* Fernando Pessoa
I
ABISMO
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A rnim, à terra e aos céus..
E súbito encontro Deus.
II / PASSOU
Passou, fora de Quando,
De Porquê, e de Passando...,
Turbilhão de Ignorado,
Sem ter turbilhonado...,
Vasto por fora do Vasto
Sem ser, que a si se assombra...
O Universo é o seu rasto...
Deus é a sua sombra...
III/ A VOZ DE DEUS
Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!
Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que para Deus me afundo.
IV / A QUEDA
Da minha idéia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
V / BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO
(Entre a árvore e o vê-la)
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida —
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando — o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Está em torno na pomba, ou de lado?
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
«ALÉM-DEUS». Orpheu, nº 3. (Lisboa: 1916) (Preparação do texto, introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva.) Lisboa: Ática, 1984.
- 36.Poema nº 3 de Orpheu, que não chegou a ser publicado.
http://arquivopessoa.net/textos/
https://www.citador.pt/poemas/alemdeus-fernando-pessoa
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