trouxe consigo curiosas personagens cujos percursos intelectuais e profissionais comprovam bem como à direita se partilha uma cultura comum, feita de continuidades políticas estruturais (nacionalismo, monarquia, reacionarismo moral e cultural, elogio do autoritarismo e do colonialismo) e de leituras puramente voluntaristas (para não dizer simplesmente manipuladas) da história. Ela transcende as “linhas vermelhas” do “não é não” e demonstra que extrema-direita e direita tradicional neoliberal podem disputar entre si o poder, mas convergem na visão do mundo, desde media como o Observador ou o Correio da Manhã, até obras coletivas como o já famoso, e lamentável, Identidade e Família que Passos Coelho apresentou, reunindo intelectuais da ultradireita e dirigentes do PSD.


Entre estas personagens está o chefe de gabinete do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, nada menos. Pedro Velez é um monárquico desde sempre militante do PSD que, entre outras coisas, participou em 2019 num colóquio (depois livro) sobre o jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro, com o título de “O Magistério de Olavo de Carvalho: para uma Paideia Integral”. Considerando que Olavo, inspirador de todo aquele circo com que o bolsonarismo povoou o governo brasileiro, não possuía qualquer percurso académico, no mínimo surpreende que se sinta tentado a escrever sobre ele alguém que agora ocupa no Governo um lugar desta relevância.


Outra destas personagens, reemersa há dias ao ser nomeado “secretário privado” de José Cesário, o eterno secretário de Estado das Comunidades dos governos do PSD, é um tal Vitório Cardoso, outro destes improvisados intelectuais orgânicos da direita que, sem qualificações específicas para coisa alguma, progride à sombra de nomeações políticas para lugares periféricos no aparelho de poder ou para atividades habitualmente descritas como lobbying. A História é, contudo, para eles um terreno irresistível para fazer propaganda.


VItório elogia rasgadamente a polícia política por esta, justamente na fase em que a repressão foi mais brutal, ter tido “um papel fundamental para combater os atos subversivos da oposição política, nomeadamente dos comunistas que poderiam pôr em causa a unidade, liberdade e soberania nacionais”


Vitório é destes que acusa Aristides de Sousa Mendes de “[pôr] em risco a vida de todos os portugueses”, reiterando insinuações sem base documental, que outros já fizeram, de como os alemães ameaçariam invadir Portugal para perseguir em 1940 os refugiados ajudados pelo cônsul. Noutro texto, o mesmo homem sustenta um chorrilho de disparates que contrariam todas as provas reunidas pela investigação historiográfica portuguesa e internacional sobre a ditadura de Salazar nos anos da Guerra de Espanha (1936-39). Para fazer um elogio bacoco da política de Salazar durante a Guerra de Espanha, comete erros garrafais, confundindo 1936 com 1975, errando nas datas de início da guerra de Espanha, da criação da PVDE ou da “ilegalização do PCP” (e dos demais partidos), e assegurando que “o Estado Novo manteve [na guerra] uma postura de não intervenção”. Ora César Oliveira, Iva Delgado, Fernando Rosas e eu próprio abundantemente comprovámos a violação sistemática do direito internacional através do apoio financeiro, logístico e diplomático (em articulação com o Eixo nazifascista) aos golpistas de Franco; as campanhas de Salazar para impedir qualquer negociação de paz proposta pelo Vaticano, França ou Reino Unido; ou as críticas feitas ao próprio Papa Pio XI por este pedir a suspensão de bombardeamentos aéreos contra populações civis (a começar por Guernica, em 1937).


Salazar incumpriu todas as regras do direito de asilo, não só ao entregar aos franquistas republicanos espanhóis que procuravam refúgio em Portugal, mas também, como demonstra a recente tese doutoral de Maria José Oliveira, abandonando milhares de emigrantes portugueses em Espanha que participaram na defesa da República contra o golpe de Franco, presos ou fuzilados.


Por último, este dirigente do PSD elogia rasgadamente a polícia política por esta, justamente na fase em que a repressão foi mais brutal, ter tido “um papel fundamental para combater os atos subversivos da oposição política, nomeadamente dos comunistas que poderiam pôr em causa a unidade, liberdade e soberania nacionais.”

Falsificações históricas é o que mais há. O grave é que os seus autores cheguem ao poder e por lá se pavoneiem.

O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

 


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