Cecília Meireles         
                  A               essência lírica na poesia ceciliana
|            Para       falar de Cecília Meireles, quando se completam 100 anos de seu       nascimento, retomamos outros estudos já realizados sobre sua obra poética,       inclusive nossa Dissertação de Mestrado intitulada O       jogo inquieto o efêmero e o eterno.Uma leitura de Cecília Meireles, cujo       resumo foi publicado em  Perspectivas: ensaios de teoria e crítica, editada pelo Departamento de  Ciência da Literatura        da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. .  Se existe um traço feminino na poesia lírica ou um traço lírico na mulher, como sugeriu Emil Staiger, em Conceitos Fundamentais da poética, podemos afirmar que a expressão máxima do lirismo na Literatura Brasileira é a obra poética de Cecília Meireles, poeta-mulher de sensibilidade tão rara e tão delicada que se assemelha à “Pequena flor” de um de seus poemas. .  PEQUENA       FLOR .  Como       pequena flor que recebeu unta chuva enorme e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas na seda frágil e preservar o perfume que ai dorme, e       vê passarem as leves borboletas livremente, e ouve cantarem os passares acordados nesta angústia, e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente. e       espera que se desprenda o excessivo.úmido orvalho pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento a libertasse, porém a desprenderia do galho, e       nesse tremor e esperança aguarda o mistério transida assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida (Vaga Música, p.211) .              Também Cecília ‘‘recebeu uma chuva enorme’’, metáfora de todas       as perdas em sua vida, desde a morte precoce dos pais, da avó que a       criou, da pajem que foi sua companheira de infância, até a morte do       primeiro marido, em circunstâncias trágicas. E        apesar desta ‘‘chuva enorme"       (que contrasta com a ‘‘pequena flor’’ ) tentou e conseguiu preservar o       perfume da poesia que dormia ‘‘na seda frágil". .              Aqui       a fragilidade se relaciona à angústia existenciaI presente no coração ‘‘ todo       coberto de lágrimas" como o "excessivo orvalho’’ na pele da       flor, aprisionada no galho em oposição às leves e livres borboletas e aos ‘‘pássaros acordados sem angústia". .              Entre       o temor do sofrimento e da morte e a esperança da libertação, da vida,       " a flor aguarda o mistério transida’’, o mistério da existência que aqui se mescla ao       mistério da própria  criação poética. Pois a comparação iniciada no primeiro       verso só se compIeta       nos dois últimos, onde se revela a existência de um ‘‘coração’’       que é capaz de re-cordar (do       latim ‘‘cor, cordis’’) no sentido de trazer  ‘‘de novo ao       coração’’ atribuído por Staiger. .        O sujeito lírico não se apresenta       diretamente, o que contribui para aumentar o não distanciamento, a fusão       entre “flor" e “coração”, irmanados no mesmo estado afetivo. .        Se o coração existe       identificado à transida flor, esmorecida de frio, dor e susto, torna-se       possível a "re-cordação”, que Staiger considera como a essência do       gênero lírico. Assim o coração é capaz de poetar liricamente. .              Cecília comprova as palavras de       Helena Parente Cunha: “Embora a poesia utilize o discursivo, devido ao       seu material verbal, sempre reagiu contra a sintaxe lógico-gramatical,       tentando romper suas imposições” ( CUNHA, 1975,       p. 103 ), num metapoema de O       Estudante       Empírico. .  Todas as coisas têm nome.        (Têm nome todas as coisas?) Todos os verbos são atos        (São atos todos os verbos?) Com a gramática e o dicionário faremos nossos pequenos exercidos. Mas quando lermos em voz alta o       que escrevemos não saberão se era prosa ou verso, e perguntarão o que se há de fazer com esses escritos: porque existe um som de voz        e um eco — e um horizonte de pedra e uma floresta de rumores e água que modificam os nomes e os       verbos e tudo não é somente léxico e sintaxe. Assim tenho visto.   (O Estudante Empírico, p. 1388-9) .                A quinta estrofe introduz elementos novos no metapoerna questionador da gramática: “um som de voz e um eco” e “uma       floresta de rumores e água”, os quais lembram o mito de Loreley: .  Todos os       momentos do lirico: música, fluidez.