zé casanova sobre 'cantata pranto e louvor'
edições avante!2009.
leiam de
uma só
vez.
e depois
quem ainda o não leu
corra a comprá-lo
e a lê-lo.
em setembro passam 35 anos!
do seu assassinato
.
«Cantata Pranto e Louvor - em memória de Casquinha e Caravela», do Filipe Chinita e do Manuel Gusmão, é um livro que tardava, e pela publicação do qual desde já agradeço aos autores.
Muitas vezes me perguntei por que é que os acontecimentos que inspiraram este poema, não inspiraram, antes, outros poetas.
Isto porque, a meu ver, o dia 27 de Setembro de 1979 – dia do assassinato de José Geraldo (Caravela) e de António Maria Casquinha – foi, porventura, o dia mais sombrio do pós-25 de Abril. Um dia e um crime
carregados de significado:
a lembrar-nos que o passado não tinha sido completamente afastado da
nossa vida e da nossa história colectiva;
a lembrar-nos que o latifúndio opressor e explorador, sustentáculo do
regime fascista, não só não estava definitivamente enterrado como não
desistia de regressar – e para esse regresso estava disposto a tudo, a matar, inclusive;
a lembrar-nos, ainda, que a contra-revolução de Abril trazia consigo, e
tinha como alimento essencial, pedaços desse passado fascista;
a lembrar-nos, por tudo isso, outros dias e outros crimes, dias e crimes
ocorridos neste mesmo Alentejo, e com os quais o fascismo procurou, em
vão, esmagar a serena coragem, a lúcida intervenção e a forte determinação de luta do proletariado rural do Alentejo – coragem, lucidez e determinação sustentadas por uma elevada consciência de classe e política. E partidária, também, porque falar da luta do povo alentejano é falar da história do PCP.
Catarina, a sua vida e o seu assassinato, foram cantados por dezenas
de poetas – mais de trinta, creio eu; outros acontecimentos do Alentejo
resistente e combativo, foram assinalados em romances e contos de alguns dos maiores nomes da nossa literatura.
Ora, tanto quanto sei, até agora apenas o José Gomes Ferreira e o Manuel Gusmão nos tinham falado deste dia 27 de Setembro de 1979 e deste crime que nos levou o José Geraldo (Caravela) e o António Maria Casquinha.
Por isso digo que este belo poema de Filipe Chinita e de Manuel Gusmão
nos fazia falta. Por isso saudei efusivamente o seu aparecimento: pela
sua qualidade poética e porque é um poema que faltava ao cancioneiro da
Revolução de Abril – desse que foi o momento mais luminoso da história
do nosso País, o mais avançado, o mais progressista, o mais justo, o mais
livre – e, portanto, o momento de maior modernidade da nossa história
colectiva.
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Uma Abertura, cinco partes e um Epílogo: assim os autores organizaram
e estruturaram a narrativa poética dos acontecimentos – acontecimentos
que nos são contados/cantados pelos assassinados – Caravela e Casquinha; pelo Coro – porque de uma tragédia se trata;
e por um Narrador – ora anónimo, ora aludindo ou tomando a voz de
poetas, escritores, artistas plásticos – o já referido José Gomes Ferreira,
Manuel da Fonseca, José Carlos Ary dos Santos, João Cabral de Melo
Neto, Chico Buarque de Holanda, Manuel Gusmão, José Saramago,
João Hogan. E Paul Vaillant- Couturier, que, muito a propósito e muito
oportunamente, é chamado a lembrar-nos que o comunismo é o futuro do
mundo – afirmação que pode parecer insólita neste tempo de capitalismo
dominante, mas que a história se encarregará de confirmar.
(Eu disse o Coro, mas deveria dizer os coros: são dois, de facto:
o Coro 1, Voz dos assassinados e dos seus irmãos de luta;
e o Coro 2, a outra Voz...)
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Na Abertura, Caravela e Casquinha apresentam-se ao Leitor – mortos,
assassinados, e à nossa «espera, à espera da verdade/à espera da
justiça».
E de pé. Pois, dizem-nos – e nós confirmamos, «foi de pé que morremos».
Como de pé viveram: Caravela, militante comunista e enfrentando o
fascismo com a dignidade dos homens dignos; Casquinha, jovem de 17
anos, dirigente da Juventude Comunista, e também construtor da Reforma
Agrária.
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Na Primeira Parte – «Setembro estava no fim» - o Narrador situa o crime
«nesta minha aldeia/vila do Escoural»;
sinaliza a hora do crime - «entre as 11 e as 11 e meia»;
e aponta as bestas assassinas: «vieram os bárbaros outra vez/sempre
estão aqui/parecem hibernar».
