Porto: A falsidade dos mitos e a verdade que neles há
12.12.2010 - 19:07 Por Jorge Marmelo
Era uma vez – a maior parte das histórias incluídas no livro Lendas do Porto, de Joel Cleto, podia começar assim, como fábulas para adormecer crianças. Falam de lutas de mouros, actos heróicos e bárbaros e, em alguns casos, fazem parte de memória identitária das comunidades que ainda as contam. Dificilmente resistem ao confronto com a História, mas, segundo o autor, são mais do que simples mentiras. "Em alguns casos, são os únicos vestígios arqueológicos que existem relativamente a determinadas épocas e acontecimentos", diz Joel Cleto.
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A estátua ao Tripeiro evoca um dos mais conhecidos mitos da cidade, acerca da origem das tripas à moda do Porto (Fernando Veludo/nFactos) - Escultura de Lagoa Henriques
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Resultado de dois anos de crónicas na revista O Tripeiro, o livro, recentemente editado pela Quidnovi, conta com fotografias de Sérgio Jacques e faz questão de desmentir o rifão segundo o qual não se deve permitir que a verdade e os factos estraguem uma boa história. Algumas das lendas da região do Grande Porto são contadas tal como foram fixadas ou continuam a ser narradas, mas são também confrontadas com elementos documentais e, na maior parte dos casos, desmentidas por estes. "Esse é o grande desafio do historiador", considera Cleto.
Da velha história, feita pedra, que estará na origem da fama de "tripeiros" que os portuenses têm, à horrível carnificina entre cristãos e mouros que tingiu de sangue um ribeiro que passou a chamar-se rio Tinto, são várias as lendas que os factos desmentem. "Mas nem tudo é falso. Em alguns casos, no meio daquilo que é irreal, há vestígios concretos, elementos para a arqueologia imaterial", diz Joel Cleto.
Um dos exemplos da verdade que existe nos mitos é o da chamada ilha do Frade: na pequena ilhota que a maré vaza descobre junto à foz do Douro teria ficado preso, e nu, um frade que tentou seduzir uma moça numa noite de nevoeiro. Se aconteceu ou não tal episódio, é difícil saber. Mas Cleto recorda que essa lenda é o único indício de um convento franciscano que existiu em Gaia, do qual não restou mais nenhum vestígio.
Noutro caso, também em Gaia, a lenda do rei Ramiro II, de Leão, é praticamente o único sinal da suposta existência, na margem esquerda do Douro, de uma fortaleza moura tida por inexpugnável, mas que, no século X, terá sido completamente arrasada depois de Gaia, a esposa do rei católico, ter sido raptada pelos mouros e ali feita prisioneira. Neste caso, a lenda explica não só a origem dos topónimos Gaia e Miragaia, como o desaparecimento dos vestígios da grande fortaleza moura.
Outro exemplo? O do fabuloso assalto que o bandoleiro Zé do Telhado, o Robin dos Bosques do Entre Douro e Minho, terá feito, em Agosto de 1852, à quinta que hoje é a Casa de Ramalde. Consultados os documentos, Joel Cleto concluiu que, naquele ano, o palacete estava em ruínas, destruído durante as invasões francesas, e que só veio a ser recuperado quando Zé do Telhado já estava morto.
Mas depois, reconhece Joel Cleto, há casos em que os documentos parecem desmentir o mito, ainda que outros dados acabem por reavivar a lenda. É o caso do altar de prata da Sé do Porto, que teria sido escondido com cal durante as invasões francesas e, deste modo, poupado ao esbulho. Há documentos que apontam para uma versão menos fantasiosa e que indicam que uma senhora abastada terá pago a salvação da jóia, mas recentes descobertas arqueológicas descobriram vestígios de cal nas paredes próximas do altar.
Lendas para mais um livro
"São casos em que nem a história consegue dar uma resposta cabal", reconhece o autor, que acrescenta outro exemplo a esta categoria: é muito pouco provável que a lenda que associa a passagem do corpo de Santiago de Compostela por Matosinhos tenha podido ter lugar no ano 44, já que os documentos apontam para uma chegada posterior do cristianismo a esta parte da Península Ibérica. "Mas há cada vez mais evidências de que, alguns séculos depois, a expansão da fé se fez precisamente através da bacia do Douro", explica Joel Cleto.
Por outro lado, reconhece o autor, algumas das lendas agora reunidas "estão a cair no esquecimento e correm o risco de se perderem". Também por isso, Cleto promete continuar a contar (e a desmontar) os muitos mitos que o Grande Porto ainda guarda. "É possível que daqui a dois anos haja outro livro", diz. Talvez aí já se consiga explicar, por exemplo, a origem do topónimo portuense Fonte da Moura, do qual o historiador nunca conseguiu descobrir nenhum sinal. "Mas, em noventa por cento dos casos, quando há histórias de mouras e tesouros, há também vestígios arqueológicos", garante.
Noutros casos há apenas histórias curiosas, como aquela que explicará a expressão "emprenhar pelos ouvidos", ainda muito utilizada sempre que se quer falar de alguém que se deixou enganar por aquilo que ouviu. Segundo parece, a origem da frase está numa lâmina de bronze existente na Capela do Ferro do Mosteiro de Leça do Balio, a qual narra a anunciação da imaculada concepção, na qual o comunicado divino sai da boca de Deus e entra graficamente nos ouvidos de Maria, que assim teria "emprenhado" pelo pavilhão auricular.Quanto à história das tripas que terão sobrado do abastecimento da frota que a cidade do Porto preparou para a conquista de Ceuta, e que deram origem ao emblemático prato, a História indica, segundo Joel Cleto, que o petisco tem origens bastante anteriores, remontando ao período suevo. O mais provável, porém, é que, pelo menos neste caso, os factos jamais consigam estragar a bela e heróica lenda dos tripeiros, nem substituam a história que se conta há várias gerações e que continua a convencer os turistas.
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