quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Rachel Corrie

24.10.23 | Manuel

Discurso escrito pela família de Rachel Corrie e lido no dia 12 de Abril, 2003, em numerosas realizações levadas a cabo em todo o mundo, em memória desta lutadora da paz.

Em 16 de Março, a nossa filha e irmã Rachel Corrie foi morta por um bulldozer militar israelita, quando tentava impedir a demolição de uma casa palestiniana na Faixa de Gaza. Rachel escolheu ir para Rafah, uma cidade a sul da Faixa de Gaza, porque acreditava que o mundo tinha abandonado este lugar. Durante a sua permanência, Rachel tornou-se nos nossos olhos e ouvidos, como nos disse sobre os tanques e bulldozers que passavam, sobre as casas com os seus buracos nas paredes, e da sua multiplicação rápida, sobre as torres do exército israelita com atiradores perscrutando ao longo do horizonte, sobre os helicópteros, e os seus zumbidos invisíveis sobrevoando a cidade durante horas e horas, sobre os poços, as estufas e os olivais destruídos, sobre o muro gigantesco de metal, em construção em torno de Gaza.

Ela disse-nos da ajuda que recebeu de um soldado israelita, que lhe enviou por e-mail frases em hebreu, para usar quando confrontada com soldados israelitas dos tanques e dos bulldozers. Ela falou-nos também de Ali, o rapaz palestiniano de dezoito anos, abatido dois dias antes da sua chegada, dos grandes grupos de homens palestinianos capturados e retidos durante todo o tempo, dos estudantes palestinianos e trabalhadores que não podem ir para a universidade ou para os seus empregos, porque os pontos de controlo se encontram fechados, dos trabalhadores municipais palestinianos da água, enfurecidos enquanto tentam fazer as reparações. Ela disse-nos, também, do dormir no chão e do compartilhar de um cobertor com uma família de cinco pessoas, de ajudar o jovem Nidal, que, com o seu inglês, a ajudou no seu árabe, das famílias palestinianas que lhe deram as suas limonadas para curar a gripe. Ela escreveu-nos: “Eu descobri um grau de força e de capacidade básicas de humanos permanecerem humanos em circunstâncias extremas. Penso que a palavra é dignidade.”

Rachel tinha sonhos. Ela acreditava que a sua cidade natal de Olympia, Washington, poderia irmanar-se com a cidade irmã de Rafah. Ela visionou trocas de e-mails entre crianças das duas cidades. Ela escreveu: “Muitos palestinianos querem que as suas vozes sejam ouvidas e penso que precisamos de usar alguns dos nossos privilégios, como internacionais, para fazer com que as suas vozes sejam ouvidas directamente nos Estados Unidos, em vez do filtro de internacionais bem-intencionados, como eu”. Rachel acreditava que poderia ver um estado palestiniano ou um estado israelo-palestiniano democrático durante a sua vida. Ela escreveu: “penso que a liberdade para a Palestina poderia ser uma fonte incrível de esperança para os povos em luta de todo o mundo”. Rachel alinhava com activistas pela paz palestinianos não-violentos, com activistas pela paz israelitas, também não-violentos, e com todos os activistas internacionais a trabalharem corajosamente para fazer com que todos os seus sonhos se tornem realidade.

Ela perdeu a sua vida naquele esforço pela paz, quando foi esmagada por um bulldozer israelita, há quatro semanas atrás. Isto agora leva-nos, a cada um de nós, a erguermo-nos com a mesma convicção e coragem e, dos nossos púlpitos, dos nossos pódios e das nossas ruas, através das nossas cartas para o Congresso, para a secretaria de Estado e Presidente, gritarmos juntamente com Rachel: “Isto é para parar! É uma boa ideia para nós todos, abandonar tudo e devotar todas as nossas vidas para fazer parar isto. Não penso em extremismos para fazer algo mais. Eu até quero na verdade dançar para Pat Benetar e ter namorados e ser cómica para os meus companheiros. Mas eu também quero que isto pare!

 www.palsolodarity.org

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BIOGRAFIA

Rachel Corrie era uma jovem activista cuja vida, aos 23 anos, terminou abruptamente a 16 de Março de 2003, enquanto trabalhava como manifestante na Faixa de Gaza. Ela cresceu em Olympia, Washington, estudou na Capital High School e depois no Evergreen State College. Enquanto estava na faculdade, Corrie juntou-se ao Movimento Olympia pela Justiça e Paz e, mais tarde, ao Movimento de Solidariedade Internacional, ou ISM.

O ISM, fundado em 2001, procura pessoas em todo o mundo para ajudar nos seus protestos não violentos contra os militares israelitas na Cisjordânia. A organização procura pressionar Israel e a sua Força de Defesa Israelense (FDI) a acabar com a ocupação de terras palestinas, usando uma série de táticas de resistência não violentas, como violar o toque de recolher israelense imposto em áreas palestinas, remover bloqueios de estradas colocados pelas FDI para isolar uma aldeia de outro, e bloqueando tanques militares e escavadeiras.

Rachel Corrie foi para Rafah, na Faixa de Gaza, em Janeiro de 2003 e recebeu dois dias de treino de resistência não violenta para ajudar nas actividades do ISM. Ela ficou horrorizada com a destruição que encontrou lá. Casas foram destruídas e pessoas detidas e mortas diariamente. Rachel registrou o que observou e sentiu em cartas e e-mails para sua família. Num e-mail, ela escreveu: “Agora, o exército israelita escavou a estrada para Gaza e ambos os principais pontos de controlo estão fechados. Isto significa que os palestinianos que queiram inscrever-se para o próximo trimestre na universidade não podem. As pessoas não conseguem chegar aos seus empregos e aqueles que estão presos do outro lado não conseguem voltar para casa; e os internacionais, que têm uma reunião amanhã na Cisjordânia, não conseguirão.”

Em outro e-mail, Corrie escreveu: “Sinto muito mal do estômago por ser mimada o tempo todo, muito docemente, por pessoas que estão enfrentando a desgraça… Honestamente, muitas vezes a pura bondade das pessoas aqui, juntamente com a evidência esmagadora da destruição intencional de suas vidas, faz com que isso pareça irreal para mim.”