«Bárbaros»?: «piores que bárbaros/escondem a mão assassina/
escondem a boca/que ditou a ordem».
Ali em Montemor, os «bárbaros outra vez»: outra vez a violência, a
selvajaria, a morte - e não só ali, mas em toda a zona da Reforma Agrária, alvo da brutal ofensiva destruidora, iniciada pelo primeiro Governo PS/Mário Soares e prosseguida por todos os que lhe sucederam, até à destruição, num dos governos de Cavaco Silva, daquela que foi «a
mais bela conquista da Revolução de Abril». «Os bárbaros outra
vez», e outra vez o Alentejo a ferro e fogo, a repressão, as prisões, os
interrogatórios pidescos; os assassinatos.
«Os bárbaros» que, como os seus antepassados do tempo do
fascismo, «escondem a boca que ditou a ordem»...
Como é sabido, os assassinos e os responsáveis pelos assassinatos de
Caravela e Casquinha nunca foram conhecidos nem levados a julgamento - tal como acontecia no tempo do fascismo.
Com uma diferença: desta vez foi aberto o tradicional inquérito que, como
é já de tradição nestes casos, nos últimos 33 anos, foi cirurgicamente
arquivado...
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A Segunda Parte deste Poema fala-nos da Solidariedade – palavra-
chave da resistência, palavra-chave do proletariado rural do Alentejo e do
Ribatejo.
Toda a história da Reforma Agrária – desde os primórdios da luta por ela,
até à luta pela sua concretização e à luta pela sua defesa face à ofensiva
criminosa – é um acto de solidariedade, um imenso acto de solidariedade.
Pode dizer-se que a história da luta do povo alentejano é uma sucessão
infindável de actos de solidariedade: foram-no as lutas por melhores jornas e melhores condições de trabalho; e a épica luta vitoriosa pelas oito horas de trabalho; e a luta consciente contra o fascismo, pela liberdade, pela democracia, pelo socialismo.
Solidariedade foi a Reforma Agrária construída: a Reforma Agrária
que, acabando com a exploração do homem pelo homem no seu espaço
de intervenção, nos mostrou que o futuro é possível e nos mostrou um
pedacinho desse futuro: lá estavam as terras cultivadas como nunca
e a produzir como nunca; lá estava a justa repartição da riqueza
produzida; lá estavam os cuidados, o amor, a ternura, pelas crianças e
pelos idosos; lá estavam os direitos humanos respeitados e cumpridos
como nunca antes acontecera e nunca de então para cá voltou a
acontecer.
Continuando a falar da solidariedade: a presença de Caravela e de
Casquinha naquele lugar e naquele dia, é um acto de solidariedade - que
neste Poema nos é explicada pelos próprios. Dizem-nos eles que viajaram
da UCP Salvador Joaquim do Pomar para a Bento Gonçalves, «desta nossa
terra/a esta terra também nossa».
Porque, como sublinha, pertinente, o Coro 1, «nós somos iguais - a terra
toda/trabalhada é de quem a trabalha/a terra é nossa». E insiste o Coro
1, porque imperioso é insistir: «Por solidariedade vieram/entre herdades
e nomes/a acudir à sua gente/a clamar justiça»,
porque «roubar gado/espoliar da terra a cooperativa/queriam eles/a
força bruta e mandada/impondo como lei/os interesses dos agrários».
Belíssimas e certeiras palavras que, com rara beleza, nos dizem tudo o que sobre a matéria há a dizer.
Aqui, o Coro 1 explica ao Coro 2 a origem dos nomes dados às duas
cooperativas - Salvador Joaquim do Pomar, militante comunista preso de
1956 a 1961; e Bento Gonçalves, «nascido de meúdos/camponeses do
Norte», operário do Arsenal, dirigente comunista, «deixaram-no vocês
morrer no Tarrafal».
Por esta parte do Poema passa, também, essa questão maior que é a da
posse e do uso da terra – questão à qual os construtores da nossa Reforma Agrária responderam de forma criativa e singular - rejeitando a sua posse individual e reclamando-a para a trabalhar, aumentar a produção agrícola e desenvolver o País - como criativo e singular foi, aliás, todo o processo de construção da Reforma Agrária de Abril.
Mas – sublinha incisivamente o Narrador - o que, naquele dia 27 de
Setembro de 1979, acontecia na UCP Bento Gonçalves, «era uma história
repetida/Veio a guarda com a lei/no cano das carabinas»...
