CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
11 de Agosto de 2023 (Público)
A relação entre
os media e a religião, ou antes, entre os media e
o catolicismo romano, é um ângulo de análise imperativo para perceber o
acontecimento da Jornada
Mundial da Juventude. Ali, até os confessionários foram concebidos e
“instalados” (no sentido em que se fala de uma instalação artística) para serem
telegénicos e resultarem numa “bela” exibição fotográfica e televisiva: eis o
eloquente emblema da negociação entre o público e o privado, em que o primeiro
goza de grandes vantagens. Esta mediatização, de preferência sob a forma da
televisualização, é um fenómeno aceite e promovido nas cerimónias cristãs, mas
não é uma prática judaica nem islâmica.
O filósofo
Jacques Derrida dedicou a este assunto uma longa intervenção, num colóquio em
Paris, em 1997, que teve por título “Surtout pas de journalistes!” (“Sobretudo
nada de jornalistas!). Tal injunção, imagina Derrida recorrendo a uma óbvia
anacronia, teria sido aquela que Deus, do Velho Testamento, inculcou
tacitamente em Abraão, quando o mandou subir ao monte onde deveria sacrificar
Isaac, o seu único filho. Para designar o fenómeno fundamentalmente cristão da
mundialização televisiva da religião, Derrida engendra um neologismo que evoca
a sede romana: “mundialatinização”. No entanto, esta “mundialatinização” está
sempre ligada, na sua produção, a fenómenos nacionais. Isso tornou-se muito
óbvio na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. Derrida sugere até que o tão
famoso “regresso do religioso” tem de ser avaliado e compreendido em função
destas manifestações eminentemente mediáticas.
Como não podia
deixar de ser, há um preço a pagar por isto, que a televisão, sobretudo, cobra
com juros altíssimos. Consistem esses custos no triunfo do Kitsch.
É conhecida uma frase do gramático Pierre Fontanier (1765-1844), no seu tratado
sobre as figuras do discurso, sobre os tropos, onde ele diz, ecoando uma
afirmação de Boileau, que se produzem mais figuras de estilo, num só dia, no
mercado parisiense de Les Halles, do que em toda a Eneida. Do
acontecimento religioso da semana passada podemos dizer o mesmo: produziu-se
mais Kitsch, em Lisboa, durante uma semana, do que em décadas de
produção literária e artística.
O Kitsch monumental
esteve bem patente nos palcos-altares e em toda a parafernália para ser
tele-vista. Quem conhece os gostos e os instrumentos do Kitsch ideológico,
encontrava ali material para frutuosas comparações. Mas se quisermos analisar o
acontecimento quanto ao fluxo de Kitsch produzido, temos de ir
além da concepção tradicional que vê esse conceito por um prisma meramente
estético que usamos para identificar os objectos de uma arte de massa,
estereotipada, de “mau gosto”. Devemos uma noção de Kitsch muito
mais alargada, que não se fica pelas propriedades formais de certos objectos,
ao escritor vienense Hermann
Broch, que foi ao ponto de elaborar filosoficamente o que seria o Kitsch como
“modo de vida”, abrindo assim essa noção ao registo mais vasto da atitude existencial
e a um tipo de actividades e experiências humanas. Aquela emoção estética a que
assistimos, a satisfação emocionada com que cada imagem, cada testemunho, cada
relato, cada comentário, cada citação, diziam uma única coisa, “vejam como é
belo e emocionante!”, é um gesto que consiste em olhar-se ao espelho do
embelezamento, fazendo surgir imediatamente a mentira do Kitsch.
Este “vejam
como é belo!” ou “vejam como nos satisfazemos de emoção pela emoção que nós
próprios produzimos” é uma ilustração perfeita do modo como Broch definiu
o Kitsch: a subversão da ética pelo efeito estético. Não é o
acontecimento em si que é Kitsch, não estou a sugerir que um
acontecimento religioso como aquele que teve lugar em Lisboa tem, em primeiro
lugar, um vínculo necessário com o Kitsch.
Kitsch é
a sua encenação, o modo como ele é produzido e reproduzido pelos media,
isto é, o discurso e as imagens de segundo grau que ele engendra e que, muito
embora fazendo parte da lógica da mediatização cristã, muito facilmente vão para
além dos seus próprios fins. Há momentos em que o Kitsch se
pode tornar uma coisa nauseabunda e é difícil imaginar que a própria hierarquia
da Igreja não o reconheça e não se sinta incomodada por ela. A vida Kitscht
visa fazer coincidir a esfera do ideal com a esfera da realidade, aquilo a que
Broch chamou “a ligação entre o céu e a terra”. Momentos desses, sobretudo nas
televisões, fluíram ao longo da semana numa torrente imparável. Foi um dilúvio.
Livro de
recitações
“Cada um
fala a sua língua, mas entendemo-nos todos porque é a linguagem do amor”
In Expresso online, 3/08/2023
Tomo, um pouco
ao acaso, este título de uma breve reportagem do Expresso onde
se citam as declarações de um “peregrino” a uma jornalista. Kundera, que seguiu
a lição de Hermann Broch, para a analisar o “Kitsch ideológico”
dos regimes totalitários, concluindo que no mundo idealizado do Kitsch “a merda não
existe”, deu este exemplo: uma criança a correr feliz atrás de uma bola num
prado florido não tem em si nada de Kitsch. O Kitsch nasce
a partir do momento em que alguém diz ou representa assim esse acontecimento:
“Vejam como é belo uma criança a correr atrás de uma bola num prado florido!”.
Este redobramento, que visa relatar uma verdade emocionante, através do
embelezamento, da mentira da linguagem emocional estereotipada e portanto
induzida, é aquele que podemos ver neste título (a não ser que ele tenha um
sentido irónico), que é apenas uma gota no vasto oceano do Kitsch produzido
ao longo de uma semana pela
https://www.publico.pt/2023/08/11/culturaipsilon/cronica/deus-ex-media-2059609
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