quinta-feira, 27 de setembro de 2007

HISTÓRIAS DA GUERRA COLONIAL

MANUEL CARVALHO

ENCONTRO COM O JOÃO DE MELO












NOITE DE SENTINELA






- Cabrões ! - Com um piparote bem medido, Américo espalmou o mosquito contra o
pescoço. - Já não me lixas mais.


Sentia-se chegar ao limite da resistência, os tornozelos e os nós dos dedos
dolorosamente inchados de tanta ferroada. Prestes a desatar aos berros.

Ao redor do aquartelamento, à volta dos postes de iluminação, os mosquitos saíam
da noite em hordas cerradas.

"Maldita terra, malditos mosquitos. Não bastava este calor de morrer."


Pousou a G-3 no parapeito do posto de vigia e pôs-se a espiar o negrume.
Múltiplos ruidos, indestrincáveis, de todos os timbres, elevavam-se para além do anel
de luz das lâmpadas da periferia do aquartelamento. Era um bramar soturno, hostil,
prenhe de suspeições.


Por instantes esqueceu-se dos mosquitos, percorrido por um arrepio.
Mas o ressonar dos dois camaradas de posto, mesmo a seus pés, serenou-o.


"Se estivesse sozinho morria de cagaço."


Olhou o relógio de pulso. Os ponteiros fosforescentes indicavam
as três horas da madrugada. Dentro de três quartos de hora despertaria o
Mendes para o render. Seria a sua vez de ferrar o galho, se fosse capaz.


Apetecia-lhe fumar um cigarro mas a imagem ameaçadora do capitão
sobrepôs-se ao desejo. Não lhe apetecia mesmo nada apanhar uma porrada e ir parar ao
Leste, que era bem pior do que o Norte, segundo diziam.


"- Sentinela, éh sentinela !"


Emaranhado nos seus pensamentos, levou tempo a recompor-se.


- Estavas a dormir, logo na primeira noite ?


Pela voz, reconheceu o furriel Neves.


- Aqui no poleiro, não dá o sono a ninguém, meu furriel.


- Podia passar por aqui um regimento de turras que não davas por nada.
Vamos lá a ver se abres mais os olhos.


Américo sentiu os passos do furriel perderem-se na noite. Enervado,
tornou a olhar o relógio. Estava na hora. Até já passavam cinco minutos.

- Acorda, Mendes, está na hora.


O camarada soergueu-se da enxerga, estremunhado.


- Já ? Não me estás a tramar ?


- Vá, levanta-te. Não acordes o Fernandes.


- Logo agora que estava a sonhar com uma miúda muito boa lá da terra. Tens um cigarro ?


- Olha o capitão.


- O capitão que vá bardamerda. Dá cá o cigarro.


O clarão do fósforo iluminou dois rostos terrosos. Depois ficou a ponta
vermelha do cigarro a fazer arabescos na noite.


- Não te deitas ?


- Não tenho sono. Fico contigo um bocado.


- Saudades ? Deixa lá que qualquer dia já chega o correio.


Falavam em surdina, para não acordar o Fernandes. Os mosquitos tinham
acalmado e para além dos morros começava a assomar o palor da madrugada.


- Sabias que o meu filho fez ontem um ano ? - disse Américo, com tremuras na
voz. - É verdade, fez ontem um ano que ele nasceu em França.

- Tu estavas na França, não é ? Que maluqueira foi essa de voltares
para fazer a tropa ?


- Sei lá ! Comecei a pensar que nunca mais poderia regressar
a Portugal, que o meu filho nunca poderia conhecer os avós. A mulher
também se sentia triste sem a família. Resolvemos regressar. Mas quando
acabar esta merda, volto para a França.


- Dizes bem, esta merda.


Subitamente, um estampido acordou a noite.


- Ouviste ?


- Foi no posto 3.


Soou outro tiro, logo seguido duma rajada.


O aquartelamento encheu-se de sobressalto : luzes, vozes alteradas,
correrias, o latir do Fantasma.


- Será um ataque ? aventou Américo de dedos crispados na G-3.


O Fernandes despertara.


- O que é que a gente vai fazer ?- balbuciou.


A pergunta fê-los sentir como galinhas aprisionadas.


- Terá morrido alguém ?


- E nós aqui sem saber de nada.


- Que porra de situação.


- Calma - aconselhou Mendes. - Não me parece coisa grave.


- Sentinela ! - gritaram lá de baixo.


- Quem está aí ? - perguntaram em coro.


