sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Sophia de Mello Breyner - Pelo negro da terra e pelo branco do muro

* Sophia de Mello Breyner Andresen

 10 de Agosto de 2002, 0:00

Há uma beleza que nos é dada: beleza do mar, da luz, dos montes, dos animais, dos movimentos e das pessoas. Mas há também uma outra beleza que o homem tem o dever de criar: ao lado do negro da terra é o homem que constrói o muro branco onde a luz e o céu se desenham. A beleza não é um luxo para estetas, não é um ornamento da vida, um enfeite inútil, um capricho. A beleza é uma necessidade, um princípio de educação e de alegria. Diz S. Tomás de Aquino que a beleza é o esplendor da verdade. Pela qualidade e grau de beleza da obra que construímos se saberá se sim ou não vivemos com verdade e dignidade. A obra do homem é sempre um espelho onde a consciência se reconhece. Quando olhamos à nossa roda as aldeias, vilas e cidades de Portugal temos de constatar que quase tudo quanto se construiu nas últimas décadas é feio. Feio e - ai de nós! - para durar. Feias as obras públicas e feias as obras particulares. As excepções à regra de fealdade são raras. Costuma dizer-se que a nossa pobreza é a origem dos nossos males. Mas o que caracteriza grande parte da nossa arquitectura desta época é o novo-riquismo. Um novo-riquismo exibicionista - quase sempre sem funcionalidade e sempre sem cultura e sem sensibilidade. Isto é especialmente triste quando comparamos o presente com o passado: de facto olhando os antigos solares de pedra e cal vemos que a nossa arquitectura soube criar nobreza sem riqueza. Daí a pureza e a dignidade de tantas casas antigas. Agora não se trata evidentemente de copiar o passado: a arquitectura é uma arte e a arte é criação e não imitação. Continuar não é imitar e imitar é sempre ofender e trair aquilo que é imitado. Mas é necessário que exista aquela consciência do passado e do presente a que chamamos cultura. Somos um país antigo. Dizem-nos que somos um país pobre. É estranho que destas coordenadas resulte uma arquitectura de novos ricos. A construção da cidade moderna traz problemas difíceis de resolver: problemas de espaço e de circulação. Mas entre nós estes problemas só existem em Lisboa e no Porto. No resto do país os problemas são quase unicamente problemas de humanidade, de bom senso, e de bom gosto ou seja problemas de moral, de inteligência e de sensibilidade e cultura. A regra a seguir é esta: uma casa para todos e beleza para todos. E a beleza não é cara. É geralmente menos cara do que a fealdade que quase sempre se chama luxo, monumentalismo, pretensão. A beleza é simplicidade, verdade, proporção. Coisas que dependem muito mais da cultura e da dignidade do que do dinheiro. Penso neste momento especialmente na terra do Algarve, com suas praias, suas grutas, seus promontórios, seus muros brancos, sua luz claríssima. É preciso não destruir estas coisas. É preciso que aquilo que vai ser construído não destrua aquilo que existe.  arte é sempre a expressão duma relação do homem com o mundo que o rodeia. A arquitectura é especificamente a expressão duma relação justa com a paisagem e com o mundo social. Fora destas coordenadas só há má arquitectura. Afirma-se que é necessário desenvolver turisticamente o Algarve. Para isso será preciso construir. Mas é necessário que aqueles que vão construir amem o espaço, a luz e o próximo. Existem todas as condições para que se possa criar no Algarve uma boa arquitectura: ali temos uma paisagem e uma luz que pedem "arquitectura", ali encontramos um uso belo e tradicional do barro e da cal; ali temos uma arquitectura local lisa e pura como uma arquitectura moderna, uma arquitectura popular cujos temas o arquitecto poderá desenvolver duma forma mais técnica e mais culta: ali temos um clima que facilita a vida e propõe soluções de extrema simplicidade. Ali poderemos ter os materiais, as inovações, a técnica e a cultura do nosso tempo. Ali poderão trabalhar os arquitectos competentes que existem no nosso país. Mas é urgente evitar os seguintes perigos:- A incompetência- O saloísmo- As especulações com os terrenos- Os maus arquitectos- O falso tradicionalismo- A mania do luxo e da pompa- As obras de fachada Acima de tudo é preciso evitar a falta de amor. De todas as artes a arquitectura é simultaneamente a mais abstracta e a mais ligada à vida. Aqueles que não amam nem o espaço, nem a sombra, nem a luz, nem o cimento, nem a pedra, nem a cal, nem o próximo, não poderão criar boa arquitectura.

(Publicado em Janeiro de 1963, no nº 21 da "Távola Redonda")

https://www.publico.pt/2002/08/10/jornal/pelo-negro-da-terra-e-pelo-branco-do-muro-173555

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