terça-feira, 31 de março de 2020

Joaquim Vassalo Abreu - Negro como o breu

* Joaquim Vassalo Abreu 
MARCH 27, 2020

A noite (aqui onde vivo) faz-me lembrar as noites de quando era ainda adolescente na aldeia onde vivia! E havia (e há) uma palavra que a definia: Breu!

A diferença agora é que há mais luz, a dos candeeiros, que antes não havia!

Para se notar alguém que vinha só pela parca luz de um cigarro em sua boca ou pelo riscar do fósforo que o acendia!

Mas a escuridão agora é diferente, pois a hora para se descansar, que tinha a ver com o ritmo da luz natural, não se põe hoje, pela abundância da luz artificial outrora apenas reduzida a velas, candeeiros a petróleo ou querosene. A vida fazia-se apenas de dia e a noite era só para os vadios, dizia-se…

O acordar também é diferente do antes pois os regulamentos das horas isso permitem…

A gente levanta-se hoje cedo mas já com o sol se erguendo ou já levantado. Antes, de tão cedo deitar, as pessoas, para irem para as suas actividades de subsistência, levantavam-se ainda no breu! O ritmo é totalmente diferente daí que esta “escuridão” de falta de gente nas praças nem os candeeiros mitigam…

Razão pela qual, relembrando esses tempos antigos, eu conclua estes presentes tempos sombrios e anormais…

Na grande Praça à minha frente eu já vi um Mercado de ululante gente, a Esplanada do Torreão cheia de vida e o parque de automóveis que nela existe a abarrotar… e pessoas pacientemente esperando que alguém saísse!

Nestes negros tempos  por que passamos mantêm-se os candeeiros mas dando a nítida ideia que a sua luz não é a mesma! É mais sombria pois lhes falta do ser humano a companhia. A das crianças correndo e brincando e segurando cães que, perante tanta abundância de relva e espaço, traquinamente as arrastavam…

A luz ficou mais escura de solidão…

https://aesquerdadozero.wordpress.com/2020/03/27/negro-como-o-breu/

segunda-feira, 30 de março de 2020

Bertold Brecht - Coro dos tribunais



* Bertold Brecht


Foram-se os bandos de chacais
Chegou a vez dos tribunais
Vão reunir o bom e o mau ladrão
Para votar sobre um caixão
Quando o inocente se abateu
Inda o morto não morreu
Quando o inocente se abateu
Inda o morto não morreu

A decisão do tribunal
É como a sombra do punhal
Vamos matar o justo que ali jaz
Para quem julga tanto faz
Já que o punhal não mata bem
A lei matemos também
Já que o punhal não mata bem
A lei matemos também

Soa o clarim soa o tambor
O morto já não sente a dor
Quando o deserto nada tem a dar
Vem as águias almoçar
O tribunal dá de comer
Venham assassinos ver
O tribunal dá de comer
Venham assassinos ver

Se o criminoso se escondeu
Nada de novo aconteceu
A recompensa ao punho que matou
Uma fortuna a quem roubou
Guarda o teu roubo guarda-o bem
Dentro de um papel a lei
Guarda o teu roubo guarda-o bem
Dentro de um papel a lei

Canção original de Bertolt Brecht na peça “A Exceção e a Regra”
Versão Luís Francisco Rebelo
Música José Afonso
LP Coro dos Tribunais (1975)

domingo, 29 de março de 2020

António Lobo Antunes - Sátira aos HOMENS quando estão com gripe



* António Lobo Antunes

Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
Anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer

António Lobo Antunes - Sátira aos HOMENS quando estão com gripe
in Letrinhas de Cantigas (canções) 2002


sexta-feira, 27 de março de 2020

Ivã Lins - Aos Nossos Filhos



* Ivã Lins / Vitor Martins


Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

E quando largarem a mágoa
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim

segunda-feira, 23 de março de 2020

Rafael Alberti - Un fantasma recorre Europa

* Rafael Alberti

Y las viejas familias cierran las ventanas,
afianzan las puertas,
y el padre corre a oscuras a los Bancos
y el pulso se le para en la Bolsa
y sueña por las noches con hogueras,
con ganados ardiendo,
que en vez de trigos tiene llamas,
en vez de granos, chispas,
cajas,
cajas de hierro llenas de pavesas.
¿Dónde estás,
dónde estás?
Los campesinos pasan pisando nuestra sangre.
¿Qué es esto?
─Cerremos,
cerremos pronto las fronteras.
Vedlo avanzar de prisa en el viento del Este,
de las estepas rojas del hambre.
Que su voz no la oigan los obreros,
que su silbido no penetre en las fábricas,
que no divisen su hoz alzada los hombres de los campos.
¡Detenedle!
Porque salta los mares
recorriendo toda la geografía,
porque se esconde en las bodegas de los barcos
y habla a los fogoneros
y los saca tiznados a cubierta,
y hace que el odio y la miseria se subleven
y se levanten las tripulaciones.
¡Cerrad,
cerrad las cárceles!
Su voz se estrellará contra los muros.
¿Qué es esto?
─Pero nosotros lo seguimos,
lo hacemos descender del viento Este que lo trae,
le preguntamos por las estepas rojas de la paz y del triunfo,
lo sentamos a la mesa del campesino pobre,
presentándolo al dueño de la fábrica,
haciéndolo presidir las huelgas y manifestaciones,
hablar con los soldados y los marineros,
ver en las oficinas a los pequeños empleados
y alzar el puño a gritos en los Parlamentos del oro y de la sangre.
Un fantasma recorre Europa,
el mundo.
Nosotros le llamamos camarada.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Pedro Barroso - Agora nunca é tarde -