«Uma história repetida», de facto: Alfredo Lima, 1950, Alpiarça;
Catarina: 19 de Maio de 1954, Baleizão; José Adelino dos Santos, 1958,
Montemor…; Caravela e Casquinha: 27 de Setembro de 1979, Montemor.
O mesmo cenário: de um lado, o latifúndio sustentáculo do fascismo (com
a sua GNR) e, agora (sempre com a sua GNR), inimigo de Abril; do outro
lado, os que lutavam contra o fascismo e, agora, por Abril; de um lado, os
assassinos; do outro lado, os assassinados.
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A Terceira Parte é a morte de Caravela e Casquinha, «os que vieram por
solidariedade/clamando por justiça» - os que, por serem solidários e por
clamarem por justiça, foram assassinados.
Chamei há pouco àquele dia 27 de Setembro de 1979, o dia mais sombrio
do pós-25 de Abril – e creio que assim foi. Talvez porque o assassinato
de Caravela e Casquinha foi uma coisa do tempo passado, do tempo que
julgávamos ter erradicado definitivamente das nossas vidas e vivências,
e agora nos aparecia ali, igual ao que dele conhecíamos, carregado de
escuridão, de ódio e de morte.
E é bem verdade que, como nos diz o Coro 1, com a morte de Caravela
e Casquinha, «um pouco de nós/morreu com eles» - mas é verdade,
também, e isso é certamente o mais importante, que como nos diz o mesmo Coro, uns versos adiante, «um pouco deles/ficou vivo em nós».
Daí a importância e a força do compromisso assumido no Poema:
«Casquinha!Caravela!/ Vozes de luta hão-de semear/os vossos nomes
pelas ruas/dos povos deste Alentejo».
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Na Parte Quatro – «Ó Aflição e Raiva» - os assassinados contam-nos a
morte: o que sentiram quando as balas os atingiram, «aquele fogo frio ou/aquela faca de gelo», «o frio que queima/e a faca de fogo que rasga/
pelas costas até ao coração» - e «o negro/tudo ficou negro», «uma
nuvem negra/dos olhos até um ponto/cá dentro...», «Como se fosse tudo
num sonho». Depois «fechei-me como o quê?» – pergunta Caravela, e responde Casquinha: «como os bichos-de-conta/que vivos, vivíssimos/se enrolam sobre si mesmos/como se quisessem desaparecer/do mundo dos vivos».
E o Narrador coloca a pergunta crucial: «Porque são sempre os nossos/
que assim morrem?» - talvez, porque, como o mesmo Narrador nos
diz, os «nossos» são os portadores da esperança, dessa esperança que a
«violência cobarde e estúpida» não pode matar.
De facto, eles podem prender, e prendem, os homens; podem matar – e
matam – os homens. Mas não podem prender nem matar o ideal – e é essa a nossa força, e é essa a nossa esperança.
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«De Luto Desfilamos» na Quinta Parte do Poema: de luto estamos todos:
«a aldeia do Escoural», «Montemor», «A Reforma Agrária/nos
campos do Alentejo e/do Ribatejo» - e «trabalhadores do pais inteiro/
desfilam connosco», «somos muitos, muitos mil/os nossos passos têm
a cadência/da tristeza e da firmeza/e ouvem-se no silêncio». Por aqui
desfila «um rio de punhos erguidos/contra a morte», um «rio que
chegará/um dia/ao mar».
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E, como José Gomes Ferreira nos diz no Epílogo, «Quando os dois
camponeses desceram às covas/ante os punhos cerrados de todos nós/
chorei!».
Chorámos: os que lá estivemos e muitos que lá não estiveram.
E continuamos a chorar, hoje, 31 anos passados.
Mas chorámos de punhos cerrados – que é uma forma só nossa de chorar, que é um Pranto mas não é um lamento, antes é – voltamos à palavra... – um acto de solidariedade.
Como nos diz o Narrador – que somos nós - «neste dia ficou marcado/um
outro dia no futuro/nesse dia desfilaremos/sobre o chão da terra/enfim
devolvida nossa».
Que assim será, dizem-nos o Caravela e o Casquinha nas suas falas finais:
Caravela confiando-nos o seu «desejo mais fundo/Que da próxima seja
de vez/a terra a quem a trabalha/a terra será de quem a trabalha»;
Casquinha, o «menino-homem», intimando-nos a que não o deixemos
sozinho, a que nos lembremos dos bandidos, a que nos lembremos que
«o comunismo/é a juventude do mundo».
E nós não esqueceremos.
E este belo Poema do Filipe Chinita e do Manuel Gusmão é um precioso
contributo para que a nossa memória continue viva.
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zé casanova
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