Cultura
No dia 20 de novembro, transcorreu o centenário da morte de Leon Tolstoi, uma das mais destacadas figuras da literatura russa cuja obra ocupa os lugares mais importantes na literatura mundial.
Por José Reinaldo Carvalho e Urariano Mota*
A obra de Tolstoi pertence a um período histórico marcado pelo desenvolvimento de uma intelectualidade fecunda formada por democratas revolucionários
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Nessa obra encontram-se os mais marcantes traços da literatura russa da segunda metade do século 19. O reflexo multilateral da realidade, a crítica impiedosa à ordem social, a maestria na descoberta do mundo interior das pessoas e um elevado padrão estético. A mais perfeita fusão entre fundo e forma. A beleza artística em sua mais elevada expressão.
Na época em que viveu, a Rússia concentrava as contradições do imperialismo e se tornou seu elo débil. O império russo era também, por esta razão, o centro do movimento revolucionário mundial. Ao escrever, enquanto narrava a miséria moral das classes dominantes, Tolstoi fez crescer a grandeza do camponês explorado, refletindo seus sofrimentos, dores e cólera.
A obra de Tolstoi pertence a um período histórico marcado pelo desenvolvimento de uma intelectualidade fecunda formada por democratas revolucionários, destacadamente Tchernichevski e Dobroliubov, época em que a questão política central era a luta contra o czarismo e no plano econômico-social, a luta pela libertação do campesinato do regime de servidão. Os democratas revolucionários compreendiam que a terra pertencia inteiramente aos camponeses e faziam chamamentos pela liquidação da autocracia e da propriedade latifundiária. Sem ter pertencido ao movimento dos democratas revolucionários, pacifista e avesso à violência revolucionária, Tolstoi, contudo, refletiu em muitas das suas obras, o drama dos camponeses russos. Homem de fé cristã, cuja ética, não tanto o dogma do cristianismo, está presente em sua criação artística, não deixou de ver e apreender a realidade pela ótica do realismo, capacidade com a qual pôde desvendar as mazelas sociais e as misérias e grandezas da alma humana.
Isto se observa com a evolução da mundivisão do gênio maior da literatura russa. Pela origem e educação que recebeu, Tolstoi pertencia à nobreza proprietária de terras, mas a vida mesma lhe fez compreender o parasitismo de sua classe de origem e as injustiças da ordem social em que se assentava seu domínio, até chegar à conclusão de que se tornava necessário mudar as relações entre a nobreza e o campesinato.
Tolstoi nasceu em 9 de setembro de 1828 em Iasnaia Poliana, nos arredores de Moscou, onde viveu quase toda a sua vida. Estudou na Faculdade de Kazan línguas orientais e direito, sem atribuir grande importância a essa atividade. Em 1851 serviu como oficial do exército czarista no Cáucaso. O contato com os montanheses, gente simples, forte e orgulhosa, aumentou em Tolstoi o sentimento de respeito para com o povo e a fé na sua força, conhecimento e sentimentos que lhe deram a matéria-prima para o romance Os Cossacos, que escreveria mais tarde.
Sua primeira obra foi Infância, parte de uma trilogia autobiográfica que escreveu entre 1852 e 1857, ano em que viajou à Europa Ocidental e conheceu de perto a civilização burguesa. Em Paris presenciou uma execução pública de sentença de morte, ao passo que em Lucerna, na Suíça, testemunhou uma repugnante cena: toda noite um cantor pobre se apresentava para uma malta de burgueses, sem nada receber em troca. Em três dias, o gênio russo escreveu o conto Lucerna, no qual desmascara a falsa moral burguesa, a indiferença dos ricos para com as pessoas simples, sua ignorância e seu desprezo pela arte.
Entre os anos de 1863 e 1869, Tolstoi escreveu a grande epopeia popular da nação russa, Guerra e Paz, obra que se refere a um grande período histórico, de 1805, quando ocorreu a primeira guerra entre a Rússia czarista e a França bonapartista, a 1820, quando começavam a tornar-se perceptíveis os sinais da insurreição dos dezembristas. São 15 anos da história da Rússia, repletos de acontecimentos decisivos. O ambiente histórico impetuoso é o cenário em que vivem os personagens do romance. Tolstoi conduz o leitor através de cenários variados, da vida pacífica às batalhas militares, numa teia de acontecimentos multifacéticos incidindo sobre a vida do povo, herói coletivo da epopeia, e dos personagens individuais da vida privada e familiar.
Guerra e Paz é uma obra-prima da literatura russa e da literatura mundial de todos os tempos. "É como a Ilíada", diria o escritor, com a consciência do que havia realizado. A extraordinária criatividade de Tolstoi, seu conhecimento da psicologia humana, sua percepção da história e da vida social se manifestam com genialidade tanto na descrição de grandes acontecimentos como na criação de personagens, entre os quais avultam Pedro Bezukhov e um ser tão elevado, nobre e belo como Natasha.