Os esforços de Rachel Corrie para ajudar o movimento de resistência custaram-lhe a vida em 16 de março de 2003. Ela se colocou entre uma escavadeira Caterpillar e uma casa local, tentando impedir que as FDI a demolissem. Ela foi atropelada duas vezes pelo veículo e morreu.

Após a sua morte, a Fundação Rachel Corrie para a Paz e Justiça foi fundada para “apoiar programas que promovam conexões entre as pessoas, que construam a compreensão, o respeito e a apreciação pelas diferenças, e que promovam a cooperação dentro e entre as comunidades locais e globais”. O ator Alan Rickman e a escritora Katherine Viner montaram uma peça baseada nas cartas, diários e e-mails de Corrie chamada “Meu nome é Rachel Corrie”. Foi exibido em Londres em 2005 e, após um adiamento inicial nos Estados Unidos, teve uma exibição limitada na Off-Broadway em Nova York.

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rachelcorriefoundation

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CARTA DA PALESTINA

Uma das cartas de Rachel, “Carta da Palestina” (7 de fevereiro de 2003), é lida abaixo por sua mãe, Cindy Corrie.

Rachel Corrie: “Carta da Palestina” (2003)

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https://temposdecolera.blogs.sapo.pt/rachel-corrie-127969? 

Declaração de António Guterres na ONU, 24.10.2023


«A situação no Oriente Médio está a ficar mais terrível a cada hora.

A guerra em Gaza está a assolar-se e corre o risco de espiral em toda a região.

Divisões são sociedades fragmentadas. Tensões ameaçam ferver.

Num momento crucial como este, é vital que fique claro sobre os princípios — a começar pelo princípio fundamental de respeitar e proteger os civis.

Condenei inequivocamente os horrorosos e sem precedentes actos de terror do Hamas em Israel de 7 de Outubro.

Nada pode justificar o assassinato deliberado, ferimentos e sequestros de civis - ou o lançamento de foguetes contra alvos civis.

Todos os reféns devem ser tratados humanamente e libertados imediatamente e sem condições. Noto respeitosamente a presença entre nós de membros das suas famílias.

É importante também reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo.

O povo palestino foi submetido a 56 anos de ocupação sufocante.

Eles viram as suas terras constantemente devoradas por colonatos e atormentadas pela violência; a sua economia sufocada; o seu povo deslocado e as suas casas demolidas. As suas esperanças de uma solução política para a sua situação têm desaparecido.

Mas as queixas do povo palestiniano não podem justificar os terríveis ataques do Hamas. E esses ataques terríveis não podem justificar o castigo colectivo do povo palestiniano.

Até a guerra tem regras.

Temos de exigir que todas as partes cumpram e respeitem as suas obrigações ao abrigo do direito humanitário internacional; tenham cuidado constante na condução de operações militares para poupar civis; e respeitem e protejam os hospitais e respeitem a inviolabilidade das instalações da ONU que hoje abrigam mais de 600.000 palestinianos.

O bombardeamento implacável de Gaza pelas forças israelitas, o nível de vítimas civis e a destruição por grosso de bairros continuam a aumentar e são profundamente alarmantes.

Choro e honro as dezenas de colegas da ONU que trabalharam para a UNRWA — infelizmente, pelo menos 35 e a contar — mortos no bombardeamento de Gaza nas últimas duas semanas.

Devo às suas famílias a minha condenação destes e muitos outros assassinatos semelhantes.

A proteção de civis é primordial em qualquer conflito armado.

Proteger civis nunca significa usá-los como escudos humanos.

Proteger civis não significa ordenar que mais de um milhão de pessoas evacuem para o sul, onde não há abrigo, nem comida, nem água, nem remédios e nem combustível, e depois continuar a bombardear o próprio sul. Estou profundamente preocupado com as claras violações do direito humanitário internacional a que estamos a assistir em Gaza.

Deixe-me ser claro: nenhuma parte num conflito armado está acima do direito humanitário internacional. Felizmente, alguma ajuda humanitária está finalmente a entrar em Gaza.

Mas é uma gota de ajuda num oceano de necessidade. Além disso, os nossos abastecimentos de combustível da ONU em Gaza esgotarão numa questão de dias. Isso seria outro desastre.

Sem combustível, a ajuda não pode ser entregue, os hospitais não terão energia, e a água potável não pode ser purificada ou mesmo bombeada.

O povo de Gaza precisa de uma prestação contínua de ajuda a um nível que corresponda às enormes necessidades. Essa ajuda deve ser prestada sem restrições.

Saúdo os nossos colegas da ONU e parceiros humanitários em Gaza a trabalhar em condições perigosas e a arriscar as suas vidas para prestar ajuda àqueles que precisam. Eles são uma inspiração.

Para aliviar o sofrimento épico, tornar a entrega da ajuda mais fácil e mais segura e facilitar a libertação de reféns, reitero o meu apelo a um cessar-fogo humanitário imediato.

Mesmo neste momento de perigo grave e imediato, não podemos perder de vista a única base realista para uma verdadeira paz e estabilidade: uma solução de dois Estados.

Os Israelitas devem ver as suas necessidades legítimas de segurança materializadas, e os Palestinianos devem ver as suas aspirações legítimas para um Estado independente realizadas, em consonância com as resoluções das Nações Unidas, o direito internacional e os acordos anteriores. Finalmente, temos de ser claros quanto ao princípio da defesa da dignidade humana.

Polarização e desumanização estão sendo alimentadas por um tsunami de desinformação.

Temos de enfrentar as forças do anti-semitismo, fanatismo anti-muçulmano e todas as formas de ódio. Hoje é o Dia das Nações Unidas, completando 78 anos desde que a Carta da ONU entrou em vigor.

Essa Carta reflecte o nosso compromisso comum de promover a paz, o desenvolvimento sustentável e os direitos humanos.

Neste Dia da ONU, nesta hora crítica, apelo a todos para que se retirem da beira antes que a violência ceife ainda mais vidas e se espalhe ainda mais.