* Pedro Barroso


Cada um de nós nasce
Com um artista lá dentro
Um poeta, um escultor, um aventureiro
Um cientista, um pintor, um arqueólogo
Um estilista, um astronauta, um cantor
Um marinheiro
E o sonho e a distância, e o tempo e a saudade
Deram-nos vida, amor, problemas, mentiras e verdade
E damos por nós mesmos descobrindo que agora
Agora se calhar, já é um pouco tarde
E nas memórias velhas e secretas da menina
Mora sempre aquele sonho de ser
Bailarina, atriz, modelo, princesa, muito rica, eu sei lá
Mas os anos correram num assombro
E a vida foi injusta em qualquer jeito
Para a chama indelével que ainda arde
E os filhos, os filhos são bonitos no seu peito
Mas agora é que, pra certas coisas
Agora já é tarde
E nos papéis antigos que rasgamos
Há sempre meia dúzia que ainda guardamos
São os planos da conquista do Pólo Norte
Que fizemos um dia com sete anos numa tarde
E que estiveram perdidos trinta anos
E agora, se calhar, maldita sorte!
Não é que por desnorte, acaso ou esquecimento
Alguém já descobriu o Pólo Norte
E agora pronto, e agora pronto, agora já é tarde
Há sempre, sempre nas gavetas escritores secretos
Cientistas e doutores
Desenhos e projectos construtores feitos em meninos
De tudo o que sonhámos fazer quando fosse a nossa vez
Cientistas em busca de Plutão, arqueólogos no Egito
Viajantes sempre sem destino
Futebolistas de sucesso do caramba no Inter de Milão
Mas o curso da vida foi traidor
E o curso da vida foi covarde
E o ciclo do tempo completou-se, e agora pronto
Agora, agora já é tarde, agora é tarde
Emprego, casa, filhos muito queridos
Algum sonhar um pouco com amigos
Às vezes sair, beber uns copos pra esquecer ou pra lembrar
E fazer ainda, é claro, um certo alarde
Talvez para esconder ou para abafar
Como é já tão demasiado e impiedosamente tarde
Ah mas não, não, não pode ser assim
Nunca é tarde para renovar, nunca é tarde pra se sonhar
Nunca é tarde
Amanhã partimos todos para Istambul
Vladivostock, Alasca, Oslo, Dakar
Vamos à selva, eu vou a Timor abraçar aquela gente
E às montras de Amsterdam
Que eu afinal também não sou diferente
E chegando a Tóquio, companheiro
Chegando a Tóquio, são horas de jantar hein
É que ainda temos que voltar por Bombaim
Passando por Macau e Calcutá
Que eu encontro Portugal em todo o lado
E mesmo fugindo nunca saio de mim
E se esse marinheiro, galã, aventureiro, esse já não há
Pois que nos cumpramos ao menos agora até o fim
No que fazemos, na diferença do que formos e dissermos
E perguntando, criando rebeldias
Conferindo aquilo que acreditamos
E o que ainda formos capazes de sonhar
E se aquilo que nos dão todos os dias
Não for coisa que se cheire ou nos deslumbre
Que pelo menos nunca abdiquemos de pensar
Com direito à ironia, ao sonho, ao ser diferente
E será talvez uma forma inteligente de, afinal, nunca
Nunca ser tarde demais para viver
Nunca ser tarde demais para perceber
Nunca ser tarde demais para exigir
E nunca ser tarde demais para acordar
No teclado: David Coelho!
Eu tenho aqui um poema que escrevi num livro
Chamado: Das mulheres e do mundo
Bastante ambicioso, porque fazer um livro pra falar
Das mulheres e do mundo é precisamente impossível porque
Ninguém sabe nada nem de uma coisa nem de outra
Mas enfim, e nesse livro já, imaginem, talvez com uns dez anos
Tava-se a falar nessa altura da constituição europeia
Da nova constituição europeia, Europa, não sei que
E eu escrevi este poema com uma
Com uma atualidade enorme hoje em dia, suponho

segunda-feira, 16 de março de 2020

Emtithal Mahmoud - Mamã



* Emtithal Mahmoud 

Eu estava andando na rua quando
 um homem me parou e disse:
Ei, você é da pátria?
Porque minha pele é uma sombra muito profunda para não ter vindo de solo estrangeiro.
Porque esta roupa na minha cabeça grita África.
Porque meu corpo é um farol chamando todo
mundo para vir ao bando para a pátria.
Eu disse: eu sou sudanesa, porquê?
Ele diz: porque você tem um pouco de sabor em
você,  só estou admirando o que sua mãe lhe deu.
Deixe-me dizer-lhe algo sobre a minha mãe.
Ela pode reduzir um homem a carne esfarrapada sem sequer piscar Suas palavras infeccionam sob sua pele e o tempo todo.
Você não será capaz de parar
de embalar seus olhos.
Minha mãe é uma mulher perfeita e formidável no mesmo passo.
Mulher entra numa zona de guerra
e tem guerreiros se encolhendo a seus pés.
Minha mãe carrega todos nós em seu corpo,
em seu rosto, em seu sangue e  sangue não é bom quando você se solta.
Então ela sempre nos mantém perto.
Quando eu tinha 7 anos, ela embalou balas
 nas ondas de suas vestes.
Naquela mesma noite, ela me ensinou como tirar a pólvora do algodão com uma barra de sabão.
Anos depois, quando os soldados a mantiveram sob a mira de uma arma e perguntaram quem ela era.
Ela disse: Sou filha de Adão, sou mulher,
quem diabos é você ?
A última vez que fomos para casa,
vimos nossa aldeia queimar.
Soldados derramando sangue de crânios civis.
Como se eles também pudessem transformar água em vinho.
Eles roubaram o chão debaixo dos nossos pés.
A mulher que me criou virou-se e disse, não tenha medo, sou sua mãe, estou aqui,
não vou deixar passar.
Minha mãe me deu convicção.
Mulheres como ela de olhos cansados, pulsos machucados e espinhas de titânio.
As filhas das viúvas usando as asas dos amputados transportam os países entre as omoplatas.
Eu não estou dizendo que o namoro é um problema do primeiro mundo, mas esses filhos da puta insignificantes parecem ser.
O tipo que vai citar Rumi, mas não sabe
o que ele sacrificou pela guerra.
Quem vai bajular Lupita,
mas ligue seus filtros raciais.
Quem vai tomar sua política com leite quando
eu tomar o meu com gás lacrimogéneo.
Todo o madié que eu conheço quer ser minha
 introdução para o lado negro.
Quer que eu abra essa pele de obsidiana
e deixe que eles leiam cada página chorosa.
Porque o sobrevivente não teve sua luta
feita espectáculo?
Não fale sobre a pátria a menos que
 você saiba que ser da África
significa acordar uma reflexão tardia neste país.
Não fale sobre o meu sabor a menos que você saiba que  meu sabor é insurreição, é rebelião,
resistência.
Meu sabor é um motim é um fardo, é um problema
e é um compromisso e você não conhece
 o compromisso até que você tenha reconstruído
sua casa pela terceira vez .
Sem tijolos, sem argamassa, sem outra opção.
Virei-me para o homem e disse:
Minha mãe e eu não podemos mais andar sozinhas pelas ruas de volta para casa.
De volta para casa, não há mais ruas para andar.
Desde que você está aqui ...

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Emtithal Mahmoud, chamada de "Emi", escreve poemas sobre resiliência para enfrentar a sua experiência de sobrevivente do genocídio de Darfur. Ela fala de refugiados, família, alegria e tristeza. Emtithal Mahmoud, cuja família foi expulsa do Sudão pela guerra quando era criança, ganhou um prémio de poesia performática por peças baseadas em uma história traumática.

Com o poema Mamã, ela ganhou o Campeonato Mundial Individual de Poesia Slam em Washington DC.

Mahmoud, que vem de Darfur e está actualmente na Universidade de Yale estudando antropologia e biologia molecular, diz que a sua mãe ainda não ouviu o poema que inspirou.

Partiu para o Sudão no primeiro dia da competição de poesia, que também foi o dia da morte da avó de Mahmoud.

Foi a peça final que Mahmoud apresentou na competição, na qual os poetas performáticos de todo o mundo competem numa série de rodadas.

A família de Mahmoud deixou o Sudão para o Iémen quando ainda era criança, mudando-se para os Estados Unidos em 1998. Começou a escrever poesia quando criança "para ajudar os meus pais a aumentar a consciencialização para o nosso povo em Darfur".Meu objectivo era garantir que as crianças, minhas primas, não fossem esquecidas nas tentativas de enfrentar as atrocidades em Darfur”, diz ela.

http://jornalcultura.sapo.ao/dialogo-intercultural/a-historia-de-darfur-na-poesia-de-emtithal-mahmoud

Christian Thouvenot - Coronavirus : entre science et fiction

Récit pour temps d'épidémie 

Abbé Christian Thouvenot
Au début, les hommes pensaient pouvoir faire face. Le virus, d’abord appelé coronavirus, puis Covid-19 ou SARS-CoV-2, paraissait devoir se limiter à la Chine. Seuls les pays dont le système sanitaire était fragile risquaient l’hécatombe, avertissaient les experts sur les plateaux de télévision. D’ailleurs, au début, les morts ne se comptaient que par centaines. Ou quelques milliers. Mais, à l’échelle de la Chine, cela n’avait rien d’alarmant. 
L’Europe changea de ton et d’attitude lorsque les premiers morts se rencontrèrent en Italie, puis en France, en Espagne, et un peu partout sur le continent. Et puis l’Organisation mondiale de la santé parla de pandémie. Quand tous les pays et tous les continents furent atteints, ce fut l’écroulement. Les bourses finirent par être suspendues, vu que toute activité économique avait cessé. Mis à part les secteurs de la santé et de l’alimentation, tout s’arrêtait. Les écoles et les universités, après les clubs de sport et les musées, fermèrent pays par pays. En France, même les gilets jaunes finirent par évacuer les derniers ronds-points. Une manifestante, qui distribuait du café aux automobilistes qui avaient klaxonné en guise de soutien, était morte de la maladie. 
Les églises aussi furent fermées, les rassemblements interdits. A l’époque, on croyait ces mesures suffisantes, et qu’aussitôt un certain pic d’épidémie atteint, le plus dur serait passé et tout reviendrait à la normale.  

