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Os irmãos Joan e Zerivan tomaram contato desde a infância com a poesia. O mérito é de Dona Idalzira, cearense do Cedro, professora, mulher de muita labuta e leituras. Ainda hoje, aos 86 anos, faz versos todos os dias, podendo-se afirmar que a poesia é sua grande companheira cotidiana. Acompanhe essa história através dos textos de Joan e Zerivan.
Algumas palavras
Joan Edesson de Oliveira
A poesia foi algo sempre presente em nossa casa. Desde pequeno acostumei a ver a minha mãe, Dona Idalzira, fazer os seus versos. Por qualquer coisa lá vinha uma poesia. Era o pranto por alguém que morria, era um casamento, um batizado, uma novidade qualquer, uma brincadeira, era a poesia sem motivo algum.
Havia ainda os versos do meu avô, João Bezerra, contados por minha mãe, com os quais eu me deliciava. Uma dessas estrofes carrego até hoje na memória, por causa principalmente da sua carga de humor e ironia.
Há quatro coisas no mundo
Que para mim não se faz
É mulher chamada Ana,
É homem chamado Brás
Calça de bolso na bunda
Paletó lascado atrás
Havia ainda o meu pai, verdadeiro “viciado” nas cantorias no rádio, as quais eu acompanhava atento em sua companhia. Era um rádio Semp, daqueles bem antigos, cujo cordão de sintonia vez por outra quebrava e lá ia eu pra alguma mercearia qualquer atrás de comprar “linha zero” para colocar novo cordão (o rádio era presença obrigatória na sala das casas de então). As cantorias eram diárias, na Rádio Iracema de Iguatu e na Rádio Difusora de Cajazeiras, salvo engano, sempre à tardinha. De longe, o meu cantador favorito era Antonio Maracajá, embora tantos outros gigantes do repente tenham feito morada na minha memória desde então. Meu pai tinha ainda um caderno com poesias de um tio seu, Tio Clóidio, meu tio-avô, refinadíssimas poesias que, infelizmente, perderam-se.
E havia, por fim, a coleção de cordéis de minha tia Maria Bezerra, Mãinha, também infelizmente extraviados, cordéis que foram minha primeira leitura, e a partir dos quais o mundo mágico, encantado, da cultura nordestina, se abriu para mim. Foi um clássico da literatura de cordel, o Romance do Pavão Misterioso que, se a memória não permite precisar como minha primeira leitura foi, no entanto a que mais me marcou.
Num ambiente como este seria impossível não me apaixonar pela poesia.
Poetas, cantadores, cegos de feira, foram uma constante em minha infância e em minha adolescência, tendo uma importância muito grande na minha formação cultural.
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No ano de 1990, morando na cidade do Acaraú, fustigado pela saudade, e lembrando das cartas em poesia que meu avô fazia, relatadas por minha mãe, resolvi escrever para ela nesta forma. Erivan, o irmão caçula, foi quem mandou a resposta, pois Dona Idalzira estava adoentada. Iniciamos aí a nossa correspondência em cordel, que dura até hoje, quase vinte anos depois, quando Dona Idalzira chega aos oitenta e seis anos e ainda rima muito melhor que eu e o Erivan juntos. Erivan é, aliás, o legítimo herdeiro, tendo se dedicado tanto à feitura quanto ao estudo do cordel, objeto do seu mestrado em literatura na Universidade Federal do Ceará.
A jornalista Janaína de Paula, em matéria sobre essa correspondência, chamou-a de “cordel umbilical”. Creio que é isso mesmo, é o laço que nos liga a Dona Idalzira, é o cordão umbilical jamais cortado, perpetuado nestas cartas rimadas onde brincamos, rimos, lamentamos nossas angústias e choramos nossas dores.
Mas uma ligação dessas, quem teria coragem de cortar? Pelo contrário, nós a temos reforçado desde então. A poesia, neste caso, tem servido também para imortalizar o nosso afeto.
No ano de 1990, morando na cidade do Acaraú, fustigado pela saudade, e lembrando das cartas em poesia que meu avô fazia, relatadas por minha mãe, resolvi escrever para ela nesta forma. Erivan, o irmão caçula, foi quem mandou a resposta, pois Dona Idalzira estava adoentada. Iniciamos aí a nossa correspondência em cordel, que dura até hoje, quase vinte anos depois, quando Dona Idalzira chega aos oitenta e seis anos e ainda rima muito melhor que eu e o Erivan juntos. Erivan é, aliás, o legítimo herdeiro, tendo se dedicado tanto à feitura quanto ao estudo do cordel, objeto do seu mestrado em literatura na Universidade Federal do Ceará.
A jornalista Janaína de Paula, em matéria sobre essa correspondência, chamou-a de “cordel umbilical”. Creio que é isso mesmo, é o laço que nos liga a Dona Idalzira, é o cordão umbilical jamais cortado, perpetuado nestas cartas rimadas onde brincamos, rimos, lamentamos nossas angústias e choramos nossas dores.
