quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Daniel Oliveira - Ontem não houve festa

*Daniel Oliveira 

Ao tentar equiparar o 25 de Novembro ao 25 de Abril, a direita celebra-o à revelia de boa parte dos seus autores. Inventa uma rutura procurando a revanche derrotada. A clarificação com alguma esquerda foi a revisão constitucional de 1983 e a adesão à CEE, mais relevantes do que mais uma curva no sinuoso processo revolucionário. Procuram um substituto do 25 de Abril porque a festa exclui aliados de que precisam. Só que essa aliança também foi derrotada em novembro.

O 25 de Novembro não era tema nem cisma. A forma como, cinquenta anos depois, e aproveitando o crescimento da extrema-direita (a própria coincidência é um insulto à data), se força até ao limite a equiparação simbólica com o 25 de Abril, nada tem a ver, como acontece em Espanha, com um problema por resolver com a nossa memória coletiva e com a disputa entre a esquerda e a direita pela história. Tem a ver com um problema interno que a direita precisa de resolver. Porque a unidade em torno da data fundadora da democracia inclui quem eles não queriam e exclui aqueles de quem precisam. Para o conseguir, inventaram um 25 de Novembro que não aconteceu. De tal forma, que o celebram contra boa parte dos seus autores.

O CDS e o Chega, com a anuência de um PSD liderado por gente sem cultura política ou histórica, estão a reinventar o 25 de Novembro como uma data de rutura, quase refundadora. Houve atropelos, sedes queimadas, ocupações, terrorismo de direita e violência de esquerda e luta intensa pelo poder, mas as primeiras eleições livres aconteceram antes, a 25 de abril de 1975, e a censura e as liberdades cívicas foram conquistadas ainda em 1974.

A esquerda comunista e, ainda mais, a extrema-esquerda (num tempo em que ela existia) foram contidas, a 25 de novembro, assim como os saudosistas que sonhavam impedir a liberdade e a descolonização plenas o foram, a 28 de setembro, data que não celebramos. Tudo compreensível, à distância, num processo que foi revolucionário, não de mera transição. Quem queira perceber melhor, pode ler o último artigo de Pacheco Pereira.

Como já explicaram vários autores do 25 de Novembro, houve um reequilíbrio de forças, como já tinha acontecido a 11 de março ou 28 de setembro. Se dúvidas houvesse, o governo, o Presidente, o Conselho da Revolução, as leis e as instituições mantiveram-se. Houve apenas, e a isso se resume aquela crise militar, uma mudança na correlação de forças políticas e militares.

Basta recordar que o PPD, que queria colocar-se claramente à esquerda, começou por concordar com a grande vaga de nacionalizações, para perceber que as dicotomias claras que hoje se descrevem eram muitíssimo mais complicadas e contraditórias na altura. Até o papel do PCP no 25 de Novembro não é, ainda hoje, evidente. Nem há qualquer consenso histórico sobre a tentativa ou capacidade de o PCP tomar o poder no extremo ocidental da Europa e num país da NATO. Desde a Primavera de Praga que se sabia que a divisão da Europa era aceite pelas duas potências globais.

A direita também está a reinventar o 25 de Nnovembro à luz dos desejos de alguns, à época. Os que Chega, IL e CDS têm como heróis do 25 de Novembro foram derrotados por Melo Antunes ou Vasco Lourenço, que impediram que o golpe se transformasse numa revanche de sentido contrário, na caça ao comunista, na ilegalização do PCP e na redução de liberdades, que, aos seus olhos, teriam sido excessivas. Se o 25 de Novembro tivesse sido o que queriam, seria a antítese do 25 de Abril. Não foi. A aliança que se fez para celebrar o 25 de Novembro, que a direita agressiva queria transformar num recuo, foi derrotada há 50 anos.

A história sempre foi lugar de combate. Está sempre a ser reescrita, porque é um olhar do presente, nas suas circunstâncias e com as suas necessidades, sobre o passado. É por ter sido reescrita pela conveniência que Otelo deu lugar a Salgueiro Maia, no lugar de herói de Abril, apesar de o primeiro ter sido muitíssimo mais determinante do que o segundo. Foi o que Otelo fez depois que determinou o seu lugar histórico em acontecimentos anteriores. É também por isso que a direita tenta que Jaime Neves substitua Vasco Lourenço, mas sem sucesso. Estas comemorações à revelia de boa parte dos seus autores conseguiram o feito de não ter a presença e apoio de ninguém do Grupo dos Nove, os militares moderados que foram o motor político do 25 de Novembro.

A tentativa de reescrever aquele momento é tal, que ouvi, na TSF, Paulo Núncio dizer que Vasco Lourenço nunca acreditou na democracia que teríamos conquistado naquele dia. Chegámos ao ponto de ver quem nada teve a ver com o 25 de Novembro tratar a data como uma derrota de quem a preparou, executou e celebrou.

Mas esta reescrita da história do país é, antes de tudo, uma reescrita da história da direita. Não é uma tentativa de excluir o PCP da festa democrática. Como escreveu Henrique Raposo num texto nada centrista, esses momentos estão na revisão constitucional de 1983 ou na adesão à CEE, muitíssimo mais significativas do que mais uma curva no sinuoso processo revolucionário. E essa é uma disputa antiga e resolvida. O que se tenta é integrar na festa democrática quem se sente derrotado por Abril. Porque estes saudosistas são necessários para haver uma maioria de direita.

Os que nunca quiseram usar o cravo ao peito não querem corrigir a nossa história, querem corrigir a sua. E esta celebração serve para tentar relativizar a data que parte desta direita (o Chega e até o CDS, que se autoexcluiu do arco constitucional), nunca suportou. Não se sentem excluídos da festa que realmente une o país (como se viu pela impressionante manifestação do 50º aniversário) por terem sido empurrados para fora dela, mas porque parte nunca lá esteve, nem de facto, nem de coração. Procuram o seu 25 de Abril.

Ontem, como se esperava, não houve festa. Porque a equiparação é impossível. O 25 de Abril é, pela sua natureza única e admirada em todo o mundo, uma festa popular. Não há povo em novembro. Não porque a data não seja importante (já escrevi várias vezes que o 25 de Novembro e o PREC fazem parte, com as suas contradições, do ADN necessario à nossa democracia), mas porque, contra a vontade dos seus autores, querem que ela seja o que não foi. E se querem substituir uma data de todos por uma para cada um dos lados, vão ficar a perder.

Não é por acaso que as cerimónias de ontem aconteceram sem boa parte dos construtores desta ação militar. É porque esta celebração forçada nada tem a ver com o país. É a direita a resolver as suas próprias mágoas e ausências históricas. Só que, mesmo em novembro, tiveram um papel secundário. Também aí, foi a esquerda, nos seus combates internos, que liderou. A direita democrática estava, como disse Marcos Perestello, “enfraquecida, amedrontada e desorientada e com as lideranças ausentes ou paralisadas”. E os saudosistas mais ou menos explícitos do Estado Novo, que o resto da direita agora quer juntar à sua festa, para poder normalizá-los, também foram derrotados.

 (Expresso 2025 11 26)

https://expresso.pt/opiniao/2025-11-26-ontem-nao-houve-festa 

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