La démocratie plus forte que le virus 

Dès le mois de mai 2020, les prévisionnistes annoncèrent une reprise explosive, un boom économique comme jamais l’humanité n’en avait connu. Les spéculateurs étaient au taquet. Les gouvernements ressortaient leurs projets, puisque les parlements pourraient bientôt à nouveau se réunir et adopter de nouvelles lois. 
Les vieillards, dont beaucoup étaient morts dans des maisons de retraite bouclées à double-tour, sans même avoir pu revoir leur famille ou recevoir la visite du prêtre, pourraient prochainement bénéficier du recours à l’euthanasie ou au suicide-assisté sans entraves. Une « pilule sans lendemain » verrait bientôt le jour, et assurerait une fin de vie tranquille et confortable à tous ceux qui le souhaitaient. 
Du côté des femmes, le droit à l’avortement allait être inscrit dans la constitution. L’interruption de grossesse jusqu’au neuvième mois en cas de fragilité psychologique ou sociale de la mère – ou du père – apparaissait comme une avancée nécessaire autant que précieuse. Une loi de protection des libertés individuelles prévoyait la cessation de toute aide sociale pour les opposants. Des peines de prison frapperaient ceux qui s’obstineraient à défendre un ordre naturel et divin. 
Le président français, Emmanuel Macron, annonça le 14 juillet une grande relance européenne avec ses alliés italiens, espagnols, belges et allemands. Dorénavant un système unique de santé, mais aussi de sécurité et de défense, allait voir le jour dans l’Union. Un barème fiscal européen était aussi à l’étude, ainsi qu’un salaire minimum garanti, quelle que soit sa nationalité ou son origine. Les chefs d’Etat européens annoncèrent même l’intégration prochaine de la Turquie dans l’Union européenne. La date, fixée au 24 juillet 2023, correspondait au centenaire du traité de Lausanne. Mais ce fut au début du mois de septembre 2020 qu’eut lieu le terrible collapsus. 

Le virus de Malte ? 

Le pic qui avait été atteint en avril 2020 n’en était pas un. Il est vrai que la courbe des personnes infectées avait semblé marquer une pause. Celle des morts aussi. Le plus dur était passé, croyait-on. Déjà les bourses rouvraient et les gouvernements s’activaient pour relancer la plupart des secteurs économiques. Celui du tourisme annonçait une flambée des réservations. Les compagnies d’aviation, dont beaucoup avaient disparu dans la tourmente, reprenaient des couleurs. 
En revanche, les résidences pour personnes âgées avaient fait part de leur inquiétude en raison du nombre élevé de places vacantes. Heureusement, un député avait trouvé la solution : toute personne de plus de 65 ans placée dans un EHPAD se verrait offrir un chèque emploi-solidarité permettant une réduction d’impôt sur dix ans pour elle-même ainsi que pour la personne de son choix. Les résidences pour personnes retraitées (on ne disait plus âgées) étaient déjà submergées par les demandes. 
Mais le Covid-19 fit son grand retour. A la faveur des changements de saison et de sa diffusion dans l’hémisphère sud, le virus muta. Ce fut l’Institut Pasteur qui s’en rendit compte le premier. Les espoirs d’obtenir rapidement un vaccin disparurent aussitôt. A vrai dire, on ne sut jamais véritablement la cause de cette mutation. Toutes sortes de théorie circulèrent. Un évêque anglais y vit un complot du Mossad. Les Américains dénoncèrent une opération du Parti communiste chinois. On crut un moment que des Erythréens passés par l’île de Malte et accueillis au Vatican étaient à l’origine de la catastrophe. Mais le pape prit la parole pour dénoncer le retour des idéologies populistes et écarter cette thèse raciste et visiblement complotiste. 
Toujours est-il que le virus s’avéra beaucoup plus meurtrier. Désormais la population entière était touchée. La mortalité restait plus élevée chez les vieillards, mais dorénavant tous les âges étaient concernés. Les enfants aussi. Pas une famille qui ne fut endeuillée.
Ce fut, bien plus qu’en mars, un effondrement total. La police, dont les rangs étaient décimés par la maladie, cessa de maintenir l’ordre en dehors des grandes villes et des instances étatiques. Partout la désolation se répandit, et les premières famines virent le jour sur des continents qui n’en avaient plus connu depuis les grandes guerres. 
Le gouvernement chinois, qui avait officiellement célébré la victoire sur le virus le 4 mai, lors de la fête de la jeunesse, dut déchanter à la fin de l’été, après la mousson. La reprise des échanges commerciaux avait en effet réimporté la maladie qui fit, cette fois-ci, des millions de victimes. Le 1er octobre, jour de fête nationale, on recensa 11.237 décès pour la seule ville de Pékin. Un record. 

La catastrophe 

Le monde fut paralysé. L’humanité à l’agonie. Des scènes que l’on croyait révolues et dignes des siècles de l’obscurantisme médiéval se jouèrent un peu partout, réelles celles-là. Même escortés par l’armée, les convois de nourriture étaient assaillis. Les pharmacies et les hôpitaux, même protégés par des vigiles armés, faisaient l’objet d’attaques quotidiennes. Il y eut des pillages et des émeutes. 
Les révoltes les plus sanglantes éclatèrent en France. Du moins furent-elles les plus médiatisées à travers le monde. Elles se déclenchèrent aussitôt que le recteur de la grande mosquée de Paris eut déclaré, lors d’un prêche du vendredi, que les biens des infidèles appartenaient de droit aux musulmans pieux et miséricordieux. Le vicaire général du diocèse de Paris, bien malgré lui, attisa l’incendie en invitant les fidèles catholiques à partager leurs biens « en ouvrant leur cœur à l’étranger ». Il fit sensation en fredonnant, à la télévision, d’une voix blanche : « Laisserons-nous à notre table un peu d’espace à l’étranger ? Trouvera-t-il quand il viendra un peu de pain et d’amitié ? ». Le soir même, des hordes furieuses pillaient l’archevêché. 
Largement médiatisées, ces terribles journées – il y eut deux semaines d’émeutes dans la capitale française, faisant plusieurs dizaines de milliers de morts – provoquèrent, comme autant de répliques, des épisodes tout aussi violents dans la plupart des villes européennes. De Berlin à Naples, de Lisbonne à Vienne, toutes les agglomérations connurent des soulèvements et des scènes horribles. Bruxelles brûla durant trois jours. Aujourd’hui encore, il est impossible de dresser un bilan exact des millions de victimes que fit la pandémie mondiale, directement ou indirectement. Il faut dire que les journalistes, qui par leurs déplacements colportaient le virus, versèrent un lourd tribut et moururent massivement, tantôt infectés, tantôt lynchés par une population excédée. Sans eux, le monde devenait aveugle et sourd. 
Une chose est sûre : le pape François partit en exil à la Noël et, tel un nouveau pape Clément, fut accueilli en Afrique équatoriale, seule région protégée de l’épidémie. Il installa le siège de Pierre à Yamoussoukro, en Côte d’Ivoire. Il eut beau canoniser Félix Houphouët-Boigny, les autorités politiques refusèrent d’accueillir les millions de réfugiés qui tentaient de traverser la mer Méditerranée depuis l’Europe. Unanime, l’Union africaine dénonça un néo-colonialisme inacceptable. Le maréchal Haftar, maître de la Libye, donna depuis Tripoli la canonnade pour couler les embarcations venues de Marseille, de Lampedusa et de Crète. L’ancien président Sarkozy déclara que les peuples noirs venaient enfin d’entrer dans l’histoire. 