- É o furriel Meneses. Estejam tranquilos que ainda não é desta que vão
morrer. Foi o parvo do Costa que julgou ter ouvido um ruído estranho e desatou
às rajadas como um maricas. Algum javali.


- Que cagaço, meu furriel ! - Américo soltou uma risada nervosa. -
Já pensávamos que os turras tinham atacado.


- Ponham-se mas é a pau com os ataques dos mosquitos.


- Que susto aquele gajo nos pregou - desabafou o Fernandes. - Ia-me borrando todo.


- O furriel disse que eram os javalis mas podiam muito bem ter sido os turras.


- Nunca se sabe.


- Afinal, quem é que está de sentinela ? Eu ou vocês ? - galhofou o Mendes.


A parada enchia-se de vida com as primeiras pinceladas da manhã.


O segundo pelotão vair sair para a mata - suspirou o Fernandes. - Já é de dia.


- Graças a Deus - benzeu-se o Américo, olhos postos na luminosidade
que acobreava o dorso dos morros.






CHEGADA DO CORREIO



- João Moreira.



— Pronto!



— Carlos Afonso.



— Estou aqui.



Empoleirado numa mesa do refeitório,qual deus louco,
o cabo-cripto Ruivo semeia, às mãos-cheias, a alegria e a tristeza, as lágrimas
e os risos.



— Pedro Antunes.



— Eu...



- José Fernandes.



— Dá cá.



Mãos nervosas como gadanhas. Dedos
hirtos que se engalfinham nas cartas e aerogramas.



O Ruivo era o tipo mais importante da
Companhia. Ou, pelo menos, assim o cria.



Na verdade era ele que estava
incumbido da distribuição do correio que o avião trazia duas vezes por semana
de S.Salvador, juntamente com os frescos.



O avião chegava geralmente por volta
das onze horas da manhã e razava duas ou três vezes o aquartelamento, com as
goelas abertas, a dar tempo que se montasse a segurança à pista.



Enquanto o furriel vagomestre Máximo
procedia à conferência da carne e do peixe, o Ruivo recebia das mãos do piloto
o saco do correio. Aquele saco era um coração gigantesco, palpitante, poderoso.
O principal sustentáculo da Companhia. Mais do que as G-3 e a cerveja, as
metralhadoras e os cigarros, os morteiros e as negras da Sanzala.



— Hoje pesa - dizia invariavelmente
o piloto.



— Deve vir cheio de cornos -
gracejava por sua vez o Ruivo.



Concluida a transacção do correio e
dos frescos, a D.O. começava a deslizar pela pista e dentro em pouco não era
mais do que um mosquito zumbidor rumo a S.Salvador.



O pessoal da segurança saía do capim
e saltava lesto para o unimog que arrancava de prego a fundo para o caldeirão
ao rubro do aquartelamento.



— Américo Pereira.



— Aqui.



- Carlos Marecos.



— Viva!



Restam três cartas. As unhas
cravam-se nas palmas das mãos. Os rostos contorcem-se em esgares doloridos.



O Ruivo passeia um sorriso
displicente por aquele mar de olhos esgrouviados e acaricia o magro monte de
correspondência que resta com



artifícios de amante sabido.



— Despacha-te... pá!



- Calminha..., tens tempo de saber
que o teu filho já chama pai a outro.



- Vai gozar com a tua avó.



O litúrgico deu lugar ao burlesco. Ruivo
procura escamotear o tempo, prolongar o seu reinado.



- Daqui a nada tás a apanhar um
borracho nos óculos.



Atingido o ponto crítico de
ruptura.É perigoso ir mais além.



- José Mendonça.



— Até que enfim.



- Pedro Moreira.



- Uf...!



— Manuel Augusto.



— Mas... não há mais nada...? —
pergunta uma voz incrédula.



- Nada mais. Começa a procurar outra
que essa já te pôs os cornos.



Há rostos lívidos de angústia, sorrisos
rasgados de orelha a orelhas, dorsos quebrados de solidão, olhos refulgentes de
alegria.



“Sou o tipo mais importante da
Companhia” — conclui, mais uma vez, o Ruivo.





NOITE DE
CONSOADA





Pouco passava
das dez horas da noite e na caserna do 1o pelotão já se bebera até chegar como
o dedo. O Fernandes sacou do realejo e largou a tocar modinhas do Minho. Todos
se puseram a dançar, os dorsos nús cheios de reflexos acobreados.



