Não foi assim
Julho 10, 2007 por Nuno Ramos de Almeida
Estou a ler o livro de Zita Seabra. Apesar de ainda me faltarem algumas páginas, queria deixar umas notas soltas. Por método, vou do menos importante para o mais importante e no fim gostaria de deixar um comentário sobre um assunto mais pessoal.
1.A Zita Seabra fez um livro descuidado e mal editado. Nas páginas do “Foi Assim” descobrimos, por exemplo, que Amílcar Cabral era guineense (pág. 163), que Honecker morreu secretário-geral do partido do governo da Alemanha de Leste (pág. 175) e que Che Guevara saiu de Cuba para fazer a revolução na Colômbia (pág. 204).
2. Ao longo de páginas, a autora faz um ajuste de contas que tem uma tortuosa relação com a verdade. Página sim, página não, Zita Seabra vai difamando dirigentes do PCP que se opuseram a ela, recorrendo, nesse processo, de um velho arsenal estalinista do assassinato de carácter. Vejamos um exemplo: na página 128/129 insinua que Carlos Costa é cobarde porque não participou numa fuga com Carlos Brito, esquecendo-se de relembrar que o “cobarde” Carlos Costa foi o mesmo que esteve na fuga de Peniche e desceu com outros presos uma frágil corda feita de lençóis. Ao longo de todo o livro, os únicos dirigentes comunistas honestos ou viveram com Zita Seabra, ou morreram, ou saíram do PCP.
3. Várias vezes a autora recorre à mentira fácil para conseguir um efeito, um instrumental típico do estalinismo, conhecido por verdade instrumental. Faz este tipo de truques nas coisas mais pequenas e ridículas, às vezes sem ter em conta a própria coerência da obra. Na página 168, Zita Seabra garante que os militantes do PCP nunca gostaram de Zeca Afonso porque ele nunca foi do partido ou “compagnon de route”. Eis uma declaração que só a deve incluir a ela, pois não conheci nenhum militante do PCP que expressasse uma posição tão estúpida. A própria Zita Seabra, 30 páginas depois, está a descrever o agrado com que os militantes do PCP escutavam Zeca Afonso. Mais grave é a pseudo-descrição da chegada de Cunhal a Lisboa que fez na entrevista à RTP 1. Aí é garantido que Cunhal encenou a subida ao cimo do tanque para representar uma repetição da chegada de Lenine a Petrogrado. Todos os testemunhos históricos negam essa vontade de orquestrar. Cunhal subiu de facto a um Chaimite a convite de Jaime Neves, por não haver outro sítio onde pudesse falar à multidão.
4. O livro está cheio do ego de Zita Seabra. Nessas páginas descobrimos a mágoa que sentiu por não ter sido convidada para a formação da UEC. Ficamos a saber, outra inverdade histórica, que ela dirigiu a UEC até ao fim (saiu, bastante contestada pelo seu autoritarismo, quando na UEC Jorge Araújo substituiu Carlos Brito no controlo da organização). Para já não falar de afirmações, a tocar ao espantoso, quando nos quer convencer que Cunhal deixou de lhe falar porque ela foi mais aplaudida do que ele num comício em Aveiro. Como se Cunhal necessitasse, para ser reconhecido o seu valor e influência, de ter mais palmas do que ela…. Zita Seabra tem-se numa alta conta que atinge as raias do doentio. E tende, provavelmente, a ver os outros como ela é.
5. A esse respeito, é fantástico a assumpção por parte dela de que todos foram “comunistas” como ela. Que todo o aderente do partido ambicionava tomar o poder pela força, liquidar os contra-revolucionários e pelo caminho torturar gente nas caves de uma sede qualquer. É preciso esclarecer que nem todos tinham uma leitura tão simplista e criminosa do marxismo-leninismo e que a grande maioria dos comunistas estava convencido que se batia por uma maior liberdade e justiça social e não para instaurar uma ditadura de um qualquer secretário-geral.