A outra grande obra que levou Leon Tolstoi ao panteão da literatura universal foi Ana Karenina. O que o burguês hipócrita de hoje, tal como o aristocrata da época, considera a “história de uma mulher infiel”, de uma mulher “bem casada” dos círculos sociais elevados que “se perde”, é verdadeiramente a história de uma bela e forte mulher que luta pelo mais elementar direito do ser humano: a felicidade.
Por amor e em busca desse direito, ainda que enganada em sua busca, Ana decide romper com o estado de solidão espiritual em que se encontrava, mercê de um matrimônio infeliz contraído segundo cânones reacionários de uma época reacionária em uma sociedade reacionária.
Em Ana Karenina, o autor agiganta-se como um artista que conhece profundamente a alma humana, atingindo um nível raro de interpretação psicológica e de perfeição artística. Tolstoi retrata, através do amor e da tragédia de Ana Karenina, a decadência moral da aristocracia e a falsidade das suas concepções.
Também ocupa lugar especial na obra de Tolstoi A Morte de Ivan Ilitch. Segundo Paulo Rónai, tradutor da Comédia Humana, de Balzac, muitos críticos consideram-na como "a novela mais perfeita da literatura mundial; a agonia de um burocrata insignificante serve de pretexto ao autor para nos contar uma história que diz respeito ao destino de cada um de nós e que é impossível ler sem um frêmito de angústia e de purificação".
Boris Schnaiderman diz sobre A morte de Ivan Ilitch: “É justamente no período mais intenso destas suas preocupações, na maturidade e na velhice, que atinge o máximo de perfeição num gênero que vinha praticando desde moço - a novela -, e que escreve alguns dos seus contos mais extraordinários. É como se o passar dos anos lhe desse maior capacidade de síntese, como se a reflexão se cristalizasse mais e se decantasse. A Morte de Ivan Ilitch (1884-86), celebrada geralmente como o ápice do gênero novela em toda a literatura mundial, é na realidade o inicio de uma série de trabalhos neste sentido, alguns dos quais podem ser colocados praticamente no mesmo nível”.
Ao homenagear o grande gênio da literatura russa, Prosa, Poesia e Arte não pode deixar sem referência outra das suas grandes obras: Ressurreição. Escrito no apagar das luzes do século 19, último dos seus grandes romances, é a expressão mais clara da cólera tolstoiana contra as bases sobre as quais se soerguia o regime czarista, contra a moral e a cultura da sociedade aristocrática.
* José Reinaldo Carvalho é editor do Vermelho. Urariano Mota é jornalista e escritor pernambucano e colunista do Vermelho
.- Leia também: Urariano Mota: Tolstoi, 100 anos de permanência
Na época em que viveu, a Rússia concentrava as contradições do imperialismo e se tornou seu elo débil. O império russo era também, por esta razão, o centro do movimento revolucionário mundial. Ao escrever, enquanto narrava a miséria moral das classes dominantes, Tolstoi fez crescer a grandeza do camponês explorado, refletindo seus sofrimentos, dores e cólera.
A obra de Tolstoi pertence a um período histórico marcado pelo desenvolvimento de uma intelectualidade fecunda formada por democratas revolucionários, destacadamente Tchernichevski e Dobroliubov, época em que a questão política central era a luta contra o czarismo e no plano econômico-social, a luta pela libertação do campesinato do regime de servidão. Os democratas revolucionários compreendiam que a terra pertencia inteiramente aos camponeses e faziam chamamentos pela liquidação da autocracia e da propriedade latifundiária. Sem ter pertencido ao movimento dos democratas revolucionários, pacifista e avesso à violência revolucionária, Tolstoi, contudo, refletiu em muitas das suas obras, o drama dos camponeses russos. Homem de fé cristã, cuja ética, não tanto o dogma do cristianismo, está presente em sua criação artística, não deixou de ver e apreender a realidade pela ótica do realismo, capacidade com a qual pôde desvendar as mazelas sociais e as misérias e grandezas da alma humana.
Isto se observa com a evolução da mundivisão do gênio maior da literatura russa. Pela origem e educação que recebeu, Tolstoi pertencia à nobreza proprietária de terras, mas a vida mesma lhe fez compreender o parasitismo de sua classe de origem e as injustiças da ordem social em que se assentava seu domínio, até chegar à conclusão de que se tornava necessário mudar as relações entre a nobreza e o campesinato.