- Puxa pela garganta, Fernandes. Mostra a esta
malta quem são os nortenhos - gritou o Pacaça. Levou uma cerveja à boca e a
maçã-de-adão começou a subir e a descer no pescoço de touro.



- Cinco segundos, hem! Quem é capaz de fazer
este tempo? Alguém tem peneiras? - desafiou ao redor, de olhos envinagrados.



Mas ninguém lhe ligou. Dançava-se e bebia-se
por entre guinchos ululantes. O odor dos corpos suados misturava-se com o
cheiro azedo da cerveja entornada. O Pacaça agarrou outra cerveja e recomeçou a
sua corrida contra o tempo: um.. . dois. . . três... quatro segundos.



Ufano, os olhos negros incendiados, desafiava a
malta.



- Hei-de chegar aos três segundos ainda esta
noite - taramelava, numa dança de ébrio.



O Barão começou a cantar:

«Estou farto deles»



E o pelotão acompanhou-o em coro:



«Da chicalhada,



Esses
pançudos,



Que não fazem nada».



Américo segurou Mendes por um pulso.



- Quero-te mostrar uma coisa - ciciou-lhe ao
ouvido.



Nos olhos já lhe bailavam meia dúzia de Sagres.



- Anda daí.



A malta continuava a cantar:



«Vai prá mata



Ó meu malandro.



Por tua causa



É qu’eu aqui ando».



Mendes, acabou de beber a cerveja e deixou-se
conduzir. Américo tirou a mala de debaixo da cama e abriu-a.


- Olha! Tá lindo, não tá?


Mendes segurou a fotografia. O rosto traquinas do filho do Américo fê-lo engolir em seco.


- Tá lindo, não tá? - insistia a voz cheia de lágrimas do Américo.


«Abre a cantina,



Ó cantineiro,



Anda co’a malta



Caga no Primeiro».



- Quando penso que hoje é noite de consoada! - -
soluçava o Américo.



O Fernandes estava fantástico nessa noite,
quase fazia o realejo falar. Os corpos contorciam-se, alucinados, ululantes. O
Barão saltou para cima duma cama:




- Meus senhores, vamos beber em honra da malta
que está nos postos de sentinela esta noite.



Foi então que uma ideia genial chispou naquele
mar de álcool.



- E se lhes fossemos levar uma pinga? - juntou
uma voz.



Como por magia uma garrafa de bagaço nasceu das
mãos do Pacaça.



- Em frente, marche! - comandou o Barão.



À aproximação daquele mar proceloso, as
sentinelas gritavam, alarmadas:



- Quem vem lá?



- É o pai Natal que te trás um presente -
respondia-lhe o pelotão.



E sem tempo para uma resposta, a garrafa de
bagaço começava a gorgolejar garganta abaixo dos felizes contemplados.






MARIA


O Pacaça esqueceu-se que era um
grande bebedor. Já nem mesmo uma boa partida de lerpa o fazia esquecer a
imensidão exasperante dos dias.



— É um caso perdido - comentava,
descoroçado o Barão. — Eu que tinha tantas esperanças neste rapaz!



O Pacaça sorria, o carão inundado
por um fogaréu que lhe crescia nas entranhas.




Impreterivelmente todas as noites,
antes de se escapulir do quartel para a cubata de Maria, passava pela cozinha
buscar os restos do jantar.



— Lá vem o rapa-tachos - galhofavam
os cozinheiros.



Quando havia faltas, chegava ao
ponto de repartir com a rapariga a sua ração. Estirado no catre, qual ritual,
gostava de vê-la comer, silenciosa, cheia de olhares idólatras.



No final, olhos semi-cerrados, o
rosto crispado de desejo, chamava-a:



— Anda cá.



Naquela noite estranhou-a. Não lhe
achou o ardor habitual. O olhar turvou-se-lhe ciumento.



— O que tens?



— Nada - respondeu Maria, abraçando-o.



O Pacaça repeliu-a com brutalidade.



— O que tens? - repetiu,
sondando-lhe os olhos baixos.



— Tenho um filho na barriga -
anunciou, com simplicidade, Maria.



— Um filho!? - gritou Pacaça,
sentando-se de repelão no catre. — Meu!?



Apanhou as calças e vestiu-as
atabalhoadamente. Sentia o estômago às reviravoltas como quando estava com a
ressaca.



Maria continuava sentada na beira do
catre, esfíngica estátua de ébano.



O Pacaça calçou as botas e pegou na
camisa.



— Um filho!?



Velou noite fora.



“Um filho!?”.



