domingo, 27 de janeiro de 2008

Colonialismo: um Crime

Colonialismo: um crime contra a humanidade ainda a ser reparado


Por Waldir José Rampinelli - professor do Departamento de História na Universidade Federal de Santa Catarina

Os crimes praticados pelo governo nazista levaram a Alemanha, no início dos anos 1950, a entrar em negociações com instituições judaicas, assinando um acordo de indenização no valor aproximado de US$ 60 bilhões. Isso aconteceu sem grandes pressões internacionais(i) . Hoje, com todo o grito e o clamor dos povos do Terceiro Mundo por uma nova ordem econômica mundial, ocorrem apenas alguns pedidos de