L’effondrement 

Il fallut attendre deux longues années. Les villes avaient fini par se vider. Le retour à la terre avait été particulièrement chaotique, vu que chacun tenait à s’isoler dans sa propre ferme. Au moins ne mourrait-on plus de faim. Mais la disette était partout. 
Toutes sortes de rumeurs circulaient. On disait que l’Amérique du Sud n’était plus qu’un cimetière à ciel ouvert. Le virus avait développé une forme singulièrement maligne qui emportait les malheureux, infectés en quelques heures. Les corps suffoquaient, prostrés et tordus de douleur. 
En Iran, le pays avait perdu la moitié de sa population. Le régime des Mollahs s’était effondré. Moscou assurait désormais l’ordre public à Téhéran, mais le président turc, Recep Erdogan, en avait profité pour envahir la Syrie et massacrer les Kurdes. Israël occupait à nouveau le sud du Liban et l’ensemble du Golan jusqu’à la plaine de Damas. 
Aux Etats-Unis, l’épidémie, qui un temps avait semblé endiguée, avait touché le pays de plein fouet à l’été 2021. Le nouveau président, Joe Biden, fut tenu pour responsable par une partie de l’opinion. Sa décision d’ouvrir les frontières avec le Mexique et de démanteler « le mur de la honte » avait en effet suscité beaucoup d’émoi. Mais il semble que ce soit la fin de l’embargo sur Cuba, où le virus était très répandu malgré les dénégations officielles, qui ait été la véritable cause du regain d’épidémie.  
Bernie Sanders, candidat malheureux à la primaire démocrate un an plus tôt, contracta le mal lors d’un séjour à Varadero. Il rapporta la maladie dans sa ville de Burlington où, après une rapide agonie, il mourut dans un râle lugubre. Ce fut l’origine de l’épidémie qui se montra particulièrement virulente dans le Vermont. Elle se répandit jusqu’à Montréal. Le premier ministre, Justin Trudeau, qui venait de perdre son épouse, n’avait pas voulu fermer la frontière. 

L’espoir 

La rumeur la plus folle commença à se répandre au printemps 2022. A la stupéfaction générale, un remède avait été mis au point. Les grands laboratoires pharmaceutiques, lancés dans une course effrénée, n’avaient pas réussi à trouver le bon vaccin. Mais on rapportait qu’en Orient, un chercheur isolé disposait d’un traitement vraiment efficace, non seulement capable d’immuniser le malade en produisant des anticorps, mais aussi d’éliminer les agents pathogènes. Il se proposait d’en faire profiter tous ceux qui viendraient à lui. 
Malgré les risques – l’insécurité était partout – et les imprécisions quant au lieu exact où trouver le génial découvreur et sa géniale découverte, tous ceux qui le purent se mirent en marche, séance tenante. Les quolibets ne manquèrent pas. Les interdictions de voyager, de se réunir ou de se rassembler en découragèrent plus d’un. Galvanisés, les « pèlerins de la santé » – ainsi les avait-on baptisés – se retrouvèrent par foules entières en Orient, le cœur serré et rempli d’espoir. Ils ne furent pas déçus. Le remède, très simple, procurait la guérison instantanée des malades et la protection immédiate des personnes encore saines. 
Il suffit bientôt de retourner chez soi, en touchant le plus possible de gens, par une sorte de contamination inversée, de sainte épidémie apportant la santé des corps et le réconfort de tous. L’humanité sortait du cauchemar. L’épidémie du Covid-19 ou SARS-CoV-2 était vaincue. Le monde était sauvé. 
Epilogue : retour au réel 
Le coronavirus est quatre mille milliards de fois plus petit qu’un grain de sable. Mais il suffit pour mettre l’humanité à genoux. Invisible et insidieux, il fait planer une menace aussi terrible que les guerres. Universel, il est capable de provoquer l’effondrement des économies, l’arrêt des activités et des communications, sans parler de la crainte panique et de la frénésie des passions. Il peut précipiter le genre humain dans le chaos et la guerre de tous contre tous. Pour en être délivré, trouver un vaccin est la seule issue. Face à l’épidémie, le remède est absolument nécessaire pour le salut de l’humanité. 
Qu’en est-il des âmes et de leur salut éternel ? 
Dieu a créé l’homme pour le connaître, l’aimer et le servir. Livrée à elle-même, l’humanité est aujourd’hui accaparée par les biens terrestres et se croit toute-puissante pour repousser les limites et changer, s’il se pouvait, jusqu’à la nature humaine. 
Colosses aux pieds d’argile, les hommes vacillent. Ils voudraient à toute force légaliser l’euthanasie pour se débarrasser des vieillards et des infirmes, et les voici forcés de prendre des mesures pour protéger les anciens et les personnes les plus vulnérables. Ils s’en prennent aux plus faibles, aux bébés dans le sein de leur mère comme aux enfants à qui le mensonge des idéologies est inculqué dès le plus jeune âge, et voici que le coronavirus épargne justement les plus petits. 
Qui apportera aux hommes le remède au manque de foi, à la cécité spirituelle et à l’endurcissement du cœur ? 
L’Imitation de Jésus-Christ indique quel est ce remède, et comment l’humanité aveugle et pécheresse peut se relever. A la messe, le Sauveur des hommes offre inlassablement le prix de leur rachat. Jésus-Hostie, c’est Dieu incarné, immolé et ressuscité pour leur salut :
« Si cet adorable sacrement ne s’accomplissait qu’en un seul lieu et qu’un seul prêtre dans le monde entier consacrât l’hostie sainte, avec quelle ardeur les hommes n’accourraient-ils pas en ce lieu, vers ce prêtre unique, pour voir célébrer les saints mystères ! Mais il y a plusieurs prêtres, et le Christ est offert en plusieurs lieux, afin que la miséricorde et l’amour de Dieu pour l’homme éclatent d’autant plus, que la sainte communion est plus répandue dans le monde. Je vous rends grâce, ô Jésus, Pasteur éternel, qui dans notre exil et notre indigence, daignez nous nourrir de votre Corps et de votre Sang précieux, et nous inviter de votre propre bouche à la participation de ces sacrés mystères, disant : “Venez à moi, vous tous qui portez votre fardeau, et je vous soulagerai” » (Imitation de Jésus-Christ IV, 1). 

