terça-feira, 25 de novembro de 2025

Jailme Nogueira Pinto - O grande imaginador: Nos 120 anos da morte de Júlio Verne


* Jaime Nogueira Pinto 

Os heróis de Verne, como o capitão Nemo e Cyrus Smith, eram como que “homens novos”, homens de uma nova Renascença, justos, bons, sábios. E, de um modo geral, os romances de Verne acabavam bem.

29 mar. 2025

Júlio Verne, popularmente considerado o precursor ou o antepassado próximo da literatura de ficção científica, morreu há 120 anos, a 24 de Março de 1905.

Fui desde cedo um leitor apaixonado da ficção científica que me chegou, como à maior parte dos da minha geração, pela colecção Argonauta dos Livros do Brasil. A Argonauta apareceu em 1953, e foi talvez em 1956, nas vésperas de entrar para o liceu D. Manuel II, que comecei a ler os livros, à medida que iam saindo. E fi-lo regularmente, aí até ao número 200.

Li os primeiros números no Verão, numa praia da Foz do Douro, uma dessas praias do Estado Novo dos anos 50 cheias de regras e rituais – com cabo do mar, baloiços, fatos de banho com peitilho ou camisola interior e três horas de “digestão”. Horas sagradas, que tínhamos de passar “a descansar”, entre o almoço frugal de sanduiches mistas e o banho das cinco da tarde.

Anos mais tarde, no Algarve, o meu sobrinho Pedro havia de me perguntar: “Tio Jaime, acredita na digestão?” Nessa altura já tinha perdido “a fé”, mas quando era novo, todos acreditávamos na digestão. E mesmo que não acreditássemos tínhamos de recolher à barraca durante três horas, independentemente das nossas crenças e vontades. Por isso, foi estendido na toalha de franjas, debaixo da lona grossa da barraca que li muita Argonauta (também se acreditava que não era bom apanhar o sol a pique da hora do almoço e que a leitura não fazia mal ao estômago).

Os livros, em formato de bolso, tinham umas capas lindas, de Lima de Freitas e de Cândido Costa Pinto.  Eram de Costa Pinto a capa do primeiro número da colecção – Perdidos na Estratosfera, de A. M. Low – e a de A Sexta Coluna, de Robert Heinlein, um verdadeiro épico do género que então me impressionou consideravelmente. E foi assim que fui descobrindo os grandes escritores da Science Fiction: a poesia das Crónicas Marcianas, de Ray Bradbury, que em Fahrenheit 451 identificou uma distopia de destruição de livros cara aos totalitários de todas as tribos; os robots e a robótica e  os ciclos históricos da Fundação e do Império, de Isaac Asimov; Arthur C. Clarke e a sua Odisseia no Espaço; o extraordinário mundo feudal de Frank Herbert, o criador de Dune, que David Lynch adaptaria ao cinema; e outros, como A. E. Vvan Vogt, Fredric Brown, Brian Aldiss, Poul Anderson  e Philip K. Dick, um dos “últimos”. E a sobressair num género dominantemente masculino, Ursula Le Guin, a criadora do fabuloso Feiticeiro de Terra-Mar.

Mas a minha iniciação na “literatura de antecipação”, tal como a de muitos, em Portugal e no mundo, tinha acontecido antes, com as “viagens extraordinárias” de Júlio Verne, onde se misturavam o imaginário, a ciência e a geografia. 

Uma literatura de antecipação

Não era bem ficção científica era uma “antecipação” imaginativa a partir de invenções e acontecimentos relativamente próximos. Não nos podemos esquecer – e às vezes esquecemo-nos sob o impacto das surpresas e maravilhas científicas e técnicas da nossa Idade – que o núcleo duro das invenções que ainda fazem o nosso quotidiano são da segunda metade do século XIX: o telégrafo, a electricidade, o telefone, o cinema, o automóvel, o avião. Ora Júlio Verne nasceu em 1828 e morreu em 1905, ou seja, viveu o politicamente agitado século XIX francês, desde a monarquia tradicional restaurada de Carlos X de Bourbon até à Terceira República jacobina e anti-clerical de Loubet e Combes.

Não me lembro exactamente qual foi o primeiro livro de Verne que li, mas quase que ia jurar que foi A Ilha Misteriosa. A trama é um modelo da narrativa verneana, inspirada no clássico Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1719), no Robinson Suíço, de Johann Wyss (1812), e numa narrativa próxima do tempo do autor, a de François Édouard Raynal, que naufragara nas ilhas Auckland, no Pacífico Sul.

A Ilha Misteriosa saiu primeiro em folhetim jornalístico, entre Janeiro de 1874 e Dezembro de 1875, com ilustrações de Jules Férat. Faz parte das “viagens extraordinárias”, uma série de romances em que Verne combina aventura, maravilhoso, mistério, geografia, imaginação, ciência e tecnologia.

