João Soares:
"Sócrates fez uma asneira porque quem foi líder de um partido, não se
demite dele"
Artigo originalmente publicado a 14 de abril de 2023. O DN, durante o mês de agosto, republica algumas entrevistas marcantes e mais lidas desde o verão de 2022..
João Pedro
Henriques e Pedro Cruz
15 Agosto 2023
Filho do
principal fundador do PS, João Soares, ex-deputado, ex-presidente da Câmara de
Lisboa e ex-ministro de Costa, diz que todos os ex-líderes devem ser convidados
para a festa dos 50 anos, inclusivamente Sócrates, apesar da
"asneira" de ter deixado o partido.
Onde é que
estava no dia 19 de abril de 1973? Mário Soares e a mulher Maria Barroso
estavam na Alemanha, na reunião da fundação do Partido Socialista. Maria
Barroso é, aliás, a única mulher presente na fotografia que se tornou icónica e
que marca o nascimento do partido. E os filhos, Isabel e João? João Soares
tinha 23 anos. Hoje, com 73 anos, afastado da política depois de ter sido
deputado, presidente da câmara de Lisboa e (muito esporadicamente) ministro (da
Cultura), João Soares dá nesta entrevista DN/TSF a sua visão do que foi a
fundação do PS.
Onde é que
estava no dia 19 de abril de 1973?
Eu e a minha
irmã estávamos em Paris, curiosamente, mas estávamos evidentemente a par do que
se ia passar na Alemanha. E até recebemos indicações para, no final dos
trabalhos, mandar um telegrama para o Porto, para os irmãos Cal Brandão ou para
o António Macedo, com um texto perfeitamente anódino e pré combinado que
sinalizaria que as coisas tinham corrido bem e que o desfecho tinha sido aquele
que todos eles esperávamos.
Como é que
foi a sua infância e juventude com um pai que ou estava preso ou exilado ou
deportado e uma mãe também ativa na oposição à ditadura?
Quando foi a
fundação do PS eu era já um jovem adulto e estava perfeitamente a par dos
combates e tinha participado, na medida do que me era possível, enquanto quadro
do movimento estudantil em Portugal, nas lutas contra a ditadura que tiveram um
papel também muito importante em tudo o que se passou nessa época. Muito antes,
evidentemente, quer a minha irmã quer eu tínhamos sido formados pela vida dos
meus pais e sobretudo pelos vários acontecimentos que marcaram a vida do meu
pai. O meu pai não é, nem de perto nem de longe, o homem com mais tempo de
prisão durante a ditadura, dos que combateram a ditadura. Nesse plano, os
comunistas portugueses, a começar por Álvaro Cunhal, lideram no ranking. Só
Cunhal tem de uma das vezes dez ou 11 anos de cadeia. E se não tivesse fugido
de Peniche [3 de janeiro de 1960] teria tido mais. O meu pai, no total, soma aí
quatro anos de cadeia, mas dispersas por 13 prisões, incluindo a deportação
para São Tomé [1968].
Mas
sentia-se particularmente observado, na escola ou na faculdade, por ser filho
de quem era?
Digamos que havia um tratamento que era um bocadinho diferenciado, no sentido
em que as autoridades tinham tendência a não tratar especialmente bem quem
tinha um palmarés daqueles, do ponto de vista familiar. Mas eu, por exemplo,
tive a sorte de nunca ter sido preso. Hoje considero que é uma lacuna grave no
meu percurso pessoal. Vamos ver se ainda se arranja uma prisãozita e tal, nos
tempos que correm nunca é de excluir uma hipótese dessas. Agora, ia dizer é
que, por exemplo, para a compreensão do que se passou com o meu pai e até para
a compreensão, em parte, das razões pelas quais o Partido Socialista foi
fundado nessa altura, era importante começar por falar das condições em que ele
decidiu partir para o exílio. Ele tinha sido deportado para São Tomé em 1968,
no último ano de poder do Salazar. Uma deportação completamente arbitrária,
porque aquilo tinha um dispositivo legal que passava por uma decisão de
Conselho de Ministros, mas Salazar há muito que não reunia o Conselho de
Ministros. Decidiu mandá-lo para São Tomé e não se sabia quanto tempo é que
aquilo ia durar, se não tem havido aquele incidente de mobiliário doméstico com
a cadeira no Forte de São João do Estoril, a ler o Diário de Notícias. Mas
recomendo lá irem, estão lá as cadeiras e tem quadros e outras coisas muito
interessantes.
