* Jaime Nogueira Pinto
Os heróis de
Verne, como o capitão Nemo e Cyrus Smith, eram como que “homens novos”, homens
de uma nova Renascença, justos, bons, sábios. E, de um modo geral, os romances
de Verne acabavam bem.
29 mar. 2025
Júlio Verne,
popularmente considerado o precursor ou o antepassado próximo da literatura de
ficção científica, morreu há 120 anos, a 24 de Março de 1905.
Fui desde cedo
um leitor apaixonado da ficção científica que me chegou, como à maior parte dos
da minha geração, pela colecção Argonauta dos Livros do Brasil. A Argonauta
apareceu em 1953, e foi talvez em 1956, nas vésperas de entrar para o liceu D.
Manuel II, que comecei a ler os livros, à medida que iam saindo. E fi-lo
regularmente, aí até ao número 200.
Li os primeiros
números no Verão, numa praia da Foz do Douro, uma dessas praias do Estado Novo
dos anos 50 cheias de regras e rituais – com cabo do mar, baloiços, fatos de
banho com peitilho ou camisola interior e três horas de “digestão”. Horas
sagradas, que tínhamos de passar “a descansar”, entre o almoço frugal de
sanduiches mistas e o banho das cinco da tarde.
Anos mais
tarde, no Algarve, o meu sobrinho Pedro havia de me perguntar: “Tio Jaime,
acredita na digestão?” Nessa altura já tinha perdido “a fé”, mas quando era
novo, todos acreditávamos na digestão. E mesmo que não acreditássemos tínhamos
de recolher à barraca durante três horas, independentemente das nossas crenças
e vontades. Por isso, foi estendido na toalha de franjas, debaixo da lona
grossa da barraca que li muita Argonauta (também se acreditava que não era bom
apanhar o sol a pique da hora do almoço e que a leitura não fazia mal ao
estômago).
Os livros, em
formato de bolso, tinham umas capas lindas, de Lima de Freitas e de Cândido
Costa Pinto. Eram de Costa Pinto a capa do primeiro número da colecção
– Perdidos na Estratosfera, de A. M. Low – e a de A Sexta
Coluna, de Robert Heinlein, um verdadeiro épico do género que então me
impressionou consideravelmente. E foi assim que fui descobrindo os grandes
escritores da Science Fiction: a poesia das Crónicas
Marcianas, de Ray Bradbury, que em Fahrenheit 451 identificou
uma distopia de destruição de livros cara aos totalitários de todas as tribos;
os robots e a robótica e os ciclos históricos da
Fundação e do Império, de Isaac Asimov; Arthur C. Clarke e a sua Odisseia
no Espaço; o extraordinário mundo feudal de Frank Herbert, o criador
de Dune, que David Lynch adaptaria ao cinema; e outros, como A. E.
Vvan Vogt, Fredric Brown, Brian Aldiss, Poul Anderson e Philip K. Dick,
um dos “últimos”. E a sobressair num género dominantemente masculino, Ursula Le
Guin, a criadora do fabuloso Feiticeiro de Terra-Mar.
Mas a minha
iniciação na “literatura de antecipação”, tal como a de muitos, em Portugal e
no mundo, tinha acontecido antes, com as “viagens extraordinárias” de Júlio
Verne, onde se misturavam o imaginário, a ciência e a geografia.
Uma
literatura de antecipação
Não era bem
ficção científica era uma “antecipação” imaginativa a partir de invenções e
acontecimentos relativamente próximos. Não nos podemos esquecer – e às vezes
esquecemo-nos sob o impacto das surpresas e maravilhas científicas e técnicas
da nossa Idade – que o núcleo duro das invenções que ainda fazem o nosso
quotidiano são da segunda metade do século XIX: o telégrafo, a electricidade, o
telefone, o cinema, o automóvel, o avião. Ora Júlio Verne nasceu em 1828 e
morreu em 1905, ou seja, viveu o politicamente agitado século XIX francês,
desde a monarquia tradicional restaurada de Carlos X de Bourbon até à Terceira
República jacobina e anti-clerical de Loubet e Combes.
Não me lembro
exactamente qual foi o primeiro livro de Verne que li, mas quase que ia jurar
que foi A Ilha Misteriosa. A trama é um modelo da narrativa
verneana, inspirada no clássico Robinson Crusoe, de Daniel Defoe
(1719), no Robinson Suíço, de Johann Wyss (1812), e numa
narrativa próxima do tempo do autor, a de François Édouard Raynal, que
naufragara nas ilhas Auckland, no Pacífico Sul.
A Ilha
Misteriosa saiu primeiro em folhetim jornalístico, entre Janeiro de
1874 e Dezembro de 1875, com ilustrações de Jules Férat. Faz parte das “viagens
extraordinárias”, uma série de romances em que Verne combina aventura,
maravilhoso, mistério, geografia, imaginação, ciência e tecnologia.
