* Fernanda Câncio
15 Agosto 2023
Mais de um
século após a 1ª República e no ano em que finalmente se revelou a diabólica
dimensão dos crimes de abuso na Igreja Católica portuguesa, descobrimos que um
furor clerical tomou conta dos representantes do Estado e das autarquias, e que
ser anticlerical é descrito como ódio e fobia. Há coisas do demónio.
Achava que já
tinha escrito que chegasse a
propósito da Jornada Mundial da Juventude, mas a possessão beata dos
representantes do Estado e autarquias portuguesas não permite mudar de assunto.
Não bastou,
portanto, torrar dezenas de milhões de euros numa semana de propaganda religiosa
de uma igreja, nem vermos o primeiro-ministro a determinar, definitivo e
autocrático, como "absurdas essas polémicas" - as sobre os gastos -
assegurando de seguida que o tal retorno incrível que ia haver de todo esse
investimento é "imaterial" (em lugares no céu?). Não chegou termos a
conversão televisiva do presidente da Câmara de Lisboa em porta-cruzes. Não
chegou termos todos os canais de televisão trasladados em canção da boa-nova ou
lá como se chama aquilo. Não chegou sermos setenta vezes sete vezes
esbofeteados com a certificação de que como "80% do país é católico porque Censos" quem
não for católico ou quem, sendo-o, defenda a laicidade tem mais é de ficar bem
caladinho e perguntar se querem mais um café ou um copo de água ou umas dezenas
de milhões de euros, por obséquio.
Não: tínhamos
ainda de ver uma autarquia - a de Oeiras - mandar retirar, na véspera da chegada do papa, um cartaz
que, custeado por um crowdfunding de 300 cidadãos, lembrava e
honrava, à guisa do memorial prometido que não aconteceu, as 4800 vítimas
estimadas de abuso sexual na Igreja Católica portuguesa desde 1950. Tínhamos de
ver uma autarquia - a de Loures - "convidar
para a missa" os seus munícipes, como se uma missa, católica ou de
outro culto qualquer, fosse uma espécie de concerto do Tony Carreira ou dos
Xutos oferecido pelo município para alegrar os cidadãos. Tínhamos de ver um
autarca - Moedas, de novo - a anunciar que decidira nomear um equipamento
público, a ponte sobre o rio Trancão, "Cardeal Dom Manuel Clemente", calcando as regras
municipais para a toponímia que implicam não apenas votação camarária e
apreciação pela comissão criada para esse efeito como, por regra, só atribuir o
nome de quem tenha morrido há pelo menos cinco anos (isto para não falar
da genuflexão daquele "Dom"). E tínhamos ainda de ver a
conta Twitter oficial da Câmara de Lisboa a "ocultar" (censurar,
portanto) respostas a esse anúncio que se limitavam a reproduzir o cartaz com o
número de vítimas de abuso, chegando até a bloquear quem assim respondia. Uma
conta oficial de uma autarquia a tratar como difamação, insulto ou calúnia os
números da comissão nomeada pela própria Igreja Católica.
Tivemos pois em
poucos dias uma espécie de regressão acelerada a um tempo (o início do século
XX e depois, em não formal, todo o Estado Novo) em que Portugal tinha uma
religião oficial e um Código Penal que punia como crime de blasfémia qualquer
crítica a essa religião - uma regressão acelerada àquilo a que se dá o
nome de clericalismo como ideologia e prática política, com a defesa do
anticlericalismo a ser execrada como se de fobia antirreligiosa se tratasse.
É tanto mais
interessante assistir a este tipo de inversão do ónus da intolerância (como
se fossem os que defendem a laicidade a querer impor algo aos demais e não
exatamente o contrário), quando nem é preciso procurar muito para perceber
que o próprio papa - que tantos destes representantes eleitos,
católicos, agnósticos ou ateus, parecem venerar como santo -, tem um discurso
público de anticlericalismo. Incrível, não é? Oiçam lá: "O
clericalismo é uma perversão e é a raiz de muitos males na Igreja: devemos
humildemente pedir perdão por isto e acima de tudo criar as condições para que
não se repita."
Não é que
surpreenda descobrir que a maioria dos que se espumam contra o
"anticlericalismo" não sabem do que falam; como me dizia um destes
dias um ilustre socialista, "isto [e referia-se às aleivosias
estatais e autárquicas que descrevi acima] é uma mistura de analfabetismo e
oportunismo".