Há uma
polémica sobre se caiu da cadeira ou se caiu da banheira.
Mas eu já ouvi
isso, o Fernando Dacosta defende aquelas teorias a partir das confidências que
lhe terão sido feitas pela dona Maria [governanta de Salazar] mas eu essas
intimidades nunca tive.
Mas falava
do contexto de criação do PS.
Estava a dizer
que ele é mandado para São Tomé fundamentalmente porque tinha sido o grande
campeão e denunciante do assassinato de Humberto Delgado, em 1965. Ele é
mandado com o pretexto do caso dos Ballet Rose [um escândalo sexual, com menores,
envolvendo personalidades da ditadura], mas não eram os Ballet Rose, não tinham
importância nenhuma. O que estava atravessado à PIDE e ao Salazar era o papel
que ele tinha tido como defensor da família de Humberto Delgado, no assassinato
de Humberto Delgado e da sua companheira, que é bom sempre não esquecer, uma
brasileira, a senhora Arajaryr Campos, que foi assassinada de uma forma ainda
mais fria do que ele, em Villanueva del Fresno, junto à nossa fronteira. Por um
homem, atenção, o chefe de brigada da PIDE, que conduziu a equipa que
assassinou Humberto Delgado e Arajaryr Campos, o inspetor Rosa Casaco, era
guarda-costas pessoal do Salazar e é o autor da maior parte das boas
fotografias do ditador no Forte de São João do Estoril, antes de cair da cadeira.
Atenção, porque isto revela uma intimidade grande com o Salazar, antes da
cadeira ter tido aquele papel histórico notável, que deve ser sempre
sublinhado, devia haver um Museu da Cadeira. Aquilo começou com uma prisão em
finais de 1967, passou o Natal e o Ano Novo na cadeia, eu já tinha 18 feitos
nessa altura, depois foi mandado para São Tomé e o Salazar, entretanto, cai da
cadeira em agosto, princípios de julho ou fins de agosto, não se sabe
exatamente a data, e depois acaba por ter de ser substituído por Américo Tomás.
A oposição
ao regime roubou-lhe os pais de alguma forma fortaleceu a relação familiar?
Fortaleceu
indiscutivelmente a relação familiar, aliás, é uma coisa que vem já da geração
anterior, porque o meu avô paterno também tinha estado na cadeia muitas vezes.
Uma das primeiras prisões do meu pai, nos anos 40, eu nasci em 49, foi o ano em
que eles se casaram, o meu pai e o meu avô estiveram presos, como muitos
outros, na mesma cela, no Aljube, que era uma prisão particularmente sórdida.
Agora, isto era tudo para dizer que, quando o Salazar cai da cadeira, o Marcelo
Caetano toma uma das medidas à Marcelo Caetano, em vez de dizer que tinha
terminado aquela prisão, não, diz que não tinha sido fixado limite, portanto,
fixou o limite num ano. Depois, lá acabou por deixar o meu pai vir uns dias
antes porque o meu avô fazia anos e já devia fazer 90 ou coisa assim, fazia
anos no dia 17 de novembro, e, portanto, eles deixaram que o meu pai
regressasse de São Tomé na véspera do meu avô fazer anos, portanto, o meu pai
acabou por não estar sequer lá um ano. Depois disso, foi aquilo que o Marcelo
Caetano tentou fazer, um início de abertura política, mas o Marcelo Caetano
era, do ponto de vista ideológico, na minha modesta opinião, pior que o
Salazar. O Salazar nunca foi, provavelmente, um fascista, no sentido de que
nunca vestiu nenhuma farda, nenhum uniforme, mas o Marcelo Caetano foi
Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, fez a saudação de braço estendido,
há muitas fotografias dele com o Salazar. E depois daquela formação jurídica
excessiva levou aquele tomasse aquela decisão. Vamos às eleições de 1969 e ele
[Mário Soares], a seguir às eleições de 1969, vai ao Brasil e vai aos Estados
Unidos e dá uma conferência de imprensa nos Estados Unidos que provocou uma
vaga contra ele porque criticou abertamente a guerra colonial. Nós dizemos-lhe,
com as dificuldades telefónicas que havia nessa altura, "atenção, é melhor
não vir já". Ele estava a trabalhar ativamente no "Portugal
Amordaçado" [uma radiografia do regime ditatorial], que tinha começado em
São Tomé. Foi para Roma e ficou em casa do Mário Ruivo, que estava na FAO.
