*Daniel Oliveira
Ao tentar
equiparar o 25 de Novembro ao 25 de Abril, a direita celebra-o à revelia de boa
parte dos seus autores. Inventa uma rutura procurando a revanche derrotada. A
clarificação com alguma esquerda foi a revisão constitucional de 1983 e a
adesão à CEE, mais relevantes do que mais uma curva no sinuoso processo
revolucionário. Procuram um substituto do 25 de Abril porque a festa exclui
aliados de que precisam. Só que essa aliança também foi derrotada em novembro.
O 25 de
Novembro não era tema nem cisma. A forma como, cinquenta anos
depois, e aproveitando o crescimento da extrema-direita (a própria coincidência
é um insulto à data), se força até ao limite a equiparação simbólica com o 25
de Abril, nada tem a ver, como acontece em Espanha, com um problema
por resolver com a nossa memória coletiva e com a disputa entre a esquerda e a
direita pela história. Tem a ver com um problema interno que a direita precisa
de resolver. Porque a unidade em torno da data fundadora da democracia inclui
quem eles não queriam e exclui aqueles de quem precisam. Para o conseguir,
inventaram um 25 de Novembro que não aconteceu. De tal forma, que o celebram
contra boa parte dos seus autores.
O CDS e o
Chega, com a anuência de um PSD liderado por gente sem cultura política ou
histórica, estão a reinventar o 25 de Novembro como uma data de rutura, quase
refundadora. Houve atropelos, sedes queimadas, ocupações, terrorismo de direita
e violência de esquerda e luta intensa pelo poder, mas as primeiras
eleições livres aconteceram antes, a 25 de abril de 1975, e a censura e
as liberdades cívicas foram conquistadas ainda em 1974.
A esquerda
comunista e, ainda mais, a extrema-esquerda (num tempo em que ela existia)
foram contidas, a 25 de novembro, assim como os saudosistas
que sonhavam impedir a liberdade e a
descolonização plenas o foram, a 28 de setembro, data que não
celebramos. Tudo compreensível, à distância,
num processo que foi revolucionário, não de mera transição. Quem
queira perceber melhor, pode ler o último artigo de
Pacheco Pereira.
Como já
explicaram vários autores do 25 de Novembro, houve um reequilíbrio de forças,
como já tinha acontecido a 11 de março ou 28 de setembro. Se dúvidas
houvesse, o governo, o Presidente, o Conselho da Revolução, as leis e
as instituições mantiveram-se. Houve apenas, e a isso se resume aquela
crise militar, uma mudança na correlação de forças políticas e militares.
Basta recordar
que o PPD, que queria colocar-se claramente à esquerda, começou por concordar
com a grande vaga de nacionalizações, para perceber que as dicotomias claras
que hoje se descrevem eram muitíssimo mais complicadas e contraditórias na
altura. Até o papel do PCP no 25 de Novembro não é, ainda hoje, evidente. Nem
há qualquer consenso histórico sobre a tentativa ou capacidade de o PCP
tomar o poder no extremo ocidental da Europa e num país da NATO. Desde
a Primavera de Praga que se sabia que a divisão da Europa era aceite pelas duas
potências globais.
A direita
também está a reinventar o 25 de Nnovembro à luz dos desejos de alguns, à
época. Os que Chega, IL e CDS têm como heróis do 25 de Novembro foram
derrotados por Melo Antunes ou Vasco Lourenço, que impediram que o
golpe se transformasse numa revanche de sentido contrário, na caça ao
comunista, na ilegalização do PCP e na redução de liberdades, que, aos seus
olhos, teriam sido excessivas. Se o 25 de Novembro tivesse sido o que queriam,
seria a antítese do 25 de Abril. Não foi. A aliança que se fez para
celebrar o 25 de Novembro, que a direita agressiva queria transformar num
recuo, foi derrotada há 50 anos.
A história sempre
foi lugar de combate. Está sempre a ser reescrita, porque é
um olhar do presente, nas suas circunstâncias e com as suas necessidades, sobre
o passado. É por ter sido reescrita pela conveniência que Otelo
deu lugar a Salgueiro Maia, no lugar de herói de Abril, apesar de o primeiro
ter sido muitíssimo mais determinante do que o segundo. Foi o que Otelo
fez depois que determinou o seu lugar histórico em acontecimentos
anteriores. É também por isso que a direita tenta que Jaime
Neves substitua Vasco Lourenço, mas sem sucesso. Estas comemorações à revelia
de boa parte dos seus autores conseguiram o feito de não ter a
presença e apoio de ninguém do Grupo dos Nove, os militares
moderados que foram o motor político do 25 de Novembro.
A tentativa
de reescrever aquele momento é tal, que ouvi, na
TSF, Paulo Núncio dizer que Vasco Lourenço nunca
acreditou na democracia que teríamos conquistado naquele
dia. Chegámos ao ponto de ver quem nada teve a ver
com o 25 de Novembro tratar a data como uma derrota de
quem a preparou, executou e celebrou.
Mas
esta reescrita da história do país é, antes de tudo, uma
reescrita da história da direita. Não é uma tentativa de excluir
o PCP da festa democrática. Como escreveu Henrique
Raposo num texto nada centrista, esses momentos estão na revisão constitucional
de 1983 ou na adesão à CEE, muitíssimo mais
significativas do que mais uma curva no sinuoso processo
revolucionário. E essa é uma disputa antiga e resolvida. O que se
tenta é integrar na festa democrática quem se sente derrotado por Abril. Porque
estes saudosistas são necessários para haver uma maioria de direita.
Os que nunca
quiseram usar o cravo ao peito não querem corrigir a nossa
história, querem corrigir a sua. E esta celebração serve
para tentar relativizar a data que parte desta
direita (o Chega e até o CDS, que se autoexcluiu do arco
constitucional), nunca suportou. Não se sentem excluídos da festa que
realmente une o país (como se viu pela impressionante manifestação do 50º
aniversário) por terem sido empurrados para fora dela,
mas porque parte nunca lá esteve, nem de facto, nem de coração.
Procuram o seu 25 de Abril.
Ontem, como se
esperava, não houve festa. Porque a equiparação é impossível.
O 25 de Abril é, pela sua natureza única e admirada em todo o
mundo, uma festa popular. Não há povo em novembro. Não
porque a data não seja importante (já escrevi várias vezes que o
25 de Novembro e o PREC fazem parte, com as suas
contradições, do ADN necessario à nossa democracia), mas porque,
contra a vontade dos seus autores, querem que ela seja o que não foi. E se
querem substituir uma data de todos por uma para cada um dos lados, vão ficar a
perder.
Não é por acaso
que as cerimónias de ontem aconteceram sem boa parte dos construtores desta
ação militar. É porque esta celebração forçada nada tem a ver com o país. É
a direita a resolver as suas próprias mágoas e ausências históricas. Só que,
mesmo em novembro, tiveram um papel secundário. Também aí, foi a esquerda,
nos seus combates internos, que liderou. A direita democrática estava, como
disse Marcos Perestello, “enfraquecida, amedrontada e desorientada e com as
lideranças ausentes ou paralisadas”. E os saudosistas mais ou menos
explícitos do Estado Novo, que o resto da direita agora quer juntar à sua
festa, para poder normalizá-los, também foram derrotados.
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