sábado, 19 de agosto de 2023

Camo Afonso A franqueza de Eduardo Catroga e a pobreza dos portugueses

 OPINIÃO -, 

* Carmo Afonso
18 de Agosto de 2023

Ainda bem que Catroga teve um percurso de sucesso e que foi sempre bem remunerado. Terá sido excelente. Mas estranha-se a falta de noção

Li neste jornal uma entrevista a Eduardo Catroga feita pela jornalista Helena Pereira. Rui Gaudêncio foi o repórter fotográfico. Destaco nomes porque considero que foi um trabalho bem conduzido e bem conseguido.

A propósito do convite para ser ministro das Finanças Eduardo Catroga disse: “Quando essa oportunidade apareceu, estava com 50 anos, tinha autonomia financeira para fazer o sacrifício de ir para o Governo.” Mais adiante, ainda esclareceu que pode investir nessa experiência (de ser ministro das Finanças) porque “já tinha uma acumulação de capital privado” que lhe “permitia manter o nível de vida” que já tinha dado à sua família.

Eduardo Catroga não se coibiu de ser franco. Essa falha não lhe pode ser apontada. Mas na sua franqueza podemos observar que, em Portugal, existem dois mundos socioeconómicos separados por aquilo a que devemos chamar “um fosso”. A maioria dos portugueses considera o salário de um ministro um patamar de riqueza ao qual não pode aspirar. Não é só uma impressão. É absolutamente real e os números falam por si. Aproximadamente um milhão de trabalhadores portugueses ganha o salário mínimo nacional. Se aprofundarmos e detalharmos a informação disponível, temos que 66% dos trabalhadores ganham abaixo dos 1000 euros mensais e 27% ganham entre 1000 e 2499 euros. Apenas 4% ganham entre 2500 e 4999 euros. Acima dessa remuneração, estão apenas 0,7% dos trabalhadores.

Um ministro em Portugal ganha mais de 5000 euros mensais. Não estou a dizer que é muito e ainda menos que é demasiado. O que estou a dizer é que, no contexto socioeconómico nacional, um ministro ganha aquilo que apenas uma ínfima minoria dos portugueses ganha. A situação não era muito diferente no tempo em que Eduardo Catroga foi ministro.

O ex-ministro da Finanças revelou que só aceitou viver, durante um período da sua vida, com um salário, que é para a maioria dos portugueses altíssimo, porque tinha umas economias que lhe permitiram, e à sua família, não baixar o nível de vida nesse período.

Ainda bem que Catroga teve um percurso de sucesso e que foi sempre bem remunerado. Terá sido excelente. Mas estranha-se a falta de noção quando está a dar uma entrevista que vai ser lida pela generalidade dos portugueses. Estamos a falar de uma pessoa que desempenhou funções públicas importantes.

Um ex-ministro partilhou com os portugueses uma perspectiva da vida, que é a sua, que os coloca na cauda da pura insignificância. Aquilo que poderiam sonhar ganhar num mundo ideal corresponde ao que Catroga ganhou por ter aceitado fazer um sacrifício pessoal.

Eduardo Catroga não se distinguiu por ter combatido as desigualdades sociais e é certo que desempenhou funções em que poderia ter feito alguma diferença nessa área. Fez o oposto. Como ministro introduziu uma “moderação salarial” na função pública. O nome indica o que está em causa. Também baixou a TSU para as empresas e aumentou a taxa de IVA, prejudicando os que ganhavam menos. Destacou-se ainda a equilibrar as contas públicas, o que tem um conhecido impacto negativo nos rendimentos dos trabalhadores.

Dá tanta importância ao salário e ao dinheiro que, passados todos estes anos, ainda destacou ter feito um sacrifício financeiro para ser ministro. Mas conviveu bem com a imposição, aos portugueses, de apertarem o cinto até doer. Estamos a falar de portugueses que viviam numa situação infinitamente pior.
Não pretendo evidenciar falhas morais de Eduardo Catroga. O que tem aqui interesse, e digo interesse político, é que as desigualdades socioeconómicas em Portugal são gritantes e algumas das pessoas que integram a minoria privilegiada estão confortavelmente instaladas no seu privilégio sem ao menos acusar a consciência da gravidade política dessa situação. Reparem que injustiça social nunca foi o berço da paz.

Algumas das pessoas que integram a minoria privilegiada estão confortavelmente instaladas no seu privilégio sem ao menos acusar a consciência da gravidade política dessa situação

As pessoas costumam dizer que “quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão”. Nesta frase está implícito um profundo descrédito na ideia de que somos todos tratados como iguais. Na verdade, não somos e esta consciência de classe faz mesmo falta aos portugueses. O mar está muito bravo.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Advogada

https://www.publico.pt/2023/08/18/opiniao/opiniao/franqueza-eduardo-catroga-pobreza-portugueses-2060533 

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