sábado, 13 de fevereiro de 2021

Fernando Pessoa Além Deus

 * Fernando Pessoa

I

ABISMO

Olho o Tejo, e de tal arte

Que me esquece olhar olhando,

E súbito isto me bate

De encontro ao devaneando —

O que é ser-rio, e correr?

O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,

Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco —

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo — eu e o mundo em redor —

Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, ideia, alma de nome

A rnim, à terra e aos céus..

E súbito encontro Deus.


II / PASSOU


Passou, fora de Quando,

De Porquê, e de Passando...,

Turbilhão de Ignorado,

Sem ter turbilhonado...,


Vasto por fora do Vasto

Sem ser, que a si se assombra...


O Universo é o seu rasto...

Deus é a sua sombra...


III/ A VOZ DE DEUS


Brilha uma voz na noute...

De dentro de Fora ouvi-a...

Ó Universo, eu sou-te...

Oh, o horror da alegria

Deste pavor, do archote

Se apagar, que me guia!


Cinzas de idéia e de nome

Em mim, e a voz: Ó mundo,

Sermente em ti eu sou-me...

Mero eco de mim, me inundo

De ondas de negro lume

Em que para Deus me afundo.


IV / A QUEDA


Da minha idéia do mundo

Caí...

Vácuo além de profundo,

Sem ter Eu nem Ali...


Vácuo sem si-próprio, caos

De ser pensado como ser...

Escada absoluta sem degraus...

Visão que se não pode ver...


Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...

Clarão de Desconhecido...

Tudo tem outro sentido, ó alma,

Mesmo o ter-um-sentido...


V / BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO

(Entre a árvore e o vê-la)


Entre a árvore e o vê-la

Onde está o sonho?

Que arco da ponte mais vela

Deus?... E eu fico tristonho

Por não saber se a curva da ponte

É a curva do horizonte...


Entre o que vive e a vida

Pra que lado corre o rio?

Árvore de folhas vestida —

Entre isso e Árvore há fio?

Pombas voando — o pombal

Está-lhes sempre à direita, ou é real?


Deus é um grande Intervalo,

Mas entre quê e quê?...

Entre o que digo e o que calo

Existo? Quem é que me vê?

Erro-me... E o pombal elevado

Está em torno na pomba, ou de lado?


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

s.d.

«ALÉM-DEUS». Orpheu, nº 3. (Lisboa: 1916) (Preparação do texto, introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva.) Lisboa: Ática, 1984.

  - 36.

Poema nº 3 de Orpheu, que não chegou a ser publicado.


http://arquivopessoa.net/textos/

https://www.citador.pt/poemas/alemdeus-fernando-pessoa

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