Durante o cerco
de Richmond, cinco prisioneiros, cinco abolicionistas, conseguem escapar em
balão; depois de cinco dias e quase dez mil quilómetros, chegam a uma ilha
deserta do Pacífico. A personagem mais importante do grupo é o engenheiro Cyrus
Smith, que leva com ele o criado Nab; há um jornalista, Gedeon Spillet, um
marinheiro, Pencroff, e o jovem Herbert. Cyrus é o típico herói de Verne – um
homem de coragem, de cultura e de ciência, um chefe natural, que não só vai
assegurar a sobrevivência do grupo como a “colonização acelerada” da ilha,
valendo-se da convergência de talentos e conhecimentos dos expedicionistas.
Assim, a ilha “Lincoln” transforma-se num espaço civilizado, sob o qual vela o
grande herói verneano, o capitão Nemo, o do Nautilus e
das 20.000 Léguas Submarinas.
Verne nasceu em
Nantes, na ilha Feydeau, perto do Quai Jean-Bart, onde passou toda a infância,
o que lhe estimulou o gosto da viagem, do mar, das ilhas. Foi para Paris nos
anos 1850 onde conheceu, além de Alexandre Dumas e Victor Hugo, Jacques Arago,
viajante e geógrafo, que completara uma volta ao mundo em 1817, a bordo
do l’Uranie. E, claro, o seu editor Hetzel, que encontrou em 1862 e
com quem iria ter uma colaboração modelo e de longa duração. Um editor crítico
que levantava objecções e fazia sugestões que o autor aceitava, também
criticamente, como bem o documenta a correspondência entre os dois.
Verne e
os outros
Em 1864, Verne
publicou Cinq Semaines en Ballon, o primeiro romance da série
“viagens extraordinárias”, que um crítico classificou como “roman cientifique”.
Théophile Gautier, referindo-se ao novo género, falou em “quimera cavalgada e
dirigida por um espírito matemático”; outros consideram-no uma “maravilha
científica” e chamaram a Verne “pioneiro do romance científico”.
Por esse tempo,
Edgar Alan Poe já publicara os contos e A Narrativa de Arthur Gordon
Pym, e Émile Zola, num artigo de 1866, não pôde deixar de comparar “o
pesadelo Edgar Poe” à “fantasia amável e instrutiva” de Verne. Outros críticos,
reconhecendo a originalidade do fantástico de Poe na literatura de viagens de
Homero a Defoe, passando pelas narrativas marítimas dos portugueses,
reconheceriam também em Verne a originalidade da convergência “viagem,
geografia, ciência, técnica e aventura”.
Os heróis de
Verne, como o capitão Nemo e Cyrus Smith, eram como que “homens novos”, homens
de uma nova Renascença, justos, bons, sábios. E, de um modo geral, os romances
de Verne acabavam bem. Quando comparamos o fantástico de Júlio Verne, com as
suas máquinas e invenções que procuram sempre respeitar os dados científicos e
técnicos do tempo, e a vindoura literatura de futuríveis do século XX – as
distopias clássicas de Huxley, Orwell ou Bradbury, com os horrores das
sociedades perfeitas de Brave New World, ou a tirania institucional
de 1984 ou de Fahrenheit 451 – a diferença e
a ruptura são chocantes. E não terá sido só por o século XX ter visto as
primeiras utopias postas em prática, porque nos finais do século XIX, a partir
de 1895, já H. G. Wells tinha escrito A Máquina do Tempo,
(1895), O Homem Invisível (1897), A Guerra dos Mundos e Os
Primeiros Homens na Lua (1901).
Verne
escrevera Da Terra à Lua em 1865 e era, até por geração, o
pioneiro: a crítica não resistiria à comparação. E mesmo em França, onde os
livros de Wells foram traduzidos a partir de 1898, revistas como o Mercure
de France, a Revue de Paris e a Revue des deux
mondes preferiam o inglês a Verne.
A morte de
Verne, em 1905, trouxe um clamor de elogios e até um certo espírito de
reparação dos que tinham desdenhado o compatriota, preferindo o inglês.
Reparação com algum exagero compensatório, como o do crítico Adré Lamie, que
comparou o autor de A Ilha Misteriosa a Cervantes e a Balzac.
Verne é mais
realista, mais científico, mais hábil a encontrar e encadear mil peripécias do
que Wells; Wells é mais filosófico, mais problemático, mais desligado do
técnico-científico. Verne é optimista em geral e moderamente optimista quanto à
natureza humana e, além disso, é um homem de fé no Criador e na Criação. Wells
não parece alinhar nesse optimismo.
Talvez por isso
Verne seja um autor para a juventude, para a iniciação num mundo de aventura,
como Robert Louis Stevenson, ou James Fenimore Cooper, ou Mark Twain, enquanto
Wells é um precursor do século XX. Um século que não trouxe as maravilhas
que Verne tinha previsto, em que os submarinos serviram para afundar cargueiros
civis e em que as grandes invenções foram acontecendo sobretudo a partir das
guerras e para servir a guerra.

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