sábado, 11 de dezembro de 2010

A essência lírica na poesia ceciliana por Maria da Graça Cretton

  Cecília Meireles

          A essência lírica na poesia ceciliana
                          por     Maria da Graça Cretton                  
                                                                                                                           

     Para falar de Cecília Meireles, quando se completam 100 anos de seu nascimento, retomamos outros estudos já realizados sobre sua obra poética, inclusive nossa Dissertação de Mestrado intitulada O jogo inquieto o efêmero e o eterno.Uma leitura de Cecília Meireles, cujo resumo foi publicado em  Perspectivas: ensaios de teoria e crítica, editada pelo Departamento de  Ciência da Literatura  da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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      Se existe um traço feminino na poesia lírica ou um traço lírico na mulher, como sugeriu Emil Staiger, em Conceitos Fundamentais da poética, podemos afirmar que a expressão máxima do lirismo na Literatura Brasileira é a obra poética de Cecília Meireles, poeta-mulher de sensibilidade tão rara e tão delicada que se assemelha à “Pequena flor” de um de seus poemas.
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PEQUENA FLOR
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Como pequena flor que recebeu unta chuva enorme
e
se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
na seda frágil e preservar o perfume que ai dorme,
e vê passarem as leves borboletas livremente,
e ouve cantarem os passares acordados nesta angústia,
e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente.
e espera que se desprenda o excessivo.úmido orvalho
pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
a libertasse, porém a desprenderia do galho,
e nesse tremor e esperança aguarda o mistério transida
assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida
                                                                                                  (Vaga Música, p.211) 
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      Também Cecília ‘‘recebeu uma chuva enorme’’, metáfora de todas as perdas em sua vida, desde a morte precoce dos pais, da avó que a criou, da pajem que foi sua companheira de infância, até a morte do primeiro marido, em circunstâncias trágicas. E apesar desta ‘‘chuva enorme" (que contrasta com a ‘‘pequena flor’’ ) tentou e conseguiu preservar o perfume da poesia que dormia ‘‘na seda frágil".
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      Aqui a fragilidade se relaciona à angústia existenciaI presente no coração ‘‘ todo coberto de lágrimas" como o "excessivo orvalho’’ na pele da flor, aprisionada no galho em oposição às leves e livres borboletas e aos ‘‘pássaros acordados sem angústia".
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      Entre o temor do sofrimento e da morte e a esperança da libertação, da vida, " a flor aguarda o mistério transida’’, o mistério da existência que aqui se mescla ao mistério da própria  criação poética. Pois a comparação iniciada no primeiro verso só se compIeta nos dois últimos, onde se revela a existência de um ‘‘coração’’ que é capaz de re-cordar (do latim ‘‘cor, cordis’’) no sentido de trazer  ‘‘de novo ao coração’’ atribuído por Staiger.
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      O sujeito lírico não se apresenta diretamente, o que contribui para aumentar o não distanciamento, a fusão entre “flor" e “coração”, irmanados no mesmo estado afetivo.
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      Se o coração existe identificado à transida flor, esmorecida de frio, dor e susto, torna-se possível a "re-cordação”, que Staiger considera como a essência do gênero lírico. Assim o coração é capaz de poetar liricamente.
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      Cecília comprova as palavras de Helena Parente Cunha: “Embora a poesia utilize o discursivo, devido ao seu material verbal, sempre reagiu contra a sintaxe lógico-gramatical, tentando romper suas imposições” ( CUNHA, 1975, p. 103 ), num metapoema de O Estudante Empírico.
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Todas as coisas têm nome.
(Têm nome todas as coisas?)  
Todos os verbos são atos
(São atos todos os verbos?)  
Com a gramática e o dicionário
faremos nossos pequenos exercidos.  
Mas quando lermos em voz alta o que escrevemos
não saberão se era prosa ou verso,
e perguntarão o que se há de fazer com esses escritos:  
porque existe um som de voz
e um eco — e um horizonte de pedra
e uma floresta de rumores e água  
que modificam os nomes e os verbos
e tudo não é somente léxico e sintaxe.  
Assim tenho visto. 
                                                       (O Estudante Empírico, p. 1388-9)
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        A quinta estrofe introduz elementos novos no metapoerna questionador da gramática: “um som de voz e um eco” e “uma floresta de rumores e água”, os quais lembram o mito de Loreley:
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Todos os momentos do lirico: música, fluidez.‘um-no-outro”,  Brentano resumiu no mito de Loreley e o confiou ao Romantismo tardio. O próprio nome, formado de vogais e líquidas, fonemas sonoros e fluidos já é música, e como tal inspirada por uma tocha perto de Bacharach. Nela tudo, nome, olhos e canto, tem o poder mágico de encantar e fundir. Um gênio do elemento líquido, Lorelev mora na corrente, no murmúrio da floresta, em tudo que desliza, ondula e nada. Todos que a escutam ou vêem-na brilhar no fundo do Reno, sucumbem aos seus encantos. Diante dela não há mais liberdade, nem vontade própria, do mesmo modo que o poeta lírico é o menos livre, entregue, fora de si, levado pela onda de sentimento ( Staiger, 1972, p. 53)