Mas uma ligação dessas, quem teria coragem de cortar? Pelo contrário, nós a temos reforçado desde então. A poesia, neste caso, tem servido também para imortalizar o nosso afeto.
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Há, nesse livro, parte da produção de Dona Idalzira. Há quase toda a correspondência trocada entre nós (eu e Erivan) e ela, há os sonetos, há outros poemas. Há muita coisa fora daqui, não havia espaço para tudo. A correspondência poética deste livro confirma os versos do poeta Manoel Caboclo (1916/ 1996).
Porque cordel não é aquele
que está pendurado num cordão
é aquele que é feito
com as cordas do coração.
PS: Quando finalizávamos esse livro fomos surpreendidos pelas poesias de Geórgia, neta de Dona Idalzira, de 14 anos, que resolveu “ingressar no negócio” de cartas em cordel. São, assim, cinco gerações de poesia desde o meu bisavô.
Zerivan de Oliveira
Quando em junho de 1990, alguns dias depois de uma festa do chitão, saí do Cedro e fui embora para Fortaleza, não imaginava ainda a dimensão total daquele ato, que me levaria, entre outras coisas, à constituição de minha família, do meu doutoramento e da minha constituição enquanto ser. Também não passava pela minha cabeça que o bichinho da saudade iria se apossar do meu peito e lá fazer morada, com casinha e tudo, qual João de Barro num pé de juazeiro.
Aos dezessete anos e iniciando na vida adulta, pensava que tudo que eu precisava era sair debaixo da asa dos meus pais e alçar meus próprios vôos. Voei certo de não estar deixando nada para trás. Ledo engano. A saudade logo me pegou no laço e chorava feito bezerro desmamado longe da minha família.
No entanto, o consolo veio cedo. E chegou pelas mãos de um carteiro, como meu velho pai, que um dia também ajudou a encurtar a distância entre as pessoas. E o consolo veio rimado por Idalzira, minha mãe, que escrevia para também se consolar da lonjura do seu caçula:
O mundo é como uma bola
girando pra todo lado
ora é leve ora é pesado
tem eixo mas não tem mola
maltrata mas não consola
faz nossa mente esquecida
numa luta desmedida
nos matando de cansaço
levaram o último pedaço
do resto da minha vida
Hoje eu vivo quase só
do mundo sem esperança
mas com fé tudo se alcança
com paciência de Jó
amarrando e dando o nó
para não ser esquecida
nem dar passada perdida
e nem desmanchar o laço
levaram o último pedaço
do resto da minha vida
Lida em voz alta para os colegas da Casa do Estudante (creio que muitos ali se sentiam abraçados pelas palavras da minha mãe), aquela cartinha inaugurou uma correspondência fértil que permanece até hoje como marca e símbolo do quanto a literatura em sua variada gama de possibilidades pode estabelecer vínculos, materializar a memória e traduzir pensamentos.
Com ela e com Joan, migrante para as terras longínquas do Acaraú, comecei a me corresponder usando o cordel. Já se vão quase vinte anos desde que essa brincadeira familiar que agora é transformada em livro começou, unindo nossa família e consolidando nossa trajetória de poetas de cordel.
Lembro de uma vez, poeta letrado que eu já imaginava que era, quis ensinar-lhe a fazer um soneto, iniciando minha aula com a clássica regra “são dois quartetos e dois tercetos”. Minha mãe riu pra mim e falou: “Ah! soneto é isso?” E sacou um pacote de uma gaveta com pelo menos cinquenta sonetos. Quase caio pra trás.
Lembro também, ainda que vagamente, das manhãs de sábado, dia de feira, nos quais nossa casa se transformava, pois recebia a visita dos parentes e aderentes que moravam nos sítios e vinham à procura das cartas que chegavam aos cuidados do meu pai. A maioria dessas pessoas não sabia ler ou escrever e minha mãe cumpria o papel de transmissora dessas notícias de parentes que moravam distante, migrantes nordestinos espalhados pelo mundo. Ao término, muitas vezes entre prantos, as pessoas ditavam a resposta e Idalzira pacientemente traduzia sentimentos em palavras. Muitas dessas cartas terminavam com uma estrofe em cordel.
Relendo nossas cartas hoje, vejo como elas são mais do que simples missivas familiares. Elas constituem um registro precioso da nossa história, de certa forma situa a história do Cedro num contexto mais geral e acima de tudo mantém acesa a chama da poesia popular, que se encaminha para a quinta geração, mais de cem anos de poesia em família.
Idalzira não é uma poetisa comum. Herdou do pai, João Bezerra das Chagas, e do avô, a herança que deixou para mim e meu irmão, que quiçá vá mais longe ainda nos netos e netas dela. Sua verve poética é indomável, por mais que ela viva dizendo que não sabe mais rimar, que está velha, basta um pequeno fato, um acontecimento corriqueiro qualquer, para que ela corra ao papel e transforme um ato simples em um ato mágico. Basta uma saudade inesperada para que ela transforme lágrimas em poesia.
Joan tem plena razão. Aos oitenta e seis anos Idalzira é capaz de rimar melhor do que eu e ele juntos. Esse “cordel umbilical” que nos une não será cortado jamais.