Demos assim por
assente que nada daquilo a que assistimos é digno de uma democracia em idade
madura (e de pessoas adultas e sérias em geral), e passemos a outro assunto,
ainda que continuando no mesmo. A saber: que raio de coerência tem um
papa que se pronuncia tão veementemente contra o clericalismo mas acha normal
que num país laico como Portugal, onde tanto falta para os que mais precisam,
se gastem dezenas de milhões de euros numa celebração propagandística da sua
igreja, em vez de ser esta, que tanta riqueza ostenta e acumula, a pagar a
festa?
Nenhuma
coerência, não é? A mesma que tem o papa cujo governo desde 2013 assinou várias concordatas com países
paupérrimos como Timor-Leste, República Centro-Africana e Burquina Faso, nas
quais se estipula que os respetivos estados têm financiar a Igreja Católica
local e que esta não pode ser demandada nos casos em que seus funcionários
sejam civil ou criminalmente condenados. O papa que há 10 anos garante
"tolerância zero" para os abusadores de crianças mas cujos diplomatas
andam zelosamente a certificar que não se pagam compensações às vítimas
e, denunciam
relatores de direitos humanos da ONU, a fazer lobby pelo mundo para que não
se alarguem os prazos de prescrição dos crimes sexuais.
É bonito. Tão
lindo - ou Linda, por tão à moda do bispo do Porto - como descobrir o que disse Francisco no voo de Lisboa para Roma, em
resposta à pergunta do Observador sobre o relatório da comissão que investigou os abusos em
Portugal.
"O
processo [na igreja portuguesa] está andando bem, estou informado de como estão
as coisas. As notícias podem ter ampliado a situação, mas as coisas
estão andando bem a esse respeito. (...) Os números, às vezes, se
revelam exagerados, um pouco pelos comentários que sempre gostamos de fazer (...). Na
Igreja se seguia mais ou menos a mesma conduta que se segue nas famílias e nos
bairros... se encobre. Pensemos que 42 % dos abusos acontecem nas famílias ou
nos bairros. Ainda devemos amadurecer e ajudar a descobrir essas coisas.
(...) Existem também outros tipos de abuso que clamam aos céus: o abuso do
trabalho infantil, o abuso do trabalho com crianças; o abuso das mulheres,
certo? (...) Existe uma cultura do abuso que a humanidade deve rever e
converter."
Impossível não
notar a semelhança deste discurso com o que no relatório da comissão é qualificado de "resposta clericalista" de bispos
nacionais: "Nota-se por vezes a relativização do problema dos abusos
sexuais na Igreja Católica portuguesa. Sai-se do que está
verdadeiramente em jogo para apontar para temas laterais. (...) Desvia-se a
questão para outra, revelando um papel defensivo: "E o abuso sexual na
família?! Porque não se fala nisso?!" Surgem, também, discursos mais
projetivos que responsabilizam o declínio moral das sociedades contemporâneas
por estes comportamentos: "Problemas de fundo..." A
irritação com "exageros", "comentários" e a visibilidade
pública da comissão também lá está: "O silêncio devia ser a base
do vosso trabalho. (...) É como se fossem pregoeiros na praça pública."
É tentador - e
dá jeito, para poder dizer "mas os bispos não fazem o que o papa
quer" - acreditar que há um santo (pouco milagreiro) no meio disto tudo.
Mas não. "Tem havido muito barulho e muitos pedidos de desculpas.
(...) Só que na verdade isso é apenas para parecer que alguma coisa está a
mudar. (...) Acho que o papa Francisco não fez nenhuma ação significativa e não
compreende o problema", disse em fevereiro à Sábado Michael
Resende, um dos jornalistas autores da investigação de abuso sexual na diocese de Boston, que em
2002 demonstrou um padrão de encobrimento e propiciação de crimes horrendos que
todas as investigações desde então corroboraram. "Isto resume-se a
poder e dinheiro e é por isso que nada muda", conclui Resende. Poder e
dinheiro, ora nem mais. O demónio (o clericalismo) não dorme.
https://www.dn.pt/opiniao/clericalismo-e-anticlericalismo-uma-introducao-16860000.html
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