Era algo de insólito que se
incrustara subrepticiamente no seu mundo simples e que, à traição, o socara no
estômago, como um copo de bagaço em jejum.



Ouvia o ressonar dos camaradas. A
lua ocupou, gorda e enfarinhada, o rectângulo da janela, pincelando a oca a caserna.
Depois, tranquilamente, desapareceu.



“Que diabo posso fazer? Levar o
garoto comigo? Abandoná-lo?”



A esta última alternativa. o coração
confrangeu-se-lhe. Na sanzala, em todas as sanzalas por onde passava, as
crianças mulatas constrangiam-no.



— Éh filho duma lata de conserva!



— Éh café com leite!


Nunca deixara de repreender os
camaradas, quando estes troçavam dos garotos.




Certa vez ia jogando à porrada com o
Barão. Não tinha estômago para ouvir aquelas coisas.



“Iria o seu filho ser um dia alvo de
troças idênticas?”



Sentia-se acalorado. Com os pés.
atirou o lençol para o fundo da cama, indiferente aos mosquitos.



“E se ficasse em Angola?”



Arrepiou-se e cobriu-se de novo com
o lençol.



Na sanzala, os galos lá cantavam. Em
breve despontaria a alba.



Passou ao de leve pelo sono. Um sono
prenhe de pesadelos e de reviravoltas na cama. A uma reviravolta maior a
despertina regressou. Contou os meses pelos dedos.



“No fim da comissão já o miúdo teria
um ano. Já lhe chamaria pai.”



A ideia de ficar, qual monstro libidinoso,
enroscou-se-lhe no cérebro.



“E por que não? Já ouvira dizer que
davam terras lá para o sul. Não tinha medo ao trabalho. Afinal, se regressasse,
não teria também que ir cavar o seu pão na Alemanha ou na França? Pelo menos em
Angola compreendia as pessoas, falava-se língua de gente. Por que não? Ficar
com a criança, com Maria”.



O Pacaça sorriu e fechou os olhos,
apaziguado. Não tardou a adormecer. Pela janela já escorria uma claridade
diáfana.









FANTASMA






O Américo pensava no filho, que no próximo
domingo fazia dois anos, quando a explosão o atirou ao ar. Caiu de costas na
cama fofa do capim.



Por um bom lapso de tempo não conseguiu
raciocinar, os ouvidos numa zoada tremenda. Gradualmente, foi recuperando a
lucidez.



«Meu Deus! O que teria sido? Meus Deus, meu
Deus, devo estar ferido. Será grave?»



Vozes alvoroçadas subiam ao redor.



«Meu filho, nunca mais te torno a ver».



Após mais uns minutos de imobilidade,
apercebeu-se que não sentia dores. Ousou mexer um pé, depois o outro, as mãos,
o pescoço, o suor a cegá-lo. Sentou-se.



«Meu Deus, estou vivo».



Pôs-se de pé. A zoada nos ouvidos parou. Finalmente,
compreendeu que não estava ferido.



Na picada sobrepunham-se ordens, gritos,
correrias.



«Foi uma mina, foi uma mina. Onde estará a
minha G-3? Se o capitão me apanha sem a arma dá-me uma descasca.»



Reentrou na picada.



- Há feridos?



Ninguém lhe respondeu. O capitão, na berma da
picada, acocorado sobre o rádio de transmissões, estava a comunicar com a
Companhia, numa voz despropositadamente alta. O Barão fumava um cigarro, com a
G-3 a servir de cajado. O enfermeiro punha um penso na testa do Costa.



- Estou muito ferido? - perguntou este, pálido
como um cadáver.



- Nem deita sangue. Feriste-te numa folha de
capim.



- Qual folha de capim, qual carapuça, isto foi
um estilhaço. Bem senti.



O unimog atingido afocinhara, com os pneus da
frente rebentados. Um cheiro intenso a borracha queimada pairava no ar.



- Vem já aí o 2° pelotão socorrer-nos anunciou
o capitão largando o rádio. - Alferes Mendonça mande já os homens sair da
picada e monte a segurança. Que bandalheira é esta?



Só então o Américo sentiu a falta do Fantasma.



- O Fantasma? Onde tá o Fantasma?



- Cagou-se todo com o medo e cavou por esses
morros acima - troçou o Barão.



Américo emitiu um assobio e esperou. Nada, do
Fantasma nem sombras.



- O
Fantasma tá aqui, Américo. Em cima do unimog.



Américo correu para a viatura danificada. Um grande
novelo, branco e peludo, jazia sob os bancos.



