* António Carlos Cortez
OPINIÃO
Em Portugal, país em que o livro é procuradíssimo, onde as livrarias estavam, como se lembram, a abarrotar de ávidos leitores, de bibliófilos e bibliómanos, este confinamento constitui um verdadeiro ataque.
3 de Fevereiro de 2021, 0:25
Se por acaso o que se projecta no
mundo do “novo normal” for um quotidiano totalmente rendido ao digital, vendendo-se
e comprando-se tudo através do online, então estamos no bom caminho, porquanto,
a reboque deste vírus, Portugal tomou já a dianteira ao considerar o livro um
bem não-essencial, privando, dessa forma, o acesso ao livro num tempo que
poderia levar à leitura de textos pouco concordantes com a lei e a ordem.
Tomando a dianteira, em Portugal há o inspirado plano de, proibindo a
comercialização deste bem não-essencial, condenar inúmeras profissões afins
ao livro a desaparecer. O futuro espera-nos, radioso! Uma sociedade nova emerge
dos escombros da sociedade velha: uma certa forma de estar, de viver e de ser;
forma essa que – meridional, latina, ou nórdica, alemã, ou asiática, russa,
seja o que for – é uma forma humana, social, comunitária, eis o que em Portugal
não veremos. Há que estar à frente do nosso tempo e as medidas contra o livro
são sintoma da sapiência de quem nos dirige. Para quê, pois, apostar na venda
de livros, seja nas livrarias, nos correios ou noutras superfícies, se o
confinamento nos obriga mesmo a confinar, para outra idade, a sensibilidade, o
entusiasmo de viver? Mais fácil será vencer o covid se, todos juntos na
depressão, na incultura, formos um corpo único de gente para quem tudo é igual
a nada e o nada o único absoluto. Feche-se, pois, a cultura e acabe-se de vez
com tudo quanto nos faça sentir e pensar – se se decapitar o país cura-se a dor
de cabeça.
Se o futuro que se está a
construir, à luz dum modelo socioeconómico em que o que vai imperar é o clean, o já-feito, o fast-food, o fast-book e o fast-living, o distanciamento entre as
pessoas, o associal, o homem-maquinal (logo, mecânico, mais insensível, mais
indiferente e mais dificilmente compassivo), então o encerramento das
actividades culturais faz todo o sentido. Rapidamente teremos uma sociedade
onde o grande desígnio das democracias — “Todos diferentes, todos iguais” —
atingirá um patamar novo de nobreza de espírito e de ideal republicano: “Todos
iguais, todos iguais”. Para tanto, esta pandemia exige medidas severas de
confinamento, protegendo-se a saúde das massas, protegendo-as, sobretudo, do
perigo que é frequentar espaços onde o vírus circula, predador. É o caso das
livrarias.
Em Portugal, país em que o livro
é procuradíssimo, onde as livrarias estavam, como se lembram, entre as
quintas-feiras e os domingos, a abarrotar de ávidos leitores, de bibliófilos e
bibliómanos, este confinamento constitui um verdadeiro ataque. Está em causa
fazer-se diluir um dos traços definidores do português: a sua estrutural
curiosidade para saber mais, para procurar o diferente, para cultivar as
letras, as artes; enfim, para “fazer civilização”. Com este confinamento
cultural, tão inteligentemente planeado, tão friamente pensado, impunha-se
fechar livrarias, pois claro! É pena, mas louvável, posto que é a nossa saúde
que se quer defender. Mas é pena porque, como todos o reconhecem, o português
necessita de leitura, não convive bem com a ausência da biblioteca e do café
com jornais. Não admite uma cidade sem lugares onde se pensa e sente.