Joseph Conrad - O coração das trevas" (excerto)

* Joseph Conrad 

« Deviam tê-lo ouvido falar ‘Meu marfim’. Eu ouvi. ‘Minha Prometida, meu marfim, meu posto, meu rio, meu…’, tudo lhe pertencia. Fez com que prendesse minha respiração na expectativa de ouvir a floresta rebentar numa prodigiosa explosão de riso, que deslocaria do lugar as estrelas do céu. Tudo lhe pertencia, mas isso não importava. A questão era saber a quem ele pertencia, quantos poderes das trevas reclamavam-lhe a posse. Essa era a reflexão que provocava arrepios de horror. Era impossível — de nada adiantava, também — tentar imaginar. Ele havia galgado uma alta posição entre os demônios da Terra — literalmente, quero dizer. Vocês não podem compreender. Como poderiam? Tendo o chão firme sob os pés, cercados do apoio ou da crítica de vizinhos gentis, andando delicadamente entre o açougueiro e o policial, no santo terror de escândalos, prisões e hospícios, como poderiam vocês imaginar a que particular região de primitivas eras os pés desimpedidos de um homem seriam capazes de conduzi-lo, por força da solidão — uma solidão absoluta, sem nenhum policial — ao caminho do silêncio — um silêncio absoluto, onde nenhuma voz de advertência de um vizinho amável pode ser ouvida sussurrando à opinião pública? São essas pequenas coisas que fazem a grande diferença. Quando elas desaparecem, você tem de recorrer à sua força inata, à sua capacidade de ser fiel a si próprio. É claro que você pode ser tolo o bastante para cometer erros — estúpido demais até para perceber que está sendo assaltado pelos poderes das trevas. Suponho que nenhum tolo chegou a barganhar sua alma com o diabo; ou o tolo é tolo demais, ou o diabo demasiadamente diabólico — não sei qual é o caso. Ou pode ser que você seja uma criatura tão fantasticamente superior a ponto de ficar surda e cega a tudo que não diga respeito a visões e sons celestiais. A Terra passa, então, a ser apenas um lugar de espera — e, se você perde ou ganha assim, não sei dizer. No entanto, a maioria de nós não é uma coisa nem outra. A Terra para nós é um lugar para viver, onde temos de lidar com visões, sons… e odores, também, por Deus! — respirar carne podre de hipopótamo, por assim dizer, e não ser contaminado. E aí, não percebem? Nossa força aparece, a fé em nossa capacidade de cavar buracos discretos para enterrar a coisa — nosso poder de devoção, não a si próprio, mas a um obscuro e extenuante trabalho. E isso é bastante difícil. Vejam, não estou tentando desculpar-me ou mesmo explicar… Estou tentando compreender mais claramente quem era… o Sr. Kurtz… o espectro do Sr. Kurtz. Aquele iniciado fantasma proveniente do fundo de lugar nenhum honrou-me com sua surpreendente confidência antes de desaparecer completamente. Foi porque podia falar inglês comigo. O Kurtz original fora em parte educado na Inglaterra, e — como ele próprio teve a bondade de dizer-me — suas simpatias inclinavam-se para o lugar certo. A mãe era meio inglesa, o pai meio francês. A Europa inteira contribuíra para a fabricação de Kurtz; e, pouco a pouco, aprendi que, muito apropriadamente, a Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros o incumbira da elaboração de um relatório, que lhe serviria de guia no futuro. E ele de fato o escreveu. Eu o vi. Eu o li. Era eloqüente, vibrava de eloqüência, mas passional demais, eu acho. Dezessete páginas de escrita miúda, que ele encontrara tempo para realizar! Porém, isso deve ter sido antes de — vamos dizer — ficar mal dos nervos, fazendo com que presidisse certas danças à meia-noite que terminavam com indescritíveis ritos, os quais — tanto quanto relutantemente concluí do que ouvira diversas vezes — eram oferecidos a ele — compreendem? — ao próprio Sr. Kurtz. Mas era um belo texto. O parágrafo de abertura, no entanto, à luz de informação posterior, parece-me agora sinistro. Começa com o argumento de que nós, brancos, em razão do nível de desenvolvimento a que chegamos, ‘devemos necessariamente aparecer a eles (selvagens) como seres de natureza sobrenatural — aproximando-nos deles com a força de uma divindade’, e assim por diante. ‘Pelo simples exercício de nossa vontade, podemos exercer para sempre um poder praticamente ilimitado’ etc. etc. A partir desse ponto, elevava-se a grande altura, levando-me junto. O discurso era magnífico, embora difícil de lembrar, compreendem. Passava a idéia de uma exótica Imensidão governada por uma augusta Benevolência. Fazia-me vibrar de entusiasmo. Era o ilimitado poder da eloqüência… da palavra… de palavras nobres, inflamadas. Não havia alusões práticas para interromper o encadeamento mágico das frases, a não ser uma espécie de nota ao pé da última página, evidentemente rabiscada muito depois, numa caligrafia irregular, podendo ser considerada como uma exposição do método. Era muito simples, e, no final daquele apelo comovente a todo sentimento altruísta, brilhava, luminoso e aterrorizante, como o clarão de um raio em céu sereno: ‘Exterminem todos os bárbaros!’.»

O Coração das Trevas, de Joseph Conrad (1857-1924)

domingo, 15 de março de 2020

Covid-19. Como as pessoas falam sem saber da ameaça que chegou

CORONAVÍRUS  -  Covid-19. Como as pessoas falam sem saber da ameaça que chegou  -  15.03.2020 às 13h40 - LUÍS M. FARIA

Reportagem nas ruas, as conversas sobre o coronavírus em locais públicos, desde cafés a paragens de autocarro, discutem as regras de distanciamento social, o verdadeiro perigo do vírus e as mensagens de voz falsas que circulam no Whatsapp. Em paralelo, há teorias várias sobre a origem não-natural do vírus. O facto de os cientistas as desmentirem, obviamente, não basta como argumento para muita gente

Uma paragem de autocarro numa zona próxima de Lisboa, num sábado à tarde. Enquanto o autocarro não chega, uma mulher jovem fala ao telefone. Outra chega, com luvas descartáveis calçadas, e as pessoas no assento afastam-se para lhe dar lugar. Ela recusa. "Quatro metros", diz, indo-se encostar na ponta da paragem.

Ambas as mulheres estão ao telefone, e, como não falam muito baixo, depressa se percebe que são empregadas domésticas. As conversas são ambas sobre o coronavírus. "Diziam que estavam não sei quantos em observação... Afinal havia mortos, em Santa Maria...", diz uma. "A ministra tem um ar cínico, a mexer no cabelo. Vê-se que está nervosa...".

Uma delas tem o alta-voz com o volume suficientemente elevado para se constatar que está a ouvir um vídeo onde alguém que se reclama de Informação privilegiada diz que já existem milhares de infetados ou mortos. "Pelas coisas que fui convidado a ouvir ontem... Juro-te que preferia não ter ouvido e visto aquilo que vi...". Esse vídeo, que relata uma situação falsa, anda a circular no WhatsApp e tem sido alvo de troça - mas em alguns casos também de receio.

A outra mulher aconselha alguém a controlar a temperatura mas não se preocupar demasiado se houver oscilações, pois na menopausa isso é natural. E queixa-se dos patrões: "Essas pessoas tão egoístas, man, que nem feriado te dão. Não vens hoje, não te pagam. É assim. Nem que eles tenham de guardar os filhos dentro de um quarto, para tu limpares a casa toda. Eu perguntei: mas a senhora não me vê como uma ameaça?".