6. Agora uma questão pessoal. Zita Seabra passa metade do livro a gabar a sua imensa coragem e a dizer da falta de valor daqueles que estavam no exílio, chegando quase a insinuar esse comodismo no próprio Cunhal. Como se Cunhal não tivesse sido preso, torturado, estado em isolamento, fugido de Peniche, e o PCP, dadas as sucessivas prisões de dirigentes e os problemas que isso acarretava, não tivesse, correctamente, decidido manter parte da direcção no estrangeiro.
A certa altura, Zita Seabra, para afirmar a sua superioridade moral sobre os “ortodoxos”, refere o caso de Pedro Ramos de Almeida, afirmando o seguinte: “o regime negociou e permitiu o regresso do exílio de um importante funcionário do PCP, na altura em Argel, responsável pela organização naquele país. Regressou com uma ampla publicidade e sem que nada lhe acontecesse, nem que a PIDE o molestasse. Tratou-se de Pedro Ramos de Almeida, antigo estudante de Direito. Dizia-se, admito que seja verdade, que tal regresso tinha sido negociado directamente pelo Dr. Abranches Ferrão, conhecido e prestigiado advogado de Lisboa e creio que seu padrinho, e pelo próprio Marcelo Caetano. (…) Pedro Ramos de Almeida foi prontamente expulso do PCP, vindo a ser reintegrado no PCP só bastante depois do 25 de Abril, por decisão ratificada do Comité Central, quando foram também readmitidos outros casos ainda mais complexos de militantes que não tinham tido um porte exemplar na cadeia. Ramos de Almeida, curiosamente, quando voltou a ser militante veio imbuído da mais dura ortodoxia”.
Essa história, que eu conheço bem - afinal Pedro Ramos de Almeida é meu pai -, é exemplar do ponto de vista das pequenas manipulações e inverdades.
Comecemos pelo início, quando Pedro Ramos de Almeida não estava em Argel, mas na clandestinidade em Portugal. Aliás, ao contrário do que felizmente sucedeu com Zita, o meu pai foi preso várias vezes e torturado, a primeira aos 17 anos, sem nunca falar à polícia, e preso mais de quatro anos, grande parte dos quais em Peniche. O meu pai era não apenas um importante funcionário, mas um dos principais organizadores dos sectores estudantil e intelectual do PCP e membro do Comité Central. O que aconteceu foi que, depois de vários anos na clandestinidade, ele sentiu-se cansado e com vontade de viver “normalmente”. Pediu, com honestidade, ao PCP para sair da clandestinidade, alegando um conjunto de questões pessoais, nomeadamente o facto do seus filhos estarem na legalidade (por exemplo, a minha mãe e eu tínhamos saído da clandestinidade um ano antes). O PCP foi contra e o meu pai optou por sair, desobedecendo ao partido, sendo por isso expulso. O regresso à legalidade do meu pai, foi tratado pelo seu padrasto Fernando de Abranches Ferrão (o meu avô morreu quando o meu pai era adolescente), e não padrinho como erradamente escreve Zita. Fernando de Abranches Ferrão - que não era um simples “grande advogado”, como o descreve a autora, escamoteando outros factos que não jogavam com a tese de manobra do regime, mas um reconhecido oposicionista, que defendia presos políticos, tinha estado ele mesmo preso e foi fundador do Partido Socialista - conhecia pessoalmente Marcelo Caetano. O meu pai regressou a Portugal com a obrigação de se apresentar regularmente na PIDE, estatuto que interrompeu quando, depois da sua última prisão, fugiu para o exterior. De regresso a Portugal o meu Pai passou a militar, antes e depois do 25 de Abril, na CDE, organização da qual foi membro da direcção durante anos. Ao contrário do que Zita Seabra insinuou, ele não renegou as suas ideias, voltando depois como “ortodoxo”. Para renegar ideias basta-nos a autora.
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