‘um-no-outro”,  Brentano       resumiu no mito de Loreley e o confiou ao Romantismo tardio. O próprio       nome, formado de vogais e líquidas, fonemas sonoros e fluidos já é       música, e como tal inspirada por       uma tocha perto de Bacharach. Nela tudo, nome, olhos e canto, tem o poder mágico de       encantar e fundir. Um gênio do elemento líquido, Lorelev mora na corrente, no murmúrio da floresta, em tudo       que desliza, ondula e nada. Todos que a escutam ou vêem-na brilhar no fundo do       Reno, sucumbem aos       seus encantos. Diante dela não há mais liberdade, nem vontade própria,       do mesmo modo que o poeta lírico é o menos livre, entregue, fora de si,       levado pela onda de sentimento ( Staiger, 1972, p. 53) .  .               Também Cecília,    como Loreley, é musical até no próprio nome, suave, sibilante, e sua poesia desliza, encantando os que se encontram na mesma disposição anímica:        "estamos nela e ela em nós - afirma Staiger.        E mais adiante: "a palavra desaparece e soa o       tom da sensibilidade’ e é este tom que “deve transportar a criatura em       sintonia para o mesmo tom”. ( Staiger, l972, p.53) . .              Não       será este o milagre que a pequena flor transida aguarda: o mistério da       criação lírica e de sua recepção pelo leitor ? O mistério da vida       quando a existência transforma-se em música? .  .        O coração do       sujeito lírico é retomado no poema “Viola”: Foi       a palavra quebrada por muito encontro guerreiro: ferozes golpes de espada na tênue virtude atada de um coração prisioneiro. (Mar Absoluto, p.333) .  .               Desta vez, embora       prisioneiro, o coração tem “virtude alada”, ou seja, ele pode voar,       ultrapassar, transcender os “ferozes golpes de espada” que constituem       as limitações impostas pelas contingências da vida humana, E a melhor       maneira de superá-las é através da “asa ritmada” da poesia que       “tem sangue eterno”, como nos confessa o poeta no poema       “Motivo”: ”Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a       asa ritmada”, (       Viagem,       p.109       ) .  .        Símbolo ascensional privilegiado , a “asa” — segundo Gilbert Durand (DURAND, 1973, p. 144-5) representa a purificação, o desejo de elevação e       sublimação: “Fui mudando a minha angústia / numa força heróica de       asa”. (Viagem, p. 128 ) E é pelo vôc poético que o eu lírico se sublima e eleva e se toma capaz de superar o tempo e a morte,       representados pela metáfora do “vento”, num dos poemas de Solombra: .  .  Eu sou essa pessoa a quem o vento       chama, a que não se recusa a esse final convite, em máquinas de adeus, sem tentação de volta. Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza: Eu sou essa pessoa a quem o vento leva: já de horizontes libertada, mas sozinha. Se a Beleza sonhada é maior que       a vivente, dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ? Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga. Pelos mundos do vento em meus       cílios guardadas vão as medidas que separam os abraços. Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina: “Agora       és livre, se ainda recordas (Solombra, p. 794 ) .       .        “Recordar       é o termo proposto por Staiger para a falta de distância entre o sujeito e o objeto, para o       ‘um-no-outro” lírico, de modo que sc poderia dizer indiferentemente:       o poeta recorda a natureza, ou a natureza recorda o poeta”. ( Staiger, 1972,       p.60) .  .              Contrariando       Staiger que diz ser o poeta lírico o menos livre, a recordação é       apresentada , neste poema,       como fonte de libertação. O próprio ato de poetar liricamente.       diluindo-se no que se sente, na música da linguagem (que se aproxima de       sua significação) reproduz e se confunde com a       fluência do efêmero na anáfora: o vento que chama/ o vento que leva / o       vento que rasga.      Os versos “Se a Beleza sonhada é maior que a vivente, /       dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?” nos remetem a outros:       “música dos meus dedos / tecida com tanto sonho”. É preciso sonhar       diante da dura realidade humana, pois “a vida só é possível reinventada”.   (Vaga       Música   .p. 239) .  .              O poeta       “que se balançava em aéreos fios de Efêmero e Eterno” ( Poemas       II, p. 1069 ) é definido pela autora como       “demiurgo”, ou seja, criatura intermediária entre a natureza divina e       a humana: “um Poeta é, na verdade, o amável ou odioso demiurgo, / na       intima confissão do sonho / onde os homens esperam uma silenciosa lição       de sobrevivência” .    (Poemas II, p. 1069) .              A       lição de sobrevivência que Cecília nos ensina é a constante       recomposição de si mesma tanto pelo exercício existencial quanto pelo       exercício poético: “Todos os dias desfaleço-me e desfaço-me em cinza       efêmera : / todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho       eternas” .           (O Estudante       Empírico,  p. 1393 ) .              