Muito obrigado»

(Tradução publicada por Alexandra Lucas Coelho no Facebook. Texto em inglês AQUI.

https://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2023/10/declaracao-de-antonio-guterres-na-onu.html

sábado, 21 de outubro de 2023

Relatora da ONU para a Palestina: “A operação militar viola os princípios da distinção, da precaução e da proporcionalidade”

GUERRA ISRAEL-HAMAS  18 OUTUBRO 2023

Relatora da ONU para a Palestina: “A operação militar viola os princípios da distinção, da precaução e da proporcionalidade”

Muito crítica do que crê ser benevolência excessiva da comunidade internacional para com Israel, Francesca Albanese aponta crimes de guerra e contra a Humanidade. A seu ver, os palestinianos estão indefesos

 

Tomás Guerreiro

Francesca Albanez concedeu esta entrevista ao Expresso enquanto viajava para os Estados Unidos da América, horas antes do chumbo da resolução de cessar-fogo no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A relatora especial da ONU para os territórios palestinianos ocupados condena a operação de Israel por perpetuar violações sistemáticas do direito humanitário internacional e da Convenção de Genebra. Denuncia a política de ocupação e o regime de apartheid imposto ao povo palestiniano. Advoga pela urgência de um cessar-fogo para se travar “uma catástrofe humanitária de dimensões olímpicas”, com nuances de “limpeza étnica” e de “crime contra a Humanidade”.

Como descreve a situação humanitária em Gaza?
Há uma catástrofe humanitária de dimensões olímpicas. Já antes de 7 de outubro Gaza estava sob bloqueio ilegal há 16 anos. Não há recursos, sete em cada dez pessoas dependem de auxílio humanitário, metade da população está desempregada, há muita mortalidade infantil, todos os indicadores demonstram quão devastador é o bloqueio. É uma punição coletiva e enquadra-se num crime de guerra. O território está ocupado mesmo sem a permanência do exército, Israel controla entradas e saídas. Desde 7 de outubro, mais de 2800 palestinianos foram mortos, dos quais 700 eram crianças e 500 mulheres. Há 50 mil grávidas em risco. Esta população já enfrentou guerras de grande escala com Israel em 2008, 2009, 2012, 2014, 2021 e 2022. Antes de 7 de outubro foram mortos pelo conflito em Gaza 4200 adultos e 1200 crianças. Agora, cerca de 100 escolas abrigam um milhão de deslocados, dezenas de milhares de habitações estão destruídas, hospitais saturados e sem medicamentos. Sem água, os palestinianos bebem a do mar, salinizada e contaminada. Israel impede a entrega de ajuda humanitária, os bombardeamentos terraplanam áreas civis. Independentemente da legitimidade de autodefesa de Israel contra o Hamas, sob o artigo 51 da Carta das Nações Unidas, esta operação militar viola os princípios da distinção, precaução e proporcionalidade. Deram a ordem de evacuação a um milhão pessoas no Norte da Faixa de Gaza, mas o Sul está a ser bombardeado e não tem hospitais. Há ocupação de grandes franjas do território palestiniano, 60% da Cisjordânia está anexada e o resto é controlado “de facto” por Israel, Jerusalém foi conquistada, agora pressupõe-se que será a Faixa de Gaza. Apesar de a limpeza ética não ser conceito jurídico, encapsula elementos legais, como atrocidades e intenções genocidas. Há precedente no Tribunal Penal Internacional para a Jugoslávia. Antes da fundação do Estado de Israel, os palestinianos foram deslocados à força pelo Mandato Britânico da Palestina. Israel já deslocara 350 mil entre maio e novembro de 1948, antes da guerra com os países árabes. Seguiram-se mais 400 mil. Quando se assinou o armistício em 1949, com o Líbano, Jordânia, Síria e Egipto, havia 750 mil palestinianos refugiados. Antes do Mandato Britânico, só 10% da população nesse território era judia. A limpeza étnica sob pretexto de guerra aconteceu em 1949, mas também em 1967, com a ocupação da Cisjordânia, Jerusalém Leste e a Faixa de Gaza, resultando na expulsão de 350 mil palestinianos que nunca puderam regressar. Agora, há esta ordem de evacuação dada a 1,1 milhões de pessoas para o Sul de Gaza. Porque não se abrem corredores humanitários através de Israel ou da Cisjordânia? Os palestinianos temem a continuação da Nakba. Métodos menos visíveis de ocupação têm sido usados por Israel: recusa de vistos de residência a palestinianos, expropriações de terra ou a violência dos colonos. Há vilas inteiras despovoadas.

Regressando ao presente conflito. Como avalia as posições políticas da comunidade internacional, das Nações Unidas, dos Estados Unidos e da União Europeia?
O secretário-geral tem a obrigação jurídica, moral e política de apelar a um cessar-fogo, é o coração das Nações Unidas, humanitarismo sem “mas”. Os Estados Unidos sempre foram um pilar de defesa e apoio de Israel em detrimento dos palestinianos e do bem-estar da região. Protegendo de escrutínio um empreendimento colonial, legitima-se a violência estrutural. Há uma linguagem desumanizante e sem precedentes contra os palestinianos. A tendência americana pró-Israel bloqueia resoluções da ONU e concede apoio incondicional, alheio às violações dos Direitos Humanos e do direito humanitário internacional. A União Europeia tem menos envolvimento no processo político da Palestina, só desde os Acórdãos de Oslo, e muitos Estados têm posições individuais. No entanto, as instituições europeias desenvolveram um mantra conjunto: a solução de dois Estados. Esta desmoronou-se debaixo dos seus olhos. É impossível quando um Estado insiste em colonizar o outro. A História impede estados europeus de condenarem Israel, sem compreenderem que o “nunca mais” se aplica a todos os povos. A comunidade internacional descobriu o valor do direito internacional na Ucrânia, com a anexação ilegal, os colonatos, a violação do direito de autodeterminação, o crime de agressão… nada disto se aplica aos palestinianos?