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. Há, nesse livro, parte da produção de Dona Idalzira. Há quase toda a correspondência trocada entre nós (eu e Erivan) e ela, há os sonetos, há outros poemas. Há muita coisa fora daqui, não havia espaço para tudo. A correspondência poética deste livro confirma os versos do poeta Manoel Caboclo (1916/ 1996).
Porque cordel não é aquele
que está pendurado num cordão
é aquele que é feito
com as cordas do coração.
PS: Quando finalizávamos esse livro fomos surpreendidos pelas poesias de Geórgia, neta de Dona Idalzira, de 14 anos, que resolveu “ingressar no negócio” de cartas em cordel. São, assim, cinco gerações de poesia desde o meu bisavô.
Outras palavras
Zerivan de Oliveira
Quando em junho de 1990, alguns dias depois de uma festa do chitão, saí do Cedro e fui embora para Fortaleza, não imaginava ainda a dimensão total daquele ato, que me levaria, entre outras coisas, à constituição de minha família, do meu doutoramento e da minha constituição enquanto ser. Também não passava pela minha cabeça que o bichinho da saudade iria se apossar do meu peito e lá fazer morada, com casinha e tudo, qual João de Barro num pé de juazeiro.
Aos dezessete anos e iniciando na vida adulta, pensava que tudo que eu precisava era sair debaixo da asa dos meus pais e alçar meus próprios vôos. Voei certo de não estar deixando nada para trás. Ledo engano. A saudade logo me pegou no laço e chorava feito bezerro desmamado longe da minha família.
No entanto, o consolo veio cedo. E chegou pelas mãos de um carteiro, como meu velho pai, que um dia também ajudou a encurtar a distância entre as pessoas. E o consolo veio rimado por Idalzira, minha mãe, que escrevia para também se consolar da lonjura do seu caçula:
O mundo é como uma bola
girando pra todo lado
ora é leve ora é pesado
tem eixo mas não tem mola
maltrata mas não consola
faz nossa mente esquecida
numa luta desmedida
nos matando de cansaço
levaram o último pedaço
do resto da minha vida
Hoje eu vivo quase só
do mundo sem esperança
mas com fé tudo se alcança
com paciência de Jó
amarrando e dando o nó
para não ser esquecida
nem dar passada perdida
e nem desmanchar o laço
levaram o último pedaço
do resto da minha vida
Lida em voz alta para os colegas da Casa do Estudante (creio que muitos ali se sentiam abraçados pelas palavras da minha mãe), aquela cartinha inaugurou uma correspondência fértil que permanece até hoje como marca e símbolo do quanto a literatura em sua variada gama de possibilidades pode estabelecer vínculos, materializar a memória e traduzir pensamentos.
Com ela e com Joan, migrante para as terras longínquas do Acaraú, comecei a me corresponder usando o cordel. Já se vão quase vinte anos desde que essa brincadeira familiar que agora é transformada em livro começou, unindo nossa família e consolidando nossa trajetória de poetas de cordel.
Lembro de uma vez, poeta letrado que eu já imaginava que era, quis ensinar-lhe a fazer um soneto, iniciando minha aula com a clássica regra “são dois quartetos e dois tercetos”. Minha mãe riu pra mim e falou: “Ah! soneto é isso?” E sacou um pacote de uma gaveta com pelo menos cinquenta sonetos. Quase caio pra trás.
Lembro também, ainda que vagamente, das manhãs de sábado, dia de feira, nos quais nossa casa se transformava, pois recebia a visita dos parentes e aderentes que moravam nos sítios e vinham à procura das cartas que chegavam aos cuidados do meu pai. A maioria dessas pessoas não sabia ler ou escrever e minha mãe cumpria o papel de transmissora dessas notícias de parentes que moravam distante, migrantes nordestinos espalhados pelo mundo. Ao término, muitas vezes entre prantos, as pessoas ditavam a resposta e Idalzira pacientemente traduzia sentimentos em palavras. Muitas dessas cartas terminavam com uma estrofe em cordel.
Relendo nossas cartas hoje, vejo como elas são mais do que simples missivas familiares. Elas constituem um registro precioso da nossa história, de certa forma situa a história do Cedro num contexto mais geral e acima de tudo mantém acesa a chama da poesia popular, que se encaminha para a quinta geração, mais de cem anos de poesia em família.
Idalzira não é uma poetisa comum. Herdou do pai, João Bezerra das Chagas, e do avô, a herança que deixou para mim e meu irmão, que quiçá vá mais longe ainda nos netos e netas dela. Sua verve poética é indomável, por mais que ela viva dizendo que não sabe mais rimar, que está velha, basta um pequeno fato, um acontecimento corriqueiro qualquer, para que ela corra ao papel e transforme um ato simples em um ato mágico. Basta uma saudade inesperada para que ela transforme lágrimas em poesia.
Joan tem plena razão. Aos oitenta e seis anos Idalzira é capaz de rimar melhor do que eu e ele juntos. Esse “cordel umbilical” que nos une não será cortado jamais.
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