A       aprendizagem do efêmero, iniciada na transparência de espelhos de aço       ou de água, leva o eu lírico à indagação do poema “Retrato”:       ”—       Em que espelho ficou perdida / a minha face ?”. (Viagem,       p. 113) .              A       transparência deve ser interpretada aqui  , repensando o antigo Mito de Narciso, como fez Ruth Maria       Chaves Martins em seu Itinerário        de Narciso       ( Tese de Livre-Docência defendida na UFF) : “Trans-parência quer dizer: ir além da aparência, ver       através da aparência. Transgredir a imagem e o próprio espelho”. ( MARTINS, [s,d] p. 106 ) .              O       parentesco do vocábulo “espelho” com o verbo “especular” reforça       a compreensão da relação especular não como um símbolo de fechamento,       mas como um espaço amplo, aberto, onde o sujeito poético desvenda e per-corre        ” caminhos       extravagantes” em busca do sentido da existência: “Para que serve o       fio trêmulo / em que rola o meu coração?”. (Viagem,p.       123       ) .              Nos caminhos abertos pela transparência, o eu lírico vive a aventura da       busca, o anseio do absoluto, o namoro com a eternidade e o sonho de ser:       “Eu quero a memória acesa: depois da angústia apagada". (Mar Absoluto,  p. 282) .              Muito       mais teríamos a dizer sobre a obra ceciliana. Por exemplo: O canto é a       possibilidade do vôo, apesar da desintegração e do caos da existência       imperfeita e limitada no tempo. Cantar é ascender, levantar-se,       transcender. A poesia é a forma máxima de transcendência e a suprema reinvenção       da realidade. É a música, o aroma, a estrela, a chama e a       flor do espírito que eternizam a obra poética e seu criador: “Mas eu       amo o eterno e o efêmero e o queria fazer o efêmero eterno”. (Poemas       II,       p. 1237 ) .        Como nos lembra       Staiger, "falar sobre versos       líricos, julgá-los e fundamentar o       julgamento é quase impossível. O julgarnento       muito dificilmente alcança o valor       do lírico”       (STAIGER, 1972, p.50  ). Por isso O sujeito poético       desafia o crítico a interpretá-lo:. BIOGRAFIA .  Escreverás       meu nome com todas as       letras, com todas as datas, — e não serei eu. Repetirás o que       me ouviste, o que leste de mim, e mostraras meu retrato, —- e nada disso serei eu Dirás coisas imaginárias, invenções sutis, engenhosas teorias, — e continuarei ausente, Somos uma       difícil unidade, de muitos instantes mínimos, — isso serei eu, Mil fragmentos somos, em jogo misterioso, aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente, — Como me poderão encontrar? Novos e antigos todos os dias, transparentes e opacos, segundo o giro da luz, nós mesmos nos procuramos. E por entre as circunstâncias       fluímos, leves e livres corno a cascata pelas pedras. — Que mortal nos poderia prender? (Poemas II, p.1118-9) .        Diante disto só resta ao       crítico-leitor saborear       o lirismo fluente dos versos cecilianos e se desculpar por não ser digno       de avaliar o seu sabor. .                                                                     Maria da Graça Cretton . (Comunicação apresentada no Colóquio Brasileiro Cecília Meireles e Murilo Mendes em Porto Alegre - 09/11/2001)                                                       BIBLIOGRAFIA 1.         CRFTTON, Maria da Graça Aziz, O jogo inquieto entre o efêmero e o       eterno. Uma leitura de Cecília Meireles. Perspectivas:       ensaios de         teoria e crítica,       Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ,       vol. 1:115 -130, 1984. 2.         CUNHA, Helena Parente, Teoria literária , 1.ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. Capítulo 4:Gêneros literários. p. 93-130. 3.   DURAND,       Gílbert. Les estructures anthropologiques       de l’       imaginaire, Paris, Border,  1973. 4.         MARTINS, Ruth Maria Chaves. O Itinerário de Narciso. Niterói, UFF / Instituto de Letras e       Artes [s.d]. Tese de Livre Docência. 5,         MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994. Todas as       citações de poemas cecilianos foram retiradas desta edição. Indicaremos       apenas o nome do livro e a página, logo após o trecho citado. 6.         STAIGER, Emil. Conceitos       fundamentais       da poético. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1972.        Maria       da Graça Cretton é professora aposentada da Universidade Federal       do Rio de Janeiro, com Mestrado e  Doutorado em Teoria Literária,       especialista na Obra Poética Ceciliana e em Oficinas Literárias. .. http://www.palavrarte.com/poeta_lembrei/poelembrei_ceciliameireles.htm . | 
 
 
Sem comentários:
Enviar um comentário