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       Também Cecília,    como Loreley, é musical até no próprio nome, suave, sibilante, e sua poesia desliza, encantando os que se encontram na mesma disposição anímica:  "estamos nela e ela em nós - afirma Staiger.  E mais adiante: "a palavra desaparece e soa o tom da sensibilidade’ e é este tom que “deve transportar a criatura em sintonia para o mesmo tom”. ( Staiger, l972, p.53)
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       Não será este o milagre que a pequena flor transida aguarda: o mistério da criação lírica e de sua recepção pelo leitor ? O mistério da vida quando a existência transforma-se em música?
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      O coração do sujeito lírico é retomado no poema “Viola”:
Foi a palavra quebrada
por muito encontro guerreiro:
ferozes golpes de espada na tênue virtude atada
de um coração prisioneiro. (Mar Absoluto, p.333)
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       Desta vez, embora prisioneiro, o coração tem “virtude alada”, ou seja, ele pode voar, ultrapassar, transcender os “ferozes golpes de espada” que constituem as limitações impostas pelas contingências da vida humana, E a melhor maneira de superá-las é através da “asa ritmada” da poesia que “tem sangue eterno”, como nos confessa o poeta no poema “Motivo”: ”Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada”, ( Viagem, p.109 )
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      Símbolo ascensional privilegiado , a “asa” segundo Gilbert Durand (DURAND, 1973, p. 144-5) representa a purificação, o desejo de elevação e sublimação: “Fui mudando a minha angústia / numa força heróica de asa”. (Viagem, p. 128 ) E é pelo vôc poético que o eu lírico se sublima e eleva e se toma capaz de superar o tempo e a morte, representados pela metáfora do “vento”, num dos poemas de Solombra:
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Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.
Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
“Agora és livre, se ainda recordas
                                                                         (Solombra,  p. 794 ) 
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“Recordar é o termo proposto por Staiger para a falta de distância entre o sujeito e o objeto, para o ‘um-no-outro” lírico, de modo que sc poderia dizer indiferentemente: o poeta recorda a natureza, ou a natureza recorda o poeta”. ( Staiger, 1972, p.60)
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      Contrariando Staiger que diz ser o poeta lírico o menos livre, a recordação é apresentada , neste poema, como fonte de libertação. O próprio ato de poetar liricamente. diluindo-se no que se sente, na música da linguagem (que se aproxima de sua significação) reproduz e se confunde com a fluência do efêmero na anáfora: o vento que chama/ o vento que leva / o vento que rasga.
     Os versos “Se a Beleza sonhada é maior que a vivente, / dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?” nos remetem a outros: “música dos meus dedos / tecida com tanto sonho”. É preciso sonhar diante da dura realidade humana, pois “a vida só é possível reinventada”. (Vaga Música .p. 239)
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      O poeta “que se balançava em aéreos fios de Efêmero e Eterno” ( Poemas II, p. 1069 ) é definido pela autora como “demiurgo”, ou seja, criatura intermediária entre a natureza divina e a humana: “um Poeta é, na verdade, o amável ou odioso demiurgo, / na intima confissão do sonho / onde os homens esperam uma silenciosa lição de sobrevivência” .    (Poemas II, p. 1069)
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      A lição de sobrevivência que Cecília nos ensina é a constante recomposição de si mesma tanto pelo exercício existencial quanto pelo exercício poético: “Todos os dias desfaleço-me e desfaço-me em cinza efêmera : / todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas” .     (O Estudante Empírico, p. 1393 )
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      A aprendizagem do efêmero, iniciada na transparência de espelhos de aço ou de água, leva o eu lírico à indagação do poema “Retrato”: ”— Em que espelho ficou perdida / a minha face ?”. (Viagem, p. 113)
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      A transparência deve ser interpretada aqui  , repensando o antigo Mito de Narciso, como fez Ruth Maria Chaves Martins em seu Itinerário de Narciso ( Tese de Livre-Docência defendida na UFF) : “Trans-parência quer dizer: ir além da aparência, ver através da aparência. Transgredir a imagem e o próprio espelho”. ( MARTINS, [s,d] p. 106 )
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      O parentesco do vocábulo “espelho” com o verbo “especular” reforça a compreensão da relação especular não como um símbolo de fechamento, mas como um espaço amplo, aberto, onde o sujeito poético desvenda e per-corre  ” caminhos extravagantes” em busca do sentido da existência: “Para que serve o fio trêmulo / em que rola o meu coração?”. (Viagem,p. 123 )
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      Nos caminhos abertos pela transparência, o eu lírico vive a aventura da busca, o anseio do absoluto, o namoro com a eternidade e o sonho de ser: “Eu quero a memória acesa: depois da angústia apagada". (Mar Absoluto, p. 282)
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      Muito mais teríamos a dizer sobre a obra ceciliana. Por exemplo: O canto é a possibilidade do vôo, apesar da desintegração e do caos da existência imperfeita e limitada no tempo. Cantar é ascender, levantar-se, transcender. A poesia é a forma máxima de transcendência e a suprema reinvenção da realidade. É a música, o aroma, a estrela, a chama e a flor do espírito que eternizam a obra poética e seu criador: “Mas eu amo o eterno e o efêmero e o queria fazer o efêmero eterno”. (Poemas II, p. 1237 )
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      Como nos lembra Staiger, "falar sobre versos líricos, julgá-los e fundamentar o julgamento é quase impossível. O julgarnento muito dificilmente alcança o valor do lírico” (STAIGER, 1972, p.50 ). Por isso O sujeito poético desafia o crítico a interpretá-lo:.

