* Fernando Alves
14 Fevereiro 2021 — 02:02
Um velho amigo que já cá não anda dizia dos mais entufados
interlocutores, quando punham o ar de quem engolira um garfo, que pareciam
"manequins da rua dos Fanqueiros".
Nesta sexta-feira, ao ler que a proprietária de uma
confeitaria da Corunha pediu, numa loja de roupas da vizinhança, manequins
emprestados e os sentou à mesa, os vultos reclinados sobre os pratos, as luzes
acesas e música nas colunas, chamando a atenção para os danos colaterais do
confinamento, desci a Rua dos Fanqueiros a ver as montras. E que vi
eu?
Três manequins negros em cada montra da Bruxelas.
Na Tavares&Tavares, vestindo batas de enfermagem, os manequins pediam
cuidados intensivos. Um homem de turbante azul permanecia imóvel no passeio,
apreciando torradeiras na longa montra da Pollux. Manequins em pijama
dormitavam na montra dos Armazéns Godinho. Outros, sem rosto, mas com casacos
de peles, prometiam uma soirée dançante na montra da Impactos Moda. Os azulejos
da Viúva Salles&Companhia desmaiavam perto da montra da Humana
Vintage, onde uma velha máquina de costura amparava um manequim decapitado. A
montra do Mundo dos Fatos era um mar de papéis anunciando "últimos
dias!". Mas, encostando a cabeça ao vidro sujo, víamos um chão de
destroços.
Há tempos, nas Caldas, e por certo em muitos outros lugares,
alguém teve a ideia de pôr gente na montra, em vez de manequins. O caso das
Caldas ocorreu em 10 a.C. (antes da Covid).
Dante Milano, tradutor de Baudelaire e amigo
de Drummond e de Manuel Bandeira, fez um conto intitulado O Manequim, inspirado no caso de um
tal Jaime Ovalle, seu companheiro de estúrdia nas noites do Rio. Quando
saía do trabalho, o dito Ovalle parava longas horas diante de uma
certa montra e ficava a contemplar um manequim pelo qual se apaixonou.
Penso num intrigante poema de João Cabral de Melo Neto:
"Tenho no meu quarto manequins corcundas/ Onde me reproduzo/ E me
contemplo em silêncio." E é como se visse Ovalle e o manequim
olhando-se, perdidos, por detrás das máscaras.
Há dias provou-se que a notícia de manequins deitados em camas de cuidados intensivos num hospital do interior era falsa. Mas ocorre perguntar: tal como há cemitérios de automóveis, haverá cemitérios de manequins, onde possamos velar os nossos mortos fantasmáticos? O passeio na manhã de sexta fez-me crer que sim.
Jornalista. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
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