sábado, 12 de agosto de 2023

António Rodrigues - É a dignidade, estúpido!

António Rodrigues

4 ESQUINAS -  

11 de Agosto de 2023 (Público)

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Quando pedimos trabalho, pedimos dignidade, porque o trabalho faz a dignidade da pessoa”, bispo Oscar Ojea, presidente da Conferência Episcopal Argentina

“Guerra aos pobres”

O Governo italiano, liderado pela pós-fascista Giorgia Meloni, avisou, a 31 de Julho, 169 mil agregados familiares que vão deixar de receber o equivalente italiano do rendimento social de inserção. Com uma simples mensagem do Instituto Nacional de Previdência Social italiano, enviada por telemóvel no fim de Julho, ficaram a saber que já não poder contar com os 780 euros mensais do “rendimento de cidadania”, atribuídos desde 2019 e destinados sobretudo a pessoas no desemprego.

O instituto garante na mensagem que o corte não é generalizado, distinguindo aquilo que são “as pessoas empregáveis e aquelas que o não são”, incluindo nesta última categoria as famílias com pessoas portadoras de deficiência, com menores a seu cargo ou de mais de 60 anos. Para estas haverá um subsídio de 500 euros mensais. Os outros passam a receber 350 euros e apenas durante um ano.

Num país onde não há salário mínimo, a mensagem do executivo é simples: o pobre que não quiser morrer de fome terá de aceitar qualquer tipo de emprego, por mais mal remunerado que este seja.

A oposição apelidou a medida do Governo italiano como “uma guerra aos pobres”.

“Esta decisão não irá fazer mais do que aumentar a pobreza e o desemprego em plena inflação”, dizia esta semana o economista Henri Sterdyniak ao jornal francês l’Humanité. É o “triunfo da ideologia neoliberal, com a ideia subjacente de que, se as pessoas são pobres, a culpa é delas.”

A medida do Governo, prometida na campanha eleitoral de Outubro e anunciada com simbolismo no Dia do Trabalhador, agregada com a promoção de contratos de curta duração, transforma-se num maná para as empresas que podem assim relativizar o valor do trabalho nos seus custos fixos, ao mesmo tempo que a precariedade dos trabalhadores lhes permite esmagar ainda mais o pagamento por esse trabalho.

O poderoso cobarde de Peshawar

Em Peshawar, no Leste do Paquistão, um líder político local galvanizava a multidão com um discurso ultraconservador, agressivo, desafiador. Estávamos a poucos dias da invasão do Afeganistão pelas forças aliadas com os Estados Unidos à cabeça, no Outono de 2001, em resposta ao ataque terrorista contra o World Trade Center e o Pentágono.

Quem o via de longe no seu estrado, entusiasmado com o seu radicalismo de apoio aos taliban e de ataque ao imperialismo corrupto, teria dele uma ideia de líder corajoso, disposto a encabeçar uma multidão contra o demónio ocidental com a faca entre os dentes.

Finda a manifestação, a polícia interveio. As pessoas dispersaram, os oradores dispersaram, a imprensa dispersou, até que um dos jornalistas se viu de repente perante um agente da autoridade brandindo com raiva o pingalim e pensou que iria sentir na pele os lanhos abertos por essa herança do Império Britânico. Só quando sentiu nas costas uma mão se apercebeu de que, atrás de si, chorando, dobrado de medo, balbuciando desculpas, estava o mesmo orador que, minutos, no contrapicado do palco, parecia um gigante vociferador.

Cada vez que se ouve a extrema-direita expelindo perdigotos contra os migrantes como os grandes causadores de todos os males do mundo, é preciso recordar a imagem do poderoso cobarde de Peshawar. Esta semana, veio-me à memória o episódio quando o vice-presidente do Partido Conservador britânico, Lee Anderson, usou linguagem colorida para dizer aos requerentes de asilo que se não gostam de ser metidos na “prisão flutuante” que o Governo de Rishi Sunak lhes arranjou, “they should fuck off back to France”.