Relatora da ONU para a Palestina: “A operação militar viola os princípios da distinção, da precaução e da proporcionalidade” 

Considera que essas violações do direito internacional estão a ocorrer, agora, na Palestina?
Israel viola o direito humanitário internacional e as convenções de Genebra. Os colonatos são crime de guerra, a transferência forçada de população é crime de guerra, a não conceção de julgamentos justos e detenções arbitrárias em massa são crimes de guerra. Quando estas violações são integradas numa motivação mais ampla e sistemática, configuram um crime contra a Humanidade. Por exemplo, o cerco militar é uma punição coletiva e, se resultar numa crise de fome, é um crime de guerra; intencionalmente provocada, é um crime contra a Humanidade. O caso de genocídio contra a população palestiniana deve ser considerado.

A comunidade internacional baseia-se no direito de autodefesa de Israel para legitimar a operação. Este direito elimina o cumprimento dos outros?
Os ataques, assassínios e raptos de civis pelo Hamas são crimes de guerra hediondos. Os crimes do Hamas foram bárbaros e não representam os palestinianos. Israel impõe um regime de apartheid que segrega os palestinianos de Gaza dos da Cisjordânia, há uma violação do direito de autodeterminação, o direito desse povo de ser livre e digno. Os colonos e os soldados israelitas exercem violência contínua contra o povo palestiniano: 400 pessoas foram assassinadas nos primeiros seis meses do meu mandato. É evidente, que o Hamas cometeu crimes de guerra e Israel tem o direito a defender-se, mas que significa autodefesa? O uso de força deve ser justificado pela necessidade. Terraplanar Gaza não é legitimo, é desproporcional, não respeita o principio da distinção, é desnecessário e brutal. Em nenhum país seria possível o bombardeamento de edifício atrás de edifício. O Hamas surgiu 20 anos após a ocupação de Israel e teve a sua conivência para enfraquecer a Fatah. Há declarações políticas genocidas contra a Palestina há anos. “Animais, selvagens” é a narrativa padrão de Israel.

Adania Shibli, escritora

 

Considera que o uso de poderio militar de Israel contra a Palestina tem intenções secundárias?
Sim, é necessário ler este acontecimento num contexto. Os políticos israelitas querem terra sem pessoas, é uma questão demográfica. Não só lançaram a violência de guerra atrás de guerra, mas também a dos colonatos, a do exército, a dos burocratas, a dos assassínios diários. Há um milhão de palestinianos deslocados entre 1949 e 1967, que nunca receberam visto de residência. Como é que o bombardeamento de Gaza elimina o Hamas? Depois das guerras em 2008, 2012, 2014, o Hamas ficou enfraquecido? Venceu as eleições sob observação da União Europeia e ninguém se pronunciou. Os bombardeamentos distinguem os militantes do Hamas da população civil? Ou são atacados todos pela mesma medida?

Dada a situação em Gaza, qual é o ambiente na Cisjordânia?
Horrível, na última semana, 55 palestinianos foram assassinados por colonos acompanhados pelo exército. Os palestinianos são mortos e detidos arbitrariamente todos os dias. Há mais de 1200 em centros de detenção sem acusações formais, sem julgamento ou garantias de direito. Os dirigentes europeus veem em Israel a única democracia do Médio Oriente. É democracia para os judeus, mas é um Estado de apartheid para os árabes. Nos territórios ocupados da Palestina há uma ditadura militar.

Qual é a importância de um cessar-fogo?
É tudo, é essencial. As Nações Unidas têm de pedir um cessar-fogo e a comunidade internacional deve acompanhar essa posição. Depois, é preciso trabalhar a opressão do povo palestiniano, não há forma de paz sem parar a impunidade de Israel, é apartheid por definição: enquanto colonatos ilegais estão sob a lei civil, os palestinianos estão sob a lei militar. A obrigação da comunidade internacional é garantir o cumprimento do direito internacional, é o único instrumento que pode delimitar as ações políticas, a correção de abusos. O caso da Palestina é distópico.

 https://expresso.pt/politica/2023-10-19-Israel-Hamas-as-ligacoes-historicas-do-PCP-e-a-dificuldade-do-Bloco-em-ler-tentativas-de-clivagem-64b3846a


Daniel Oliveira - Para Gaza, rapidamente e em força!

SEMANÁRIO#2660 - 20/10/23

* Daniel Oliveira  

“Esta é a prova nua e nauseante da selvajaria inacreditável dos terroristas que atravessam a fronteira do Norte de Angola para degolar, violar e mutilar as nossas mulheres e crianças por todas as fazendas e aldeias indefesas em que passavam, sem a menor provocação (...). Não importa quanto gritam sobre a repressão portuguesa, sobre a exploração portuguesa, (...) a prova nua está aqui, demasiado nauseante para ser olhada.” Este foi o discurso do embaixador português Vasco Garin na ONU, exibindo ao Conselho de Segurança algumas das horrendas fotografias do massacre da UPA, em 1961. Como o jornalismo tem a tentação para o eterno começo, socorro-me, para grande parte deste texto, de um artigo académico do historiador de arte Afonso Dias Ramos, “Angola 1961, o horror das imagens”, do livro coletivo de 2014 “O Império da Visão”. É quase desnecessário explicar o que foram os massacres de março de 1961, no Norte de Angola, liderados pela UPA. As horrendas fotografias criaram um trauma. E quem não tem essa memória encontrará numa busca rápida os cadáveres profanados e desmembrados, com intestinos de fora, crânios rebentados, caras desfiguradas, genitália serrada. Barrado o acesso da imprensa internacional, o regime colonial enviou fotógrafos e operadores de câmara para captar imagens dos cadáveres em decomposição, só depois enterrados pelos soldados. Recolhia-se material de guerra: imagens.