Nessa altura, a minha irmã, o meu primo Eduardo e eu, vamos de carro ter com
ele a Itália para passar uns dias com ele e na perspetiva de que ele
eventualmente não voltaria tão depressa. Quando chegamos a Roma, recebemos a
notícia de que o meu avô paterno tinha morrido. O meu pai decide vir,
independentemente de saber se ia ser preso ou não e a minha irmã e eu viemos
com ele, mas estávamos convencidos de que ele ia ser preso quando chegássemos à
Portela. Mas eles deixaram passar e deixaram-no ir ao velório. Depois fomos
para Sintra, uma casa que eu agora ocupo, sempre com muita pidalhada à volta.
Depois há um tipo, o Pereira de Carvalho, que depois também foi julgado por
causa do assassinato de Delgado, um dos tipos mais inteligentes da PIDE, que
telefona ao meu pai a dizer "queria encontrar-me consigo num café". O
meu pai responde "não me encontro consigo em café nenhum, o senhor ou me
vem prender a casa ou me convoca para ir à PIDE". O outro responde
"então está convocado para vir à PIDE". Ele foi à PIDE e eles
disseram-lhe que tinha de decidir até ao fim da tarde se saía ou ficava. Se
ficasse ia preso; se saísse, podia sair pela fronteira que quisesse. Então, o
meu pai reuniu em casa um conjunto de pessoas, a minha irmã, eu e a minha mãe
estávamos lá, isto foi em 70.
E votaram?
Não, não
votámos.
E a decisão
qual foi?
A decisão foi
sair para o exílio. E sair para o exílio por duas razões muito simples. O Zenha
foi o único que teve algumas dúvidas. Estava o Zenha, estava o Raul Rego,
estava o Catanho de Menezes, estavam as pessoas de Lisboa mais próximas dele,
não estavam os do Porto, por razões logísticas, estava o Gustavo Soromenho.
E o João Soares,
o que é que disse ao seu pai nessa altura?
Quer a minha
irmã, quer eu, estivemos sempre pela decisão que ele tomasse, porque há ali uma
parte pessoal. E a minha mãe também, nós estávamos preparados para qualquer das
duas soluções. O Zenha foi o que disse "eh pá, se tu vais para o exílio
agora, nunca mais, nunca mais", porque ele de facto estava com um estatuto
que tinha ganho uma dimensão muito grande e isso também tem a ver com as
eleições de 1969. Ele decidiu sair por duas razões: sobretudo para acabar o
"Portugal Amordaçado", que acabou, e para fundar o Partido
Socialista.
Quando foi a
fundação do partido, a sua mãe votou contra. Houve conversas ou discussões por
causa disso?