Na estação onde apanhamos o comboio, um funcionário da CP conversa com outro que se encontra dentro da bilheteira. "Isto é a Terceira Guerra Mundial. Devíamos ficar em casa", "Tu não tens nada?", pergunta o segundo. "Diabetes", responde o primeiro com um sorriso malicioso.

Em Lisboa, o tema das conversas que se ouvem permanece o mesmo em quase todos os casos. "Deixaram esta treta entrar e agora como é que é?", diz um motorista da Carris para um colega. "Deviam ter fechado logo as fronteiras. Tudo. Se chegarem 505 a um hospital, como é que é? Mandam-nos para casa. É a quarentena, como na China. Mandam-nos para casa. Aparecem em público a dizer que morreram cem e está tudo controlado. E os outros mil? Os outros mil estão em casa, mortos".

Mais adiante, o mesmo motorista comenta para o colega, apontando os turistas na rua da Alfândega. "Tu não vês? Andam para aí a passear. Anda cheios de dinheiro. Eu e tu temos de trabalhar, mais nada". O outro responde: "Os que estão a recibo verde é que estão entalados".

O DISTANCIAMENTO E QUEM GANHA COM O SURTO
Num café popular da Margem Sul, um grupo de clientes encostados ao balcão discute os novos protocolos sociais, que parecem não convencer alguns deles, como não os convencem, mesmo agora, as piores previsões sobre os efeitos do vírus. "Deixar de dar apertos de não às pessoas e perder os amigos? Ó pá, eu não acredito nisso", diz um. "Isto há para aí muitos interesses, das farmacêuticas, pá, e para esconder outras coisas", responde outro. "Vi no Facebook que isto foi uma mutação do vírus da Sida", acrescenta um terceiro.

A obsessão com quem "está a ganhar" com o coronavírus é um tema constante, e os suspeitos são vários, incluindo "o Soares dos Santos" e outras empresas de hipermercados. Em paralelo, há teorias várias sobre a origem não-natural do vírus. O facto de os cientistas as desmentirem, obviamente, não basta como argumento para muita gente. Algumas pessoas têm uma teoria concreta (foram os chineses, os americanos, foi deliberado, foi um acidente, foi algo que se escapou...), outras dizem apenas vagamente que o vírus foi fabricado.

Na rua central de Cacilhas, sexta-feira à noite o cenário lembrava o da proverbial bomba de neutrões: prédios de pé, restaurantes abertos, quase ninguém lá dentro, numa altura da semana em que o movimento é sempre intenso. Para funcionários que perderam o emprego literalmente de um dia para o outro, entre quinta e sexta-feira, arranjar trabalho na mesma área vai ser impossível nesta altura. Um bêbado tentava abraçar um conhecido que insistia em afastar-se, explicando que era uma pessoa doente e não podia cumprimentar ninguém. E outro raro cliente com uma cerveja na mão dizia filosoficamente: "Ainda vamos a tempo de cancelar 2020".

António Barreto - Emergência e razão

  António Barreto

15 de Março de 2020, 8:22

Os responsáveis pela pandemia e por esta loucura gerada à sua volta são os chineses, o respectivo governo, as suas forças armadas, os seus industriais e os seus comerciantes. Internamente, aproveitam para reforçar a ditadura. Externamente, perturbam o mundo inteiro, fazem mal aos Estados Unidos e aos Europeus, promovem as vendas dos seus produtos farmacêuticos e fazem subir os preços dos seus produtos industriais e electrónicos. Quanto ao número de chineses mortos, ou se trata de mentira descarada permitida pela censura daquele país, ou então é verdade, mas não tem muita importância, dado que eles têm uma noção diferente da vida e da morte das pessoas e que, de qualquer maneira, há tantos chineses!

Como é cada vez mais evidente e provado em relatórios secretos, foi um acidente ocorrido nas instalações chinesas de investigação e produção de vírus e bactérias destinados à guerra biológica e que de qualquer maneira teriam o mundo ocidental como destino.

Na verdade, as várias explicações fornecidas ao público são geralmente boatos destinados a encobrir a verdadeira razão: a origem está de facto nas instalações fabris chinesas destinadas a produzir armas biológicas de destruição maciça, mas tratou-se da execução de um plano deliberado de ameaça às economias e às políticas ocidentais, com o intuito de os obrigar a aceitar as regras e as condições chinesas para os mercados internacionais.

Tem custado muito a ser averiguado, mas já há alguma evidência capaz de sustentar o argumento de que foi este o mais bem urdido plano russo para destruir o ocidente liberal e democrático, facto visível nas quase nulas taxas de mortandade e de contágio verificadas na Rússia.

Tudo leva a crer que tenham sido os grupos islâmicos, moderados ou radicais, que assim conseguiram, pela primeira vez na história, cancelar milhares de missas e outras liturgias católicas através de toda a cristandade, especialmente preparadas para as festividades da Páscoa.

Há provas de que foram os judeus, mais uma vez, que melhor souberam aproveitar o vírus chinês, a fim de ameaçar os europeus e árabes, seja porque não são solidários com o Estado de Israel, seja porque aceitam fazer Jogos Olímpicos e Campeonatos de futebol em países muçulmanos.

A pandemia descontrolada é evidentemente alimentada pelas comunidades racializadas do mundo inteiro (especialmente negros e ameríndios), na mais clara e eficaz campanha de descrédito da civilização ocidental e europeia.

Trata-se de uma das mais conseguidas campanhas de terrorismo jamais concebidas e postas em prática, que não só vai destruir a serenidade em muitos países, desviar as atenções da segurança interna fazendo-as concentrar na segurança sanitária e atacar frontalmente alguns dos países mais ferozmente inimigos do terrorismo, designadamente os Estados Unidos e a China. É aliás surpreendente que ninguém tenha reparado que até agora não morreu um só dirigente dos movimentos terroristas e ninguém, daqueles grupos, tenha sido infectado.

Os principais responsáveis por esta verdadeira paranóia são evidentemente os laboratórios farmacêuticos, os produtores de vacinas e de desinfectantes que esperam ganhar milhares de milhões com este desvario. Não se sabe se foram eles que produziram e espalharam o vírus, ou se apenas se limitaram a aproveitar a oportunidade para fomentar a neurose e estimular as despesas colossais já em curso. Mas que são os primeiros responsáveis pela histeria não sobram dúvidas.

Como é evidente, esta alegada pandemia não é mais do que obra dos movimentos e grupos de extrema-direita, dos nacionalistas, da supremacia branca e dos racistas de todas as comunhões, na tentativa de destruir as liberdades de deslocação, os fluxos de refugiados e emigrantes, a miscigenação das populações a e integração das minorias.

Não há dúvidas de que este fenómeno, se não foi causado, foi pelo menos aproveitado pelas forças liberais e ultraliberais, a começar pelos grupos privados de hospitais e medicamentos, com o objectivo de destruir os serviços nacionais de saúde e todos os serviços públicos de saúde, protecção e educação.

Tem sido uma verdadeira conspiração dos governos ocidentais que, aproveitando-se de um acidente sanitário chinês, fabricaram uma autêntica crise internacional e têm vindo a promover um pânico colectivo que não tem outro fim que não seja o de desviar as atenções das populações e da comunicação social para os graves problemas políticos, sociais e económicos dos respectivos países e dos sistemas democráticos aí vigentes.