Ao contrário do habitual, não se impuseram restrições à circulação das fotos. Foram publicadas em toda a imprensa, incluindo no estrangeiro. Nem ao seu conteúdo, ultrapassando as regras vigentes sobre nudez, sexo ou morte. Foram colocadas ampliações nas vitrinas do Palácio Foz e a Sociedade de Geografia organizou uma exposição com mais de 50 mil visitantes. Foram publicados dezenas de livros, alguns com mais de dez edições. Corriam de mão em mão. Há relatos de carrinhas de propaganda em aldeias remotas. Viriam a ser mostradas aos soldados, nos anos seguintes, e havia quem as levasse na carteira para combater. Fora de portas, grupos ultraconservadores e supremacistas dos EUA distribuíram as imagens, ligando Martin Luther King a Holden Roberto. Um folheto sobre o “genocídio” foi enviado a todos os congressistas, alertando contra quem queria “destruir a NATO e o mundo livre”.

“Vamos para combater, não contra seres humanos, mas contra selvagens. Vamos enfrentar terroristas que devem ser abatidos como animais.” Haverá muitas diferenças. Mas a semelhança entre as palavras do ministro do Exército português, em 1961, e as do ministro da Defesa israelita, em 2023, depois de massacres, não é coincidência

“Se a circulação das imagens violava todas as convenções, apelava igualmente a uma resposta inconvencional, suspendendo códigos morais e legais na eliminação do mal”, escreve Afonso Dias Ramos. Foi o choque emocional que disparou o gatilho da guerra, com a famosa ordem de Salazar: “Para Angola, rapidamente e em força.” As imagens uniam os portugueses em torno de um inimigo que decapitava crianças, violava mulheres, castrava homens. A desumanização do inimigo foi eficaz e há relatos bem horrendos da carnificina da reação. Como escreveu o jornalista John Frederick Walker, “as fotografias da vingança teriam conseguido facilmente igualar o horror das do levantamento”. Dessas não ficaram registos públicos (haverá privados). Ainda assim, foram apresentadas na ONU, por iniciativa da Guiné, fotografias-troféu de cabeças de negros espetadas em paus erguidos por militares sorridentes. Como escreve o historiador, as fotografias “inspiravam um horror cego e cegavam horrores perpetrados em seu nome”. A despolitização do conflito, através do trauma, como se tudo tivesse começado a 15 de março, também funcionou internamente. Lá fora, um documentário da NBC complementava as imagens da chacina com o massacre da Baixa do Cassanje ou a violência do trabalho forçado. O imperdoável “mas” a que chamamos contexto.

“Vamos para combater, não contra seres humanos, mas contra feras e selvagens. Vamos enfrentar terroristas que devem ser abatidos como animais selvagens.” Qualquer semelhança entre as palavras do ministro do Exército, em 1961, e as do ministro da Defesa israelita, em 2023, não é coincidência. E a minha escolha do massacre de março de 1961 para ocupar quase todo este texto também não. Se alguém, a esta distância, perguntasse o que podia fazer o governo português perante aquela selvajaria se não iniciar uma guerra sangrenta, os sensatos responderiam que, independentemente do horror e da resposta, aquilo era um aviso para a urgência de iniciar a descolonização.

Haverá muitas diferenças. Entre a UPA e o Hamas, entre combatentes que cometem atrocidades e organizações terroristas, apesar deste terrível episódio ter marcado para sempre a reputação de Holden Roberto. Entre um conflito colonial ultramarino e uma disputa de território. Mas a maior diferença, neste episódio, é o que torna a comparação interessante. Enquanto as imagens do massacre da UPA foram usadas exclusivamente por Portugal, para alimentar a sede de vingança e obliterar o contexto político, as imagens do massacre do Hamas foram captadas pelo próprio Hamas e divulgadas por ele e por Israel. O massacre do Hamas pretendeu provocar uma reação, numa aliança pelo caos entre Hamas e Netanyahu. O padrão é o mesmo: a utilização do trauma para tornar inevitáveis os crimes que se seguem, criando “um momento zero” num conflito longo. Sem “mas”.

https://expresso.pt/opiniao/2023-10-20-Para-Gaza-rapidamente-e-em-forca-d996145d


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Alexandra Lucas Coelho - Todos vimos, todos sabemos. Travar a morte em Gaza é honrar enfim a memória do Holocausto

OPINIÃO

Todos vimos, todos sabemos. Travar a morte em Gaza é honrar enfim a memória do Holocausto

Há uma nova geração para a mudança. A libertação do trauma que aprisiona a Europa onde o Holocausto aconteceu, com a cumplicidade de tantos. Que a Europa a ouça, porque eles sabem tudo sobre urgência.

Alexandra Lucas Coelho

18 de Outubro de 2023,  

1. A Europa está refém da culpa do Holocausto desde a II Guerra Mundial. Mas honrar a memória do Holocausto será travar a mortandade em Gaza agora. E honrá-la enfim, porque essa memória foi traída até chegarmos a isto: 2,3 milhões de pessoas trancadas num gueto, bombardeadas dia e noite, metade das quais deslocadas, sem água, comida, assistência.

E foi traída também no gueto-arquipélago da Cisjordânia, onde quase três milhões de palestinianos enfrentam a violência de colonos cada vez mais radicais. Os hoje 700 mil colonos que Israel foi plantando com betão e alcatrão, bem agarrados ao chão, tanto na Cisjordânia como em Jerusalém Oriental, todos ilegais à luz do que a Europa assinou. E que assim impedem a “Solução Dois Estados”, como os líderes mundiais — todos eles — estão cansados de saber.

2. O mundo está cansado de saber. Não há guerra mais mediatizada. Nenhum outro lugar está incrustado em tantos humanos, pela fé, pela história, pelo pensamento. Ao mesmo tempo, é como se o mundo de cada vez não soubesse. Há quem fosse criança na Primeira ou na Segunda Intifada, ainda há pouco, agora. Haverá sempre quem esteja a acordar, e quem possa acordar ainda. Como haverá sempre quem não pense.

Não pensar é muito perigoso. No epílogo de Eichmann em Jerusalém — um livro sobre o julgamento do nazi responsável pelo transporte de milhões de judeus para o extermínio —, a judia Hannah Arendt fala do não-pensamento que viabiliza o crime.

Escrevemos muito depois de Auschwitz, apesar do buraco que parecia ter engolido a poesia. Temos ecos de muitas canções, muitos filmes. Depois de Auschwitz houve Hiroxima, e de cada vez nada vimos: nada vimos que nos faça melhores.