BIOGRAFIA
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Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
—  e não serei eu.
Repetirás o que me ouviste,
o que leste de mim, e mostraras meu retrato,
—- e nada disso serei eu
Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,

e continuarei ausente,
Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
—  isso serei eu,
Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente,
— Como me poderão encontrar?
Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.
E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres corno a cascata pelas pedras.
—  Que mortal nos poderia prender?
                                                                 (Poemas II, p.1118-9)
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      Diante disto só resta ao crítico-leitor saborear o lirismo fluente dos versos cecilianos e se desculpar por não ser digno de avaliar o seu sabor.
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                                                             Maria da Graça Cretton
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(Comunicação apresentada no Colóquio Brasileiro Cecília Meireles e Murilo Mendes em Porto Alegre - 09/11/2001)
                                                BIBLIOGRAFIA
1.   CRFTTON, Maria da Graça Aziz, O jogo inquieto entre o efêmero e o eterno. Uma leitura de Cecília Meireles. Perspectivas: ensaios de teoria e crítica, Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ, vol. 1:115 -130, 1984.
2.   CUNHA, Helena Parente, Teoria literária , 1.ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. Capítulo 4:Gêneros literários. p. 93-130.
3.   DURAND, Gílbert. Les estructures anthropologiques de l’ imaginaire, Paris, Border, 1973.
4.   MARTINS, Ruth Maria Chaves. O Itinerário de Narciso. Niterói, UFF / Instituto de Letras e Artes [s.d]. Tese de Livre Docência.
5,   MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994. Todas as citações de poemas cecilianos foram retiradas desta edição. Indicaremos apenas o nome do livro e a página, logo após o trecho citado.
6.   STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poético. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1972.



Maria da Graça Cretton é professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com Mestrado e  Doutorado em Teoria Literária, especialista na Obra Poética Ceciliana e em Oficinas Literárias.
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http://www.palavrarte.com/poeta_lembrei/poelembrei_ceciliameireles.htm
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