Como escreve Andrew Stroehlein, director dos media europeus da Human Rights Watch, estamos perante “a mais preguiçosa forma de política”, praticada pelos “políticos sem escrúpulos” que estão sempre prontos a aproveitar-se da fragilidade alheia para ganho pessoal. Até porque “atacar os vulneráveis é simples; resolver problemas é difícil”.

Mãe migrante

A década de 1930 transformou a América. Foram anos duros. De pobreza extrema, fome, exploração. Foram os anos de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck (prémio Pulitzer em 1940), das famílias de agricultores que perderam as terras, por causa da seca e das tempestades de pó, e partiram em busca de trabalho à jorna nas terras dos outros.

Foi também a década do New Deal, de Roosevelt, ambicioso programa de projectos públicos e reformas legislativas destinadas a aquecer a economia americana depois do desastre da Grande Depressão. A agência encarregada de promover o programa, a Farm Security Administration, contratou na altura 15 fotógrafos de renome para documentar o êxodo dos agricultores em busca de trabalho nas plantações.

Entre eles estava Dorothea Lange, que já tinha fotografado as condições dos desempregados e sem-tecto da Califórnia. Do trabalho comissionado a Lange saiu uma das imagens mais icónicas dessa época e da história da fotografia, o retrato Mãe Migrante, de 1936. Uma das imagens da série que a fotógrafa fez com Florence Owens Thompson, num acampamento em Nipomo, Califórnia.

“Vi e aproximei-me de uma mãe faminta e desesperada, como se tivesse sido atraída por um íman. Não me lembro como lhe expliquei a minha presença ou a minha câmara, mas lembro-me de que não me fez qualquer pergunta”, contou, anos mais tarde, a fotógrafa, citada no site do MoMA.

Mãe Migrante e as cinco outras imagens que fez de Florence e dos filhos são parte importante da exposição que lhe é dedicada em Turim, Dorothea Lange. Racconti di Vita e Lavoro, em exibição no Camera – Centro Italiano para a Fotografia, até 8 de Outubro.

Um jornalista localizou a mulher 40 anos depois, a viver num parque de atrelados em Modesto, Califórnia. Sentia-se envergonhada por essa imagem que a transformara em ícone de uma época de desesperança. Os filhos dela tinham outra perspectiva, viam na imagem a dignidade de uma mulher em tempos de adversidade e angústia.

A angústia e o aviso

São Caetano é o padroeiro do pão e do trabalho. A cada 7 de Agosto, pobres e desempregados passam pelas igrejas para pedir ao santo que lhes traga emprego e comida. Em situações de profunda crise económica, como a que a Argentina hoje atravessa (a inflação chegou, em Junho, a 115,6%), as filas de crentes multiplicam-se.

O trabalho “não é um objecto de compra e venda, não é um objecto de consumo”, afirmava esta semana o presidente da Conferência Episcopal Argentina, Oscar Ojea, ao diário Página/12. “Quem não trabalha sente que sobra, que não vale nada; sente-se ferido na sua dignidade.”

Entre quem não tem emprego, quem é explorado no trabalho ou não consegue chegar ao fim do mês, a angústia generaliza-se. Com a existência cada vez mais fragilizada, o elo mais fraco no mercado laboral torna-se presa fácil na luz maximizada dos faróis empresariais: coelhos atordoados a que se pode oferecer até a ilusão de uma cenoura em troca de trabalho.

“Quando falamos de paz, falamos de justiça”, explicava o bispo. “Quando falamos do pão, falamos de um direito universal de todos os seres humanos.” E deixava o aviso: “Quando lutamos verdadeiramente para que todos possam ter trabalho e para que sejam respeitados todos os trabalhadores, mesmo aqueles que não podem viver na plenitude dos seus direitos”, estamos a trabalhar em prol da paz.

“Na verdade, quando pedimos ao santo do pão e do trabalho pão e trabalho, estamos a pedir paz”, porque a paz não é uma coisa abstracta, uma palavra com significado teórico sem realização física. “A paz constrói-se no concreto, no amor do concreto”, sublinhava o bispo. Não esqueçamos que 85% das pessoas que passam fome hoje no mundo vivem em países afectados por guerras e conflitos.

https://www.publico.pt/2023/08/11/mundo/cronica/dignidade-estupido-2059877


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