A prova é estarmos aqui. É o Estado de Israel — fundado para que nunca mais o Holocausto acontecesse, e à custa de muito combate, incluindo ataques terroristas sionistas — ter erguido um muro em torno de cinco milhões de pessoas, e essas vidas desaparecerem do lado de lá.

Valiam menos que as dos israelitas? Valem menos que a nossa, cada uma, agora? Valem menos porque em Telavive a vida é uma festa de gente branca e bonita onde o Ocidente se imagina melhor? Cinco milhões é metade de Portugal. E metade desses cinco milhões são crianças. Desapareceram da nossa vista, mas perante a nossa vista, no lugar mais televisionado do mundo.

3. Escrevo estas palavras num jornal de um país europeu de maioria cristã. Muitos terão ido lá ou sonham com isso, a Terra Santa, onde Cristo nasceu e morreu crucificado. Os que a visitaram nos últimos anos já viram Belém atrás de um muro. O Santo Sepulcro cercado de soldados. A Via Dolorosa cheia de metralhadoras. Fora os colonos, para cima e para baixo, desafiando esse coração de Jerusalém. Alguns leitores deste texto terão até atravessado o checkpoint para Ramallah, visto a Cisjordânia.

Mas raríssimos puderam entrar em Gaza. A primeira vez que lá entrei, em 2002, auge da Segunda Intifada, já era difícil. Um viajante normal não podia, só sendo jornalista credenciado, membro de ONG ou diplomata/político. E foi ficando pior.

Em 2006, o Hamas ganhou as eleições gerais palestinianas, uma vitória limpa — e não surpreendente, dado o falhanço da Fatah —, mas que a UE decidiu não reconhecer, colando-se aos EUA nisso, contribuindo para alienar e radicalizar o Hamas. Uma oportunidade perdida. Tudo mudou para pior. Isolado, em ruptura com a Autoridade Palestiniana, o Hamas passou a governar Gaza, e ficou ainda mais difícil ir lá.

Tudo isto serviu a colonização israelita.

Entretanto, Israel proibia os seus cidadãos de entrar em qualquer cidade palestiniana. Há muito que os israelitas perderam o contacto civil com o horror do outro lado. Só quando estão dentro de uma farda, com uma arma na mão. Ou quando são colonos, essa espécie de milícia, carne para canhão do apartheid. O que também ajudou a triturar a esquerda e a empatia.

Portanto, muito pouca gente no mundo entrou em Gaza. As novas gerações de Israel não conhecem a Palestina senão como soldados. E foi debaixo de fogo e ocupação, atrás de um muro, entre checkpoints humilhantes, que as novas gerações palestinianas nasceram.

Alguém acha mesmo estranho que se “radicalizem” jovens assim, presos, sem perspectiva, rodeados de morte? Alguém acha que manteria a cabeça no lugar? Que não enlouqueceria? Não pensaria em tudo para se libertar?

Vivi um ínfimo daqueles checkpoints, daqueles massacres, daqueles dias e noites sob bombas em Gaza. No mesmo quarto de crianças que jamais conheceram uma noite sem pesadelos. Sempre senti que o milagre na Palestina, mas sobretudo em Gaza, era a vida apesar de tudo. A hospitalidade, a entreajuda. Toda a gente não ter enlouquecido, apesar de tudo.

Apesar de os pais já terem sido presos, ocupados e mortos, e os avós idem, e tudo a cada dia ser pior. E apesar de o mundo — mesmo sem entrar em Gaza, mesmo com o muro — ver, saber e permitir.

4. E quem vai justificar isso para as novas gerações pelo mundo? Quem lhes explica porque é que a Europa não trava esta matança? Porque é que os pais deles, os avós ficaram tão presos na própria culpa, no seu próprio medo, ou seja, em si mesmos, que não são capazes de honrar os mortos de ontem salvando os vivos de hoje?

A memória do que foi o Holocausto vai da concentração dos judeus em guetos até ao extermínio. Também de meio milhão de ciganos, também de homossexuais e doentes mentais, mas acima de tudo, esmagadoramente, de judeus: um genocídio sem precedentes, sucedendo a perseguições milenares. Incluindo em Portugal. Somos todos herdeiros dessa memória, de uma forma colectiva e contínua que se pode resumir assim: nunca mais.

Nunca mais é o espelho que está diante de cada um agora, e esse espelho diz: ainda sou humano?

A Europa fala pelos direitos humanos, a paz e a civilização. Mas, quando isso é violado pelo Estado de Israel, os responsáveis da UE não questionam que Israel seja uma democracia, e não forçam a aplicação do que assinaram. A inacção da Europa é uma acção contra a sua própria palavra

5. Desde o ataque do Hamas a 7 de Outubro, os líderes da União Europeia (UE) não tiveram palavras novas para a escuridão inédita em que estamos. A declaração que penosamente articularam dia 15 era tão velha quanto as muitas décadas que estão para trás. Tão oca como centenas de declarações anteriores. Procurei a palavra “ocupação” no texto. Não é um adjectivo nem uma opinião. É Direito Internacional, resoluções da ONU assinadas pelos países da UE e boa parte do mundo. Mas essa palavra não estava lá.

Ao longo de todas estas décadas, a Europa falhou em estar à altura do que ela mesma votou. Fala pelos direitos humanos, a paz e a civilização. Mais, como fundadora e guardiã disso. Mas, quando isso é violado pelo Estado de Israel, os responsáveis da UE não questionam que Israel seja uma democracia, e não forçam a aplicação do que assinaram.

A inacção da Europa é uma acção contra a sua própria palavra.

6. O brutal 7 de Outubro foi o maior trauma que o Estado de Israel já viveu na guerra com os palestinianos. Em cada casa israelita agora há luto, conversas sobre evacuações por barco para Chipre, hipóteses de emigração ou pelo menos um soldado, um reservista, filhos dos amigos. Gente que morrerá numa invasão terrestre de Gaza. E penso também na angústia dos ditos árabes-israelitas, ou seja, palestinianos que vivem no território de Israel. Israel voltou-se para dentro, e o abismo só servirá a extrema-direita, e esse parasita da guerra que é Netanyahu.