- Fantasma - chamou Américo.



O animal não se moveu.



- Fantasma! - tornou o dono, a voz sumir-se.



Pegou-lhe por uma pata inerte e puxou-o. Estava
morto. Um estilhaço perdido fizera um rombo na caixa da viatura e perfurara-lhe
o peito, ao nível do coração.



Américo continuou a puxar e o corpo tombou na
picada com um baque surdo. Uma roseta de sangue alastrava pelo peito do
cadáver, humedecia a terra esfarelada.



Mendes pousou a mão no ombro do Américo.



- Tem calma. . -



- O que há aí?- interpelou-os o capitão. - Não
ouviram as ordens?



- O Fantasma morreu - disse Mendes.



- Atirem-no para o capim. Antes o cão do que um
homem. Mexam-se.



- Ficaste viúvo, Américo - troçou o Barão.



-
Deixa-o
- disse secamente Mendes.



Surdo a tudo, Américo debruçara-se sobre o
corpo do Fantasma, os lábios lívidos como que agitados numa prece.





ARMADILHAS







A mensagem, captada pelo pessoal
do posto de transmissões, propalou-se rapidamente pelo aquartelamento:



"Caiu uma catrefada de turras
nas armadilhas do trilho Luvo."



As casernas esvaziaram-se e a
parada encheu-se de frenesim. Os cozinheiros largaram os tachos e correram a
engrossar os magotes efervescentes. 0 pessoal da limpeza desenvencilhou-se das
vassouras e embicou direito ao posto de transmissões. Para aumentar a balbúrdia,
o jipe da água com o auto-tanque a reboque irrompeu pela parada a grande
velocidade, quase cilindrando um dos grupos.



- Querem trancar o jipe? - refilou o condutor, envolto numa nuvem de
poeira.



O furriel mecânico Reis
apercebeu-se do incidente e saiu disparado da messe dos sargentos, de rosto
apoplético por quatro ou cinco Sagres.



-
O que há?



- Estes gajos atravessaram-se
diante do jipe - desculpou-se o condutor.



- Quantas vezes já te disse para
andares mais devagar dentro do
aquartelamento? - gritou o furriel
assanhado.



O condutor achou por bem bater em
retirada e o jipe começou a rastejar de rabo entre as pernas para a cozinha.



Só então o furriel Reis se
apercebeu da agitação reinante.



- Passa-se alguma coisa? - perguntou
ao redor.



- Parece que caiu um exército
de turras nas nossas armadilbas - respondeu-lhe o básico Marecos, feliz por
esclarecer um furriel.



O furriel Meneses estava estendido
na cama, embrenhado na leitura duma revista quando se levantou a balbúrdia. Depois
ouviu o derrapar do jipe.



''São os fangios do Reis” pensou,
mas como a agitação persistia pousou a revista e foi abrir a
porta.



- O que há? - perguntou ao Reis
que regressava agitadíssimo à messe.



- Cairam uns gajos nas armadilhas
do Luvo.



- Nossos?!



- Turras, parvo.



Meneses começou a ver tudo à roda.
Parada, homens, casernas, céu, bandeira, num turbilhão alucinante. Encostou-se à
parede para não cair.



-
Sentes-te mal, pá? - assustou-se Reis.



Lentamente,
tudo foi reocupando o seu devido lugar. Ficou só o coração a estraçalhar o
peito.



- Queres um copo de água?



Meneses abanou a cabeça.



- Não,
obrigado. Já estou bem.



- Devias ir medir a tensão, aconselhou o
Reis. Deves andar a precisar duns copos. Anda dai.



-
Vai tu. Já estou bem.



O
Reis ainda duvidava.



- Vê lá se te dói alguma coisa.



Meneses reentrou na camarata. Atirou-se para cima da cama.



“Caídos nas armadilhas que ele e o alferes Vasconcelos tinham
montado.”



Vozes, saídas das próprias entranhas esmagavam-lhe as têmporas.



“Assassino... Assassino...”



Afundou a
cara na almofada, as mãos crispadas nos ferros da cama.



Um rugido
animal subiu-Ihe à garganta e as lágrimas saltaram, por fim, a ferver, rosto
abaixo.










in http://manuelcarvalho.8m.com/index5.HTML

BREVEMENTE, NOVA HISTÓRIA




1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Momentos de guerra contados duma maneira empolgante!
Apesar do tema, gostei MUITO!!!
Muito bem contado!!!Parabéns!


Maria Mamede