Havia um grupo
de pessoas, onde o Zenha tinha um papel importante, que achavam que era cedo
para fundar o PS e que depois reconheceram que se tinham enganado, todos eles
reconheceram que se tinham enganado, mas a minha mãe levava o mandato de Lisboa
desse grupo. Se falar com o António Campos, que também teve um papel decisivo na
fundação do PS, mas não pôde ir à Alemanha porque tinha um familiar doente, ou
com as grandes figuras do Norte que já não estão connosco, como o António
Macedo ou como os dois irmãos Cal Brandão, esses eram todos favoráveis a que se
criasse o PS. E o meu pai tinha essa ideia que era importantíssima e foi, como
se viu. Se o Partido Socialista não tem sido criado em 1973, em abril, pouco
depois do Congresso Republicano, isso é uma coisa também curiosa. E já que
falamos de igualdade de género, a minha mãe é a única mulher que está a
participar no Congresso da fundação do Partido Socialista, na Alemanha, e
também tinha participado ativamente no plenário do Congresso da Oposição
Democrática, em Aveiro, a minha irmã e eu estivemos lá com ela. Ela era uma
mulher também muito corajosa, uma voz respeitada, as pessoas gostavam dela,
como aliás gostaram até ao fim da vida.
E quais eram
os valores do PS de 1973, quais são os valores fundacionais que o seu pai e os
restantes fundadores tinham na cabeça para o partido?
É a defesa dos
valores da social-democracia, sejamos sinceros, não há nenhuma dúvida sobre
isso. De uma forma geral, e já sei que a pergunta vai para aí daqui a pouco, é
a esses valores que o Partido Socialista se tem mantido sempre fiel. E agregou
gente que achava que aquilo era uma traição ou que era um desvio de direita,
porque houve sempre gente a defender, alguns que se consideram à esquerda, que
aquilo era um desvio de direita. Ora, se for ver, nós somos um caso muito
curioso, nós Portugal, porque somos dos poucos casos onde a corrente
social-democrata não teve peso durante a I República. O Partido Socialista
Português é fundado por José Fontana e pelos outros no final do século XIX
[1875], o Antero de Quental também, aquela gente toda reclama-se dos valores
socialistas mas nunca teve peso durante a I República. E depois houve uma
tentativa durante a ditadura, com o Ramada Curto, mas que não teve expressão ou
significado, do ponto de vista ideológico. O que é que aconteceu? Ao contrário
do que aconteceu em quase todos os países da Europa Ocidental e noutros países
do mundo, o Partido Comunista Português, que é criado a partir dos anos 20,
depois da Revolução Soviética, não nasceu de nenhuma cisão nas correntes
socialistas. Aqui, o PS foi fundado, de facto, em 1973, e sem nenhuma linha de
continuidade, nem com o Ramada Curto nem com o José Fontana. Já o movimento
operário português, era dominado pelas correntes anarcossindicalistas. Isto é,
a I República nasceu da ligação entre os republicanos mais à esquerda, desses é
que o PS é herdeiro, da corrente Afonso Costista, e da ligação entre eles com a
corrente anarcossindicalista. Até aos anos 40, até à reorganização do PCP, em
que o Álvaro Cunhal teve um papel muito importante, a marca anarcossindicalista
era muito mais importante do que a marca comunista. Todas as primeiras
revoluções e tentativas revolucionárias que se verificaram em Portugal a seguir
ao 28 de maio [de 1926], são dirigidas por republicanos radicais, militares,
civis e por anarcossindicalistas.
No pós-25 de
Abril teve militâncias, nomeadamente na Faculdade de Direito, no pós e no
antes, imediatamente antes, no MRPP.
Não, não, isso
é uma confusão, não é mito urbano, nem rural, é mentira, e não quero de todo
diminuir, mas nunca foi comunista, embora a minha mãe e o meu pai tenham sido
ambos comunistas. Tenho muitos amigos que foram comunistas, tenho alguns que
ainda são, mas nunca fui comunista, fui sempre um social-democrata.
Mas na
Faculdade de Direito, o pessoal do MRPP não era o seu grupo, digamos assim, o
grupo de amigos?
Não, tinha
muitos amigos que foram do MRPP, mas eu nunca pertenci ao MRPP. Aliás, presto a
justiça ao papel que o MRPP teve no combate contra a ditadura, que foi um papel
de uma grande coragem, mas aquilo tinha um lado um bocadinho, com todo o
respeito, um bocadinho psicótico. O grande núcleo da esquerda na Faculdade de
Direito era, de facto, constituído pelo MRPP. E eu tinha muito boas relações
com eles por uma razão muito simples: além de ter sido amigo do João Isidro,
também fui do José António Ribeiro Santos, que é o último assassinato da
polícia política, ainda há pouco tempo escrevi um texto sobre o Ribeiro Santos
para a revista da Associação 25 de Abril. Mas sabiam muito bem que eu não tinha
nada a ver com aquilo do ponto de vista ideológico. Aliás, achava que eles
faziam coisas de uma imensa coragem, mas as pessoas não entendem o que é que
eles defendiam, aquelas palavras de ordem eram completamente loucas.