Vimos, estamos a ver e veremos imagens que nunca tínhamos visto, ou julgámos não voltar a ver. É uma noite muito escura em várias direcções.

7. Alguns dos leitores deste texto ainda não tinham nascido a primeira vez que fui a Gaza. Eles não entendem que a gente não faça nada. Tal como não entendem que a gente não faça nada quando não há planeta B. E como entender? O que há para entender? É fazer.

Esta é uma geração madura para uma mudança que não aconteceu na minha. Para uma libertação do trauma que aprisiona a Europa onde o Holocausto aconteceu, com a cumplicidade ou inacção de tantos, além dos alemães. Que a Europa ouça esta geração, porque eles sabem tudo sobre urgência. Era ontem, é já.

Falo da Europa porque sou europeia, e precisamos muito que os líderes da Europa ousem contrapor-se às armas que os EUA empunham já, aliando-se ao governo de Netanyahu.

Além do livro de Hannah Arendt — que a 7 de Outubro eu estava a ler na tradução portuguesa, acabei entretanto, e para mim ficou fundido com o que estamos a viver agora —, tenho na mesa Nós, filhos de Eichmann, do também filósofo judeu Günther Anders, que foi marido de Hannah.

Sim, nós, filhos de Eichmann. Maus animais, como escrevi sábado neste jornal. Para quem leu, o meu amigo W. voltou a responder. Amigo de muitos anos em Gaza, e que muito sofreu às mãos do Hamas. Mesmo com dificuldade em caminhar, tentou ir para sul, seguindo a ordem de evacuação de Israel. Apanhou uma explosão no caminho, dezenas de mortos. Voltou para trás. Voltou a fazer uma fractura, ele que nunca recuperou das torturas. Comida não era importante, escreveu-me, mas água sim. Uns vizinhos ajudaram. Alguém sempre ajuda, é o que há, é o que têm. Foi o que sempre vi, em 21 anos de idas a Gaza: têm-se uns aos outros.

Jornalista e escritora, ex-correspondente do PÚBLICO em Jerusalém

Jornalist

 

https://www.publico.pt/2023/10/18/mundo/opiniao/vimos-sabemos-travar-morte-gaza-honrar-memoria-holocausto-2067226

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Daniel Oliveira - Como criminalizar o apoio a 140 resoluções da ONU

* Daniel Oliveira

2023 10 16

Quem controla as imagens controla quase tudo. A emoção facilita a desinformação e o maniqueísmo que está a permitir uma aberrante criminalização de uma causa que tem o direito internacional do seu lado. O papel do jornalismo é acrescentar contexto e razão ao que é paixão e emoção. Porque nada é mais fácil de manipular do que a dor

Um vídeo com mais de 230 mil visualizações, no próprio dia em que foi publicado no Twitter, mostra um membro do Hamas a abater um helicóptero israelita. Outro, com mais de 3 milhões, exibe um edifício a ruir em Israel depois de um ataque do Hamas. Têm em comum serem falsos. O primeiro é retirado de um jogo de computador, Arma 3, o segundo mostra o resultado do ataque aéreo israelita à Torre Palestina, em Gaza. Não são casos isolados. Shayan Sardarizadeh, o jornalista do programa de verificação de conteúdos falsos da BBC, garante nunca ter visto tanto conteúdo falso a circular no Twitter ou no Tik Tok.

Nunca tivemos acesso a tantas imagens dos conflitos que mais ocupam o espaço público como na última década e meia – Síria, Ucrânia e Israel e Gaza. Com a viralidade das redes sociais, o seu alcance é instantâneo e quanto mais brutal mais longe e depressa chega. As partes beligerantes sabem-no. A Ucrânia revelou-se exímia no aproveitamento mediático das redes sociais, com uma gestão hiperprofissional da atenção e simpatia das opiniões públicas. O Hamas filmou e divulgou a barbárie do dia 7 de outubro como ponto central da campanha de choque e terror para forçar uma violentíssima reação israelita.

Gerou polémica, em 1991, a presença de jornalistas nas colunas militares norte-americanas na guerra do Iraque. Onde esse tempo já vai. Se a objetividade jornalística era vítima da voracidade dos ciclos noticiosos cada vez mais curtos da televisão por cabo, o aparecimento das redes sociais deixou o jornalismo para trás.

Grande parte das imagens que vemos nas televisões mundiais são fornecidas, direta ou indiretamente, pelas forças em conflito. Sejam soldados nas trincheiras do sul da Ucrânia, a filmar a dureza dos combates com câmaras no capacete, seja a violência indizível do assassinato de civis a sangue pelo Hamas, sejam os ataques aéreos a Gaza, demasiado parecidos com um jogo de vídeo. Cada uma serve um propósito diferente, consoante a estratégia de cada força, mas o objetivo é sempre o mesmo: transmitir a sua versão do conflito.

Não é por acaso que Israel condicionou o acesso à internet na faixa de Gaza. As razões são as mesmas que levaram a impedir o acesso da imprensa a Gaza, em 2008, numa das expedições punitivas que ciclicamente travam nesta pequena faixa. É assim que não vemos tantas imagens, nos media ocidentais, das vítimas em Gaza. Felizmente existe a Al-Jazeera (e mais algumas cadeias internacionais com meios para estar no terreno perigoso), o que até levaria a um debate interessante sobre a importância do peso económico de cada lado para contar uma versão de uma história.

Sem Internet e com condicionamento jornalístico, ficam são os vídeos que o exército israelita vai produzindo para canais como o Tik Tok. Neles vemos prédios em ruínas, esfumaçando depois das explosões, mas não há grandes planos das vítimas ou da dor e sofrimentos das suas famílias. Isto quando sabemos que na última semana já foram mortos mais palestinianos do que israelitas.