Tolstoi nasceu em 9 de setembro de 1828 em Iasnaia Poliana, nos arredores de Moscou, onde viveu quase toda a sua vida. Estudou na Faculdade de Kazan línguas orientais e direito, sem atribuir grande importância a essa atividade. Em 1851 serviu como oficial do exército czarista no Cáucaso. O contato com os montanheses, gente simples, forte e orgulhosa, aumentou em Tolstoi o sentimento de respeito para com o povo e a fé na sua força, conhecimento e sentimentos que lhe deram a matéria-prima para o romance Os Cossacos, que escreveria mais tarde.
Sua primeira obra foi Infância, parte de uma trilogia autobiográfica que escreveu entre 1852 e 1857, ano em que viajou à Europa Ocidental e conheceu de perto a civilização burguesa. Em Paris presenciou uma execução pública de sentença de morte, ao passo que em Lucerna, na Suíça, testemunhou uma repugnante cena: toda noite um cantor pobre se apresentava para uma malta de burgueses, sem nada receber em troca. Em três dias, o gênio russo escreveu o conto Lucerna, no qual desmascara a falsa moral burguesa, a indiferença dos ricos para com as pessoas simples, sua ignorância e seu desprezo pela arte.
Entre os anos de 1863 e 1869, Tolstoi escreveu a grande epopeia popular da nação russa, Guerra e Paz, obra que se refere a um grande período histórico, de 1805, quando ocorreu a primeira guerra entre a Rússia czarista e a França bonapartista, a 1820, quando começavam a tornar-se perceptíveis os sinais da insurreição dos dezembristas. São 15 anos da história da Rússia, repletos de acontecimentos decisivos. O ambiente histórico impetuoso é o cenário em que vivem os personagens do romance. Tolstoi conduz o leitor através de cenários variados, da vida pacífica às batalhas militares, numa teia de acontecimentos multifacéticos incidindo sobre a vida do povo, herói coletivo da epopeia, e dos personagens individuais da vida privada e familiar.
Guerra e Paz é uma obra-prima da literatura russa e da literatura mundial de todos os tempos. "É como a Ilíada", diria o escritor, com a consciência do que havia realizado. A extraordinária criatividade de Tolstoi, seu conhecimento da psicologia humana, sua percepção da história e da vida social se manifestam com genialidade tanto na descrição de grandes acontecimentos como na criação de personagens, entre os quais avultam Pedro Bezukhov e um ser tão elevado, nobre e belo como Natasha.
A outra grande obra que levou Leon Tolstoi ao panteão da literatura universal foi Ana Karenina. O que o burguês hipócrita de hoje, tal como o aristocrata da época, considera a “história de uma mulher infiel”, de uma mulher “bem casada” dos círculos sociais elevados que “se perde”, é verdadeiramente a história de uma bela e forte mulher que luta pelo mais elementar direito do ser humano: a felicidade.
Por amor e em busca desse direito, ainda que enganada em sua busca, Ana decide romper com o estado de solidão espiritual em que se encontrava, mercê de um matrimônio infeliz contraído segundo cânones reacionários de uma época reacionária em uma sociedade reacionária.
Em Ana Karenina, o autor agiganta-se como um artista que conhece profundamente a alma humana, atingindo um nível raro de interpretação psicológica e de perfeição artística. Tolstoi retrata, através do amor e da tragédia de Ana Karenina, a decadência moral da aristocracia e a falsidade das suas concepções.
Também ocupa lugar especial na obra de Tolstoi A Morte de Ivan Ilitch. Segundo Paulo Rónai, tradutor da Comédia Humana, de Balzac, muitos críticos consideram-na como "a novela mais perfeita da literatura mundial; a agonia de um burocrata insignificante serve de pretexto ao autor para nos contar uma história que diz respeito ao destino de cada um de nós e que é impossível ler sem um frêmito de angústia e de purificação".
Boris Schnaiderman diz sobre A morte de Ivan Ilitch: “É justamente no período mais intenso destas suas preocupações, na maturidade e na velhice, que atinge o máximo de perfeição num gênero que vinha praticando desde moço - a novela -, e que escreve alguns dos seus contos mais extraordinários. É como se o passar dos anos lhe desse maior capacidade de síntese, como se a reflexão se cristalizasse mais e se decantasse. A Morte de Ivan Ilitch (1884-86), celebrada geralmente como o ápice do gênero novela em toda a literatura mundial, é na realidade o inicio de uma série de trabalhos neste sentido, alguns dos quais podem ser colocados praticamente no mesmo nível”.
Ao homenagear o grande gênio da literatura russa, Prosa, Poesia e Arte não pode deixar sem referência outra das suas grandes obras: Ressurreição. Escrito no apagar das luzes do século 19, último dos seus grandes romances, é a expressão mais clara da cólera tolstoiana contra as bases sobre as quais se soerguia o regime czarista, contra a moral e a cultura da sociedade aristocrática.
* José Reinaldo Carvalho é editor do Vermelho. Urariano Mota é jornalista e escritor pernambucano e colunista do Vermelho
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