Sem poder ler, discutir ideias,
como costuma fazer, o português sofre, e pergunta-se qual o sentido de haver
livrarias fechadas. Tudo ficava posto em causa se as livrarias estivessem
abertas? Claro que sim! Pelo menos para o Governo. Já para para a esmagadora
maioria dos portugueses não. Talvez porque as livrarias até se prepararam para
a pandemia, talvez porque o uso de máscara era obrigatório dentro das lojas,
talvez porque não se permitiam mais que x pessoas dentro desta ou daquela área comercial, talvez
porque se estava a conseguir equilibrar a venda online com vendas ao vivo e a
cores; e talvez por isso nos pareça, a nós, que gostamos de livrarias, que
fosse excesso de zelo fechar estes lugares onde há comércio e, ao mesmo tempo,
medidas de segurança.
É que a realidade era
indesmentível: os que ficavam fora das livrarias, quantas vezes às dezenas, às
centenas, não olhavam, com certa acrimónia, para os felizes leitores que, no refúgio
das livrarias, se pareciam esquecer do mundo? Suprema afronta! Em nome da
saúde, fechar as livrarias impôs-se, pois então! Somos um país com uma profunda
vivência cultural, com bom senso e bom gosto, povo dos mais eruditos da Europa,
filhos de Camões, de Pessoa, de Saramago! Isso vê-se pelas edições de
escritores de qualidade que sempre esgotam. Vê-se pela qualidade do nosso
jornalismo, pelos índices de literacia, pela qualidade geral dos nossos
deputados, pela argúcia e requinte dos debates políticos, pelas grelhas
televisivas, formadoras do povo. Fecham-se as livrarias, condena-se à penúria o
livreiro e o editor, o revisor, impede-se o leitor e demais agentes deste
circuito de trabalharem com lojas e editoras abertas, mas é em nome da saúde de
todos. E, não esquecemos: os dividendos, o lucro das livrarias e das editoras
atingidos nos últimos anos permite aguentar esta crise passageira.
Compreende-se perfeitamente. Para mais, num país como o nosso, com poder de
compra, não tarda as livrarias, repito, estarão pejadas de gente, comprando
alegremente os livros e os jornais, as revistas e os demais artigos que lhes
faltaram entre 2020 e 2021. Por agora, haja decoro: as livrarias constituíam um
dos pólos de contágio mais perigosos das nossas cidades e fechá-las, ver-se-á
em breve, foi absolutamente decisivo no combate das nossas vidas!
E o mesmo se diga para o teatro,
sempre com salas cheias, com bilhetes vendidos, repetindo-se, a cada temporada,
esta ou aquela peça, tal a demanda esfaimada dum público conhecedor dos grandes
dramaturgos nacionais e estrangeiros, dos textos essenciais da história do
teatro. Os teatros, pela mesma razão, por estarem sempre cheios, também tinham
de ser encerrados. E bem. Não fosse dar-se o caso de, depois da última peça n’A
Barraca, com plateia cheia, haver milhares de contágios!
O Governo fez bem, tinha de
encerrar estes espaços culturais, afinal tão perigosos para a saúde pública. No
mundo pós-covid que teremos, depois de dois anos em casa, com aulas online,
mais obesos, mais deprimidos, mais alienados, mais reféns da nova escravatura
digital; mais distantes uns dos outros, ainda haverá quem diga que essa
multidão de consumidores do objecto livro, e da leitura, em Portugal, tem de se
adaptar ao “novo normal” e – pasme-se! – deixar-se cair na indigência dos jogos
de computador, das séries televisivas, transformando-se na massa insensível à
liberdade e à cultura que, pelo menos até agora, nunca fomos. Esse futuro de
gente toda igual não é sonho das democracias? No limite, ao fecharem-se as
livrarias até se evita um outro terrível perigo: a leitura de livros
heterodoxos (dois exemplos: Frente
ao Contágio, de Paolo Giordano, ou esse suspeitíssimo livro, em tempo de um
por todos e todos por um: O Eterno
Retorno do Fascismo, de Rob Riemen). Pode-se sempre comprar no online, pois
é. E com que saber! E com que saber!! E sem dores de cabeça.
Poeta, crítico literário e
professor
https://www.publico.pt/2021/02/03/opiniao/opiniao/livrarias-fechar-1948924
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