Quem controla as imagens que circulam no gigantesco mercado de difusão narrativa em que se tornaram as redes sociais controla não apenas a informação, mas a perceção pública. E quem controla a perceção controla quase tudo. As imagens moldam e deformam a visão que temos dos conflitos. Que, nesta permanente sucessão de imagens choque é visto como se tivesse começado na semana passada. Na Internet nada se perde, a não ser o contexto. Nada existe para lá do presente. Veja-se como, num conflito com dezenas de anos de amargurada história de ressentimentos, violência sectária e humilhação, a discussão é sempre feita como se tudo tivesse começado com a barbárie de 7 de outubro. Sem passado ou contexto.

Em Israel, a comparação com o Holocausto criou uma tal pressão política que a simples referência às vítimas civis em Gaza é tratada como uma traição abjeta. Ainda assim, é natural, num país que passou por um trauma. Mas não é só em Israel. A comparação com o ISIS espalhou-se como um vírus, apesar de qualquer pessoa que saiba alguma coisa sobre aquele conflito perceber que é falha em quase todas as condicionantes políticas, históricas e geográficas. A interdição do "mas", mesmo que esse "mas" se resuma a informação útil para a compreensão de um conflito com 70 anos, e não com uma semana, é o retrato perfeito da confusão entre firmeza moral e simplificação extrema de um conflito, como cada parte beligerante deseja sempre que seja. E acaba onde acabou sempre: na terraplanagem do pluralismo, na polarização perigosa e na porta aberta para a conivência com o abuso de um dos lados e com a limitação da liberdade.

Vale a pena ler o notável artigo em que o editor internacional da BBC explica por que razão o canal público britânico não chama “terroristas” ao Hamas. Pela mesma razão, adianta, que na Segunda Guerra Mundial, mesmo quando o país estava a ser bombardeado, nunca chamaram outra coisa aos alemães que não fosse “o inimigo”, evitando termos pejorativos. Porque a tarefa dos jornalistas é fornecer dados e factos e cada pessoa fazer a sua leitura. “Acima de tudo, dizia um documento da BBC sobre tudo isto, não deve haver lugar a discursos demagógicos. O nosso tom tinha de ser calmo e controlado”.

Concorde-se ou não com o caminho seguido pela BBC, ele nasce de uma discussão interna sobre a consequência e o poder das palavras e imagens que parece ter sido completamente eclipsado da maioria dos canais noticiosos. Numa luta com a velocidade, alcance e impacto, o jornalismo aproximou-se dos códigos das redes em vez do oposto. A exploração da emoção substituiu a escolha do que é relevante, a “folhetinização” o contexto. A emoção pode gerar boas novelas, não nos dá boa informação.

A forma como a história das crianças decapitadas ocupou o espaço comunicacional de meio mundo é reveladora desta pressão para a publicação imediata do mais chocante. Matar uma criança, seja de que forma for, é um ato de grotesca desumanidade e a decapitação é um acrescento macabro, mas não o mais relevante do ponto de vista moral. Mas a forma como foi comunicada interessa do ponto de vista jornalístico. Porque nos diz como a desinformação circula.

O que ficámos a saber é que tudo nasceu de um relato indireto, contado por um soldado, a um jornalista israelita, que mais nenhum colega internacional ouviu ou corroborouO próprio exército israelita não confirmou, mas a história seguiu o seu caminho até ao próprio Biden, desmentido depois pela Casa Branca. A história está cheia de confirmações e desmentidose até apareceram outras fotos grutescas. Mas a generalidade da comunicação social divulgou uma informação sem fonte clara e verificação. Isto não torna os atos do Hamas menos horrendos. Apenas mostra os riscos de um jornalismo que funciona como caixa de ressonância da desinformação do lado que está, a cada momento, mais disposto a ouvir.

Doses massivas de emoção prendem as pessoas ao ecrã, mas minam o espírito crítico e diminuem o espaço para a dúvida. E sem dúvida não há contraditório. Não há o imprescindível “mas”, a mais importante conjunção para a democracia. A emoção alimenta maniqueísmo em vez da divergência racional, tantas vezes fundada no contexto e na história. E se há conflito que tem contexto e história é este.

É este ambiente mais uma vez emocional nos encaminha para a tentativa moralmente aberrante de criminalizar o apoio à causa palestiniana. Isto aconteceu com a guerra na Ucrânia, mas nesta caso é muito mais perverso, porque o apoio à causa palestiniana (não ao Hamas) é o apoio às vitimas de uma continuada violação do direito internacional.

A Feira do Livro de Frankfurt cancelou o prémio literário que tinha previsto entregar a Adania Shibli, porque o tema do seu livro é o assassinato de uma jovem palestiniana pelo exercito israelita em 1949. França e Alemanha proibiram manifestações de apoio à Palestina, com vários manifestantes que empunhavam a bandeira desta nação a serem detidos. O governo do Reino Unido dá ordens à polícia para intervir no mesmo sentido.

A instauração do delito de opinião será sempre inaceitável e um perigoso sinal dos tempos que vivemos na Europa. Mas é ainda mais inacreditável quando estamos a falar de uma causa que tem o direito internacional do seu lado – desde 2015, a Assembleia Geral da ONU aprovou 140 resoluções criticando Israel. Durante o mesmo período, aprovou 68 resoluções contra todos os outros países, de acordo com o relatório da ONU Watch. Ee ainda mais incrível quando todo o mundo assiste à violação concreta, clara e indesmentível das leis da guerra, neste preciso momento, cometidas aproveitando a anestesia moral da emoção. Ao fim de quantos milhares de palestinianos mortos podemos ser solidários?

O jornalismo emocional não se limita a acordar consciências. Também as anestesia. O papel do jornalismo é acrescentar contexto e razão ao que é paixão e emoção. Por isso a BBC é tão exigente nos termos que usa. Infelizmente, disputando o mercado da atenção e não o da credibilidade, as televisões vão esmagando o pensamento crítico, a dúvida, a saudável adversativa, o contexto e a memória com uma enxurrada de imagens e lágrima e gritos e gestos de solidariedade... E nada é mais fácil de manipular do que a dor.


https://expresso.pt/internacional/medio-oriente/guerra-israel-hamas/2023-10-16-Como-criminalizar-o-apoio-a-140-resolucoes-da-ONU-012a0b38