sexta-feira, 10 de junho de 2016

2 cartas de Camões

 * Luís de Camões

Onde Há Inveja, não Há Amizade


Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste: pano é que não toma nunca bem esta tinta; que a Lua recebe a claridade do Sol, e o rosto, do coração. Nada dá quem não dá honra no que dá: não tem que agradecer quem, no que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai o que com ela se compra. Nada se dá de graça o que se pede muito. Está certo! Quem não tem uma vida tem muitas. Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar, e pouco que louvar. Nenhuma cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram, podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça sem almas, como este purgatório a que chamais honra; donde muitas vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há inveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação. Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora, ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E para muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que algo tiene en el cuerpo, que le duele. Ora temperai-me lá esta gaita, que nem assim, nem assim achareis meio real de descanso nesta vida; ela nos trata somente como alheios de si, e com razão: 

Pois somente nos é dada 
para que ganhemos nela 
o que sabemos. 
Se se gasta mal gastada, 
juntamente com perdê-la, 
nos perdemos. 

Enfim, esta minha Senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, é a mais fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve é, 

ponderemos e vejamos 
que ganhamos em viver 
os que nascemos: 
veremos que não ganhamos 
senão algum bem fazer, 
se o fazemos. 

E, por isso, respeitando 

que o porvir tal será, 
entesouremos ; 
porque [ao certo] não sabemos 
quando a morte pedirá 
que lhe paguemos. 

Nunca vi cousa mais para lembrar, e menos lembrada, que a morte; sendo mais aborrecida que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude. Mas, contudo, com seu pensamento, quando lhe vem à vontade, acarreta mil pensamentos vãos; que tudo para com ela é um lume de palhas. Nenhuma cousa me enche tanto as medidas para com estes que vivem na maior bonança, como ela; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras, dando com os corpos à costa; e se vem à mão, com as almas no inferno, que é bem ruim gasalhado: 

E pois todos isto temos, 
não nos engane a riqueza, 
por que tanto esmorecemos, 
e trás que vamos; 
já que temos a certeza 
que, quando mais a queremos, a deixamos. 

Gastamos em alcançá-la 
a vida; e quando queremos 
usar dela, 
nos tira a morte lográ-la; 
assim que a Deus perdemos 
e a ela. 

Luís Vaz de Camões, in "Cartas" 

Não se Diz ao Triste que se Alegre

Pouco sabe da tristeza quem, sem remédio para ela, diz ao triste que se alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dobram o que padece. Vós, se vem à mão, esperáreis de mim palavrinhas joeiradas, enforcadas de bons propósitos. Pois desenganai-vos, que, desde que professei tristeza, nunca mais soube jogar a outro fito. E, porque não digais que sou gente fora do meu bairro, vedes, vai uma volta feita a este mote, que escolhi na manada dos enjeitados; e cuido que não é tão dedo queimado que não seja dos que el-rei mandou chamar; o qual fala assim: 

Não quero e não quero 
jubão amarelo. 

Se de negro for 
também me parece 
quanto me aborrece 
toda a alegre cor: 
cor que mostra dor, 
quero e não quero 
jubão amarelo. 

Parece-vos que se pode dizer mais ? Não me respondais: «Quem gabará a noiva?» Porque assentai que foi comendo e fazendo, ou assoprando, que não é tão pequena habilidade. E, porque vos não pareça que foi mais acertar que querê-lo fazer, vedes, vai outra do mesmo jaez, contanto que se não vá a pasmar: 

Perdigão perdeu a pena, 
não há mal que lhe não venha. 

Em um mal outro começa, 
que nunca vem só nenhum; 
e o triste que tem um 
a sofrer outro se ofereça; 
e só pelo ver, conheça 
que basta um só que tenha 
para que outro lhe venha. 

Luís Vaz de Camões, in "Cartas" 
http://www.citador.pt/poemas/a/luis-vaz-de-camoes

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