A psicose colectiva e o pavor das multidões foram fenómenos induzidos pelo governo português, a fim de desviar a atenção do público e de não reflectir nos verdadeiros problemas do povo e dos trabalhadores.

Está claro que foram os sindicatos, designadamente os de funcionários públicos e de professores, os principais responsáveis pela neurose, com a intenção de beneficiar de umas semanas de precaução, mas, na verdade, ganhar umas férias pagas e pelo menos duplicar a duração das férias de Páscoa.

A paranóia persecutória está a ser alimentada pelo governo português que, não vendo como resolver os seus problemas de maioria parlamentar e de governabilidade, melhor não viu do que desencadear esta crise artificial com o objectivo de reforçar o seu poder e de reduzir o espaço de manobra dos seus adversários.

As farmácias, as drogarias e os supermercados, assim como as lojas dos chineses, têm alimentado o alarme, esvaziam artificialmente as prateleiras e colocam cartazes nas montras anunciando produtos esgotados, pois assim limpam stocks e vendem produtos fora de prazo.

As redes sociais e os órgãos de comunicação exclusivamente on-line decidiram demolir definitivamente os jornais ainda impressos em papel e, graças à sua superioridade de fornecimento de notícias ao minuto, torná-los simplesmente obsoletos.

Só não vê quem não quer!



* Victor Nogueira
Isto é humor negro? É um texto para acreditar e levar a sério? Quem sofre de iliteracia vais mesmo acreditar nesta amálgama? A sua publicação no inFaceLocked levaria ao seu imediato  banimento por violar os "misteriosos" "Padrões da Comunidade"?

sábado, 14 de março de 2020

Paulo Rodrigues Ferreira - Uma visão provocatória da identidade portuguesa

* Paulo Rodrigues Ferreira

É este o nosso mal, permanecermos encerrados numa bolha silenciosa que nos inspira a acreditar na fantasia de que em Portugal se produz a melhor comida, os melhores atletas, os melhores escritores...

14 mar 2020, 00:16
    
Em O Labirinto da Saudade (1978), obra fundamental para entender a cultura contemporânea portuguesa, Eduardo Lourenço identifica os portugueses como um povo passivo, letárgico, pouco original e avesso à audácia que, de maneira a fugir de um presente decadente, marcado por crises e catástrofes múltiplas, passa o tempo contemplando as caravelas dos séculos XV e XVI. O leitor de agora perguntar-se-á se o filósofo tem razão, se os portugueses de hoje, os tais da “geração mais bem preparada de sempre”, que trabalham na Europa e se adaptam e estudam e falam línguas, continuam cabisbaixos e em negação em relação a uma realidade que não lhes é generosa. Seremos ainda um povo que oscila entre negras depressões e exageradas euforias, entre complexos de inferioridade e esse “benfiquismo exarcebado” que, em fátuos momentos de glória, nos inspira a bradar que não há ninguém melhor do que nós?

Lendo Lourenço e outros intelectuais, escritores e poetas que meditaram sobre questões ligadas à identidade portuguesa (desde Oliveira Martins a Teixeira de Pascoaes, a lista é interminável), ficamos com a sensação de que os portugueses têm vivido fechados, obcecados consigo próprios, intrigados com a implacabilidade das crises e com a incapacidade revelada por sucessivos governantes de encontrar caminhos para a superação da tristeza e da saudade. Para quem vive fora de Portugal e assiste à distância às conquistas e desgraças dos lusitanos, não custa perceber que há muito sentido nestas descrições e que ainda hoje choramos com aquela canção melancólica e modorrenta chamada fado. Desde o porteiro do prédio à senhora Maria do terceiro esquerdo, ninguém hesita em bradar que “isto vai cada vez pior”, que lá fora (na Europa, na América), longe dos esquemas e das corrupções, é que se vive bem e em abundância. Em Portugal, diz a mesma senhora Maria, ressentida com a vida madrasta que levou, é só esquemas, manigâncias e favorecimentos, e quem quiser chegar longe tem de ser primo ou sobrinho de algum doutor. Porém, ao mesmo tempo que isto ocorre, coitado daquele que se atreva a criticar Portugal a um português: é imediatamente sacudido com hinos patrióticos e com referências aos excelsos séculos de história, aos versos de Fernando Pessoa, aos sermões de Padre António Vieira e aos feitos heroicos dos Descobrimentos.

Subscrevendo as ideias do referido filósofo português, diria que ter muitos séculos de história é algo que nos enche de orgulho e, ainda que apenas momentaneamente e devido às mais estranhas razões, nos faz esquecer as misérias do presente. Quando há uns anos Cristiano Ronaldo ergueu um troféu em Paris, após a selecção portuguesa de futebol ter vencido os franceses, não era um jogador quem ali estava, mas Vasco da Gama ensinando aos estrangeiros o significado de ser português. Quando Salvador Sobral ganhou o festival eurovisão da canção e foi recebido entre lágrimas e aplausos no aeroporto da Portela, quem ali estava era Camões, Cabral e todos os heróis pátrios condensados naquele D. Sebastião. Tudo isto quer dizer que tantas tristezas e cortes e austeridades transformam qualquer pequena vitória numa espécie de redescoberta do Quinto Império.

O que com este pequeno artigo pretendo afirmar é que o século XXI, a abertura de fronteiras e os avanços na escolarização não nos salvaram dessa tristeza aguda, desse problema de existir pobres, fatalistas, com breves relâmpagos de euforia. Neste império espiritual à beira-mar erguido ainda moram o atraso, o provincianismo, a inveja e os burocratas do romance de António Lobo Antunes que impedem que Luís de Camões retornado de África enterre o caixão do pai. O benfiquismo exacerbado de que fala Eduardo Lourenço é consequência de décadas de míngua e de medo e sobrevive à custa de optimistas discursos políticos que intentam perpetuar o marasmo. À sua maneira, cada português tem carregado o fardo dos Descobrimentos, tem carregado a histórica cruz de querer ser mundo sem conseguir ser europeu ou cosmopolita ou aberto ao mundo. Saímos de Portugal sem abandonar a aldeia, carregamos o soturno fado para Nova Iorque, comemos bacalhau e côdeas em Queens, seguimos dizendo que vai tudo mal, que antigamente é que era, e que se fossem todos como nós, melhor servidos estaríamos. É este o nosso mal, não conseguirmos ser quem deveríamos ser, não sabermos ser outros, permanecermos encerrados numa bolha silenciosa que nos inspira a acreditar na fantasia de que em Portugal se produz a melhor comida, os melhores atletas, os melhores escritores, os melhores tudo que o mundo alguma vez verá.

Professor na Universidade da Carolina do Norte-Chapel Hill

quarta-feira, 11 de março de 2020

Eugénio de Andrade - Havia uma palavra no escuro.

* Eugénio de Andrade

Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.

Do fundo do tempo,
martelava.
contra o muro.

Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.

terça-feira, 10 de março de 2020

José Craveirinha - Reza, Maria

* José Craveirinha
.
Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!
.
Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!
.
Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!
.
Crias morrem á míngua de pão
vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!
.
Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança
.
Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

Pedro Barroso - "Esperança"

* Pedro Barroso



Se quiseres partir amanhã
eu paro o mundo
com facilidade assim
com esta mão
e então descobriremos
o mais profundo fundo que há no mundo
que é no irmos fundo às coisas
que há razão
de verdades consumadas me consomem
de falácias bem montadas me alimentam
mas meu filho mora o reino do futuro
que é mais duro
e não vai ser com palavras
que o contentam

Se a morte lenta te rebenta sob a pele
a cada dia
e se no teu braço apenas sentes a força
de um cansaço organizado
mas mantens na tua fronte a dúvida
e o gosto pelo longe e a maresia
e se sentes no teu peito de criança
a alma de um sonho amordaçado
se quiseres partir amanhã
eu paro o mundo
com facilidade assim
com esta mão
e então descobriremos o mais profundo
fundo que há no mundo
que é no irmos fundo às coisas que há razão.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Zé Mulemba - Fula Maria

Uma mulher : "FULA MARIA " ,do poeta angolano , Zé Mulemba , pseudónimo de Alberto  Telésforo  Afonso (Luanda /1942 ).
Na singeleza do Amor ,na ternura, na simplicidade- sofrida do verso, a minha homenagem às mulheres do Mundo , começando ,òbviamente, pelas minhas ...
......................................................................................................
FULA MARIA

Fula Maria
Filha do Soba Sapalo
Da sanzala Camilunga ,
Nasceu,brincou,amou,
Junto à beira da estrada.

Zé Catraio
Satambinja da carrinha
Do siô Zé Míudo ,
Fazia adeus ao passar
Na sanzala Camilunga .

Fula Maria esperava
Sentada na árvore caída ,
Que a carrinha encarnada
Aparecesse lá na curva ,
Com Zé Catraio sentado
Em cima do saco de fuba .

E tanto tempo esperava ,
Dia e noite sem cansar
Que o tuku-tuku aparecia
Trazendo pó e barulho .

Fula Maria acenava ,
Fula Maria sorria .

E lá de cima emproado ,
Zé Catraio faz banga
Com sua boina bonita
E cambriquite coçado.
Fula Maria acenava
Fula Maria sorria .

E certo dia estreou ,
Vestido novo encarnado
Com sapato de fivela,
para ver Zé Catraio
Que nesse dia passava .

Mas seu coração bateu,
Quando Catraio não viu !
Satambinja era outro ,
Que p'ra ela nem olhou .

Fula Maria gemeu ,
Fula Maria chorou .

domingo, 8 de março de 2020

Pablo Neruda - Mulheres

* Pablo Neruda


Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.
Elas não levam "não" como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poder tê-los.
Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prêmios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversario ou um novo casamento.


Ary dos Santos - Vararam-te no corpo e não na força

* José Carlos Ary dos Santos


Vararam-te no corpo e não na força
e não importa o nome de quem eras
naquela tarde foste apenas corça
indefesa morrendo às mãos das feras.


Mas feras é demais. Apenas hienas
tão pútridas tão fétidas tão cães
que na sombra farejam as algemas
do nome agora morto que tu tens.


Morreste às mãos da tarde mas foi cedo.
Morreste porque não às mãos do medo
que a todos pôs calados e cativos.


Por essa tarde havemos de vingar-te
por essa morte havemos de cantar-te:
Para nós não há mortos. Só há vivos.


JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

sexta-feira, 6 de março de 2020

Manuel da Fonseca - Dona Abastança

* Manuel da Fonseca


«A caridade é amor»
Proclama dona Abastança
Esposa do comendador
Senhor da alta finança.

Família necessitada
A boa senhora acode
Pouco a uns a outros nada
«Dar a todos não se pode.»

Já se deixa ver
Que não pode ser
Quem
O que tem
Dá a pedir vem.

O bem da bolsa lhes sai
E sai caro fazer o bem
Ela dá ele subtrai
Fazem como lhes convém
Ela aos pobres dá uns cobres
Ele incansável lá vai
Com o que tira a quem não tem
Fazendo mais e mais pobres.

Já se deixa ver
Que não pode ser
Dar
Sem ter
E ter sem tirar.

Todo o que milhões furtou
Sempre ao bem-fazer foi dado
Pouco custa a quem roubou
Dar pouco a quem foi roubado.

Oh engano sempre novo
De tão estranha caridade
Feita com dinheiro do povo
Ao povo desta cidade.

terça-feira, 3 de março de 2020

Catarina Reis - Primeira carta de amor de Pessoa faz 100 anos





"A Ophelinha pode preferir quem quiser". Primeira carta de amor de Pessoa faz 100 anos

O poeta português escreveu a sua primeira carta de amor há um século. No destinatário, um nome: Ofélia Queiroz - ou, nas suas palavras, "Ophelina".

A vida amorosa de Fernando Pessoa é uma incógnita, além de Ofélia Queiroz, a namorada que manteve em 1920

01 Março 2020 — 19:08

"Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas". Quem o escreve é Álvaro Campos, o heterónimo do português Fernando Pessoa. E "se há amor", dizia, então "tem de ser". A primeira escrita pelo poeta foi a 1 de março de 1920, dirigida a "Ophelina", uma menina de 19 anos, Ofélia Queiroz, e celebra este domingo 100 anos de existência.

Apesar do diminutivo que a evoca inicialmente, é magoado, ofendido até, que Pessoa se dirige ao seu amor na primeira destas cartas. "Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de 'razões' tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu", lê-se. Falava de um outro "rapaz" na vida da sua Ofélia, pelo qual demonstra um forte ciúme, mas que diz aceitar, pelo amor que lhe guarda. "Como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelina pode preferir quem quiser", remata.

Os restantes versos do documento são um tratado de lições em que o poeta lembra, afinal, o que é amar.

Leia a carta na íntegra:

Ophelinha
Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de «razões» tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus que é preciso «entalar».
Porque não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu.
Eu-próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer cm causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim...
Aí fica o «documento escrito» que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugénio Silva.
1.3.1920
Fernando Pessoa

Pouco se sabe sobre a vida amorosa de Fernando Pessoa. Os seus textos são transparentes, os seus heterónimos bem definidos, com traços de fácil caracterização, mas aquilo que é Pessoa permanece uma incógnita, mesmo além da sua vida. A incerteza foi alimentando diversas teorias ao longo dos anos, com alguns biógrafos a caracterizá-lo como um homossexual reprimido Uma tese justificada, em parte, pelo heterónimo Álvaro Campos, que Pessoa imaginou como um homem homossexual, satírico e insatisfeito, lembra o El Mundo que neste domingo assinala o centenário da primeira carta de amor do escritor. Contudo, nada conseguiu provar a ligação que este facto teria com a vida do autor.

A única certeza dada por aqueles que se dedicaram a escrever sobre a vida de Pessoa é a namorada Ofélia Queiroz, sua colega de trabalho num escritório comercial em Lisboa. Ele 32 anos e ela com 19, separava-os 14 anos. O poeta apaixonou-se e, daí, seguiram-se várias cartas de amor. Cartas que a própria decidiu tornar públicas na década de 1970, quase 40 anos após a morte do poeta, em 1935.
Depois destas, seguiram-se outras, onde é possível decifrar a cumplicidade de ambos e como a mesma se deteriorou. "Meu bebé travesso", escrevia numa carta de 5 de abril de 1920. Lembra-a que sentia "a boca estranha por não beijar há tanto tempo". E evocava, no mesmo manuscrito: "Meu bebé, para sentar no colo! Meu bebé, para te mordiscar!". As cartas são uma viagem pelo que esta relação entre o poeta e a jovem adulta, se transformou com o decorrer do tempo, distanciando-os quase definitivamente em novembro deste ano.

Fernando Pessoa nunca casou, embora tenha tido pelo menos mais dois amores na sua vida antes de morrer, segundo os biógrafos. Tudo o mais continua ainda por descobrir.