Durante o cerco de Richmond, cinco prisioneiros, cinco abolicionistas, conseguem escapar em balão; depois de cinco dias e quase dez mil quilómetros, chegam a uma ilha deserta do Pacífico. A personagem mais importante do grupo é o engenheiro Cyrus Smith, que leva com ele o criado Nab; há um jornalista, Gedeon Spillet, um marinheiro, Pencroff, e o jovem Herbert. Cyrus é o típico herói de Verne – um homem de coragem, de cultura e de ciência, um chefe natural, que não só vai assegurar a sobrevivência do grupo como a “colonização acelerada” da ilha, valendo-se da convergência de talentos e conhecimentos dos expedicionistas. Assim, a ilha “Lincoln” transforma-se num espaço civilizado, sob o qual vela o grande herói verneano, o capitão Nemo, o do Nautilus e das 20.000 Léguas Submarinas.

Verne nasceu em Nantes, na ilha Feydeau, perto do Quai Jean-Bart, onde passou toda a infância, o que lhe estimulou o gosto da viagem, do mar, das ilhas. Foi para Paris nos anos 1850 onde conheceu, além de Alexandre Dumas e Victor Hugo, Jacques Arago, viajante e geógrafo, que completara uma volta ao mundo em 1817, a bordo do l’Uranie. E, claro, o seu editor Hetzel, que encontrou em 1862 e com quem iria ter uma colaboração modelo e de longa duração. Um editor crítico que levantava objecções e fazia sugestões que o autor aceitava, também criticamente, como bem o documenta a correspondência entre os dois.

Verne e os outros

Em 1864, Verne publicou Cinq Semaines en Ballon, o primeiro romance da série “viagens extraordinárias”, que um crítico classificou como “roman cientifique”. Théophile Gautier, referindo-se ao novo género, falou em “quimera cavalgada e dirigida por um espírito matemático”; outros consideram-no uma “maravilha científica” e chamaram a Verne “pioneiro do romance científico”.

Por esse tempo, Edgar Alan Poe já publicara os contos e A Narrativa de Arthur Gordon Pym, e Émile Zola, num artigo de 1866, não pôde deixar de comparar “o pesadelo Edgar Poe” à “fantasia amável e instrutiva” de Verne. Outros críticos, reconhecendo a originalidade do fantástico de Poe na literatura de viagens de Homero a Defoe, passando pelas narrativas marítimas dos portugueses, reconheceriam também em Verne a originalidade da convergência “viagem, geografia, ciência, técnica e aventura”.

Os heróis de Verne, como o capitão Nemo e Cyrus Smith, eram como que “homens novos”, homens de uma nova Renascença, justos, bons, sábios. E, de um modo geral, os romances de Verne acabavam bem. Quando comparamos o fantástico de Júlio Verne, com as suas máquinas e invenções que procuram sempre respeitar os dados científicos e técnicos do tempo, e a vindoura literatura de futuríveis do século XX – as distopias clássicas de Huxley, Orwell ou Bradbury, com os horrores das sociedades perfeitas de Brave New World, ou a tirania institucional de 1984 ou de Fahrenheit 451 – a diferença e a ruptura são chocantes. E não terá sido só por o século XX ter visto as primeiras utopias postas em prática, porque nos finais do século XIX, a partir de 1895, já H. G. Wells tinha escrito A Máquina do Tempo, (1895), O Homem Invisível (1897), A Guerra dos Mundos e Os Primeiros Homens na Lua (1901).

Verne escrevera Da Terra à Lua em 1865 e era, até por geração, o pioneiro: a crítica não resistiria à comparação. E mesmo em França, onde os livros de Wells foram traduzidos a partir de 1898, revistas como o Mercure de France, a Revue de Paris e a Revue des deux mondes preferiam o inglês a Verne.

A morte de Verne, em 1905, trouxe um clamor de elogios e até um certo espírito de reparação dos que tinham desdenhado o compatriota, preferindo o inglês. Reparação com algum exagero compensatório, como o do crítico Adré Lamie, que comparou o autor de A Ilha Misteriosa a Cervantes e a Balzac.

Verne é mais realista, mais científico, mais hábil a encontrar e encadear mil peripécias do que Wells; Wells é mais filosófico, mais problemático, mais desligado do técnico-científico. Verne é optimista em geral e moderamente optimista quanto à natureza humana e, além disso, é um homem de fé no Criador e na Criação. Wells não parece alinhar nesse optimismo.

Talvez por isso Verne seja um autor para a juventude, para a iniciação num mundo de aventura, como Robert Louis Stevenson, ou James Fenimore Cooper, ou Mark Twain, enquanto Wells é um precursor do século XX.  Um século que não trouxe as maravilhas que Verne tinha previsto, em que os submarinos serviram para afundar cargueiros civis e em que as grandes invenções foram acontecendo sobretudo a partir das guerras e para servir a guerra.

https://observador.pt/opiniao/o-grande-imaginador-nos-120-anos-da-morte-de-julio-verne

Gravura: Monumento a Julio Verne no Porto de Vigo
in  in https://blog.mcientifica.com.br/julio-verne//

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