Quando é que
se inscreveu no PS?
Inscrevi-me
pouco depois do 25 de Abril.
Mas teve
escolha? Isto é, perante os factos não pensou que talvez não quisesse ser
militante?
Eu tive o
sentimento de que era importante estar onde tinha de estar, porque era ali. O
meu pai teve, sobre a minha irmã, sobre mim e sobre a minha mãe também, uma
influência muitíssimo grande, porque é de facto uma personalidade notabilíssima
e foi um grande privilégio ser filho dele. Paguei por isso um preço também
sempre terrível, porque o PS tem uma tradição republicana e obviamente que eu
nunca tive espaço dentro do PS para coisa nenhuma.
E acha que é
pelo seu apelido?
O meu apelido,
teoricamente e para a generalidade da opinião pública que não conhece como é
que estas coisas funcionam, funcionava como uma vantagem, mas na prática era
uma desvantagem, era uma desvantagem imensa. Aliás, vou dizer-lhe uma coisa de
que tenho orgulho: enquanto o meu pai foi secretário-geral nunca me candidatei
a lugar nenhum dentro do PS.
Como é que
foi para si, politicamente, ser filho do dr. Soares e da drª. Maria Barroso?
Encarei sempre
com a maior das tranquilidades, mesmo nos inconvenientes que teve. Como lhe
estava a dizer, não ocupei nenhum lugar público, nem no partido nem fora do
partido, por indicação partidária, depois do 25 de Abril, até o meu pai deixar
de ser secretário-geral do PS, isto é, até ser eleito Presidente da República,
em 1986. E aí é que comecei a disputar lutas, coisas internas, candidatei-me à
Federação de Lisboa contra os constancistas, foi a corrente que ganhou o
partido a seguir à saída de Mário Soares, e depois comecei a ter outras
posições também. E tenho de reconhecer que para os tipos da minha geração, a
tal geração, a tal colheita, podia ter ocupado muitos lugares também, porque
apesar de tudo tinha ali alguns créditos.
Hoje volta a
falar muito do conceito da chamada ética republicana. Já falamos aqui muito de
república, ou da falta dela neste caso, em muitos casos. Esta ética
republicana, ou essa ética republicana, hoje é apenas um conceito ou está
deslavada?
É um valor, é
um valor. Você está a fazer perguntas e já está a avançar uma resposta, gostava
que eu dissesse que está a deslavar. Não, acho que a ética republicana existe e
é um valor muitíssimo importante. E até faço a justiça de reconhecer que
António Costa, o atual líder do PS, que não apoiei como candidato à liderança,
também é bom lembrar isso, é um homem que tem perfeita consciência desses
valores e não penso que seja complacente com nenhuma violação dos princípios da
ética republicana.
Mas o último
ano de governo não demonstra exatamente isso.
Há coisas que
têm ocorrido mal, que é uma coisa diferente.
É estranho
que, em maioria absoluta, o governo seja muito mais instável do que no tempo da
geringonça?
Pensei que queriam falar de coisas históricas. Mas é estranho, é lamentável, é
obviamente lamentável, mas não acho que haja ali nenhuma conspiração, as coisas
são às vezes diferentes do que queremos e isso também tem que ver com muitas
questões que têm de ser abordadas com outro tempo, com os quadros políticos e
com a natureza dos quadros políticos que vão aparecendo. Quer dizer, temos um
peso muito grande das pessoas que fizeram um percurso que tem a ver com
convicções, mas também tem a ver com uma espécie de carreiras nas juventudes
partidárias e isso às vezes representa também uma fragilidade.
O PS
afirmou-se, logo após 1974, liderado pelo seu pai, num combate duríssimo com o
o PCP. Combate esse que tem o seu clímax no 25 de novembro de 1975. Anos
depois, o filho, João Soares, é protagonista numa coligação do PS com o PCP na
Câmara de Lisboa. Como é que essa evolução foi discutida lá em casa? Será que o
dr. Soares achava que com o PCP não há conversas, não pode haver, ou percebeu
que a dinâmica do tempo se calhar tinha mudado?
O meu pai foi
sempre um homem que esteve muito a par da dinâmica do tempo e de uma grande
audácia. Em primeiro lugar, gostava de sublinhar aí o papel que teve uma outra
pessoa, o Salgado Zenha. Digamos que o PS teve muita gente que deu contributos
importantes e gente muito interessante, até gente no plano intelectual, mas
houve ali dois primus inter pares, o Soares e o Zenha. Até havia um slogan em
1975, "Soares e o Zenha, não há quem os detenha", e eles tinham sido
dois grandes quadros jovens do PCP. Portanto, o que ajudou muito nesse combate
[do PS] com o PCP, foi o facto deles os dois, Soares e Zenha, terem vindo dali.
O Manuel Alegre também veio, apareceu depois do 25 de Abril, aproxima-se do PS
e bem, e hoje é um grande quadro do PS, uma das grandes referências históricas,
e também tinha essa vantagem de ter conhecido aquilo tudo. E, portanto, sabia o
que aquilo era, sabia o que era o leste da Europa, e sabia como é que era, e
sabia as suas qualidades e as dificuldades que o doutor Cunhal tinha. Agora,
aquilo foi um combate, sejamos sinceros, aquilo foi um combate para a
liberdade, naquela altura, parecido com o combate anterior, só que não envolveu
prisões, mas esteve ali à beira.
E quando o
PS e o PCP se coligam na Câmara de Lisboa como é que isso é visto lá em casa?
Com a maior das
tranquilidades. Aquilo foi um exemplo nacional, que aliás ninguém reconheceu na
altura.
Onde é que
vai estar no próximo dia 19 de Abril de 2023?
Vou estar na
festa que vai ter lugar. Para já, vai haver uma homenagem aos meus pais, com o
António Costa e com o presidente do partido Carlos César, na sepultura deles,
no cemitério dos Prazeres. Eu e a minha irmã lá estaremos. À noite vai haver um
jantar, penso que com o chanceler alemão, que é um dirigente progressista atual
e acho que isso também tem muito a ver com uma coisa muito importante que se
fala pouco, que é o papel que o Willy Brandt teve no apoio aos dois partidos
ibéricos, ao PS e ao PSOE. Por alguma razão, o PS foi fundado na República
Federal da Alemanha, quando o Willy Brandt era chanceler. Ele teve um papel
muito importante em Portugal, veio cá apoiar os socialistas portugueses e teve
um papel também muito importante na escolha, em Espanha, da liderança do PSOE,
porque havia uma disputa interna. E, portanto, vem o chanceler da Alemanha, o
que é muito bonito.
E José
Sócrates devia ter sido convidado?
Acho que
todas as pessoas que ocuparam lugares de liderança no PS devem ser convidados.
Estou a dizer-lhe a si uma coisa que lhe disse a ele, e ele mantém comigo muito
boas relações pessoais, várias vezes tenho estado com ele na Ericeira. Ele fez
uma asneira e lembro-me que uma vez estava a jantar com o Renato Sampaio, de
quem também sou muito amigo, e disse-lhe "olha que fizeste uma grande
asneira, porque um tipo que foi líder de um partido, não se demite do
partido". O José Sócrates deve ser convidado, na minha modesta opinião,
para todas as iniciativas, como aliás o António José Seguro, também não pode
ser esquecido, e o Vítor Constâncio. No plano pessoal, não tenho nada contra o Vítor
Constâncio, acho só que ele foi um imenso erro de casting, mas isso não tem
importância.
Artigo
originalmente publicado no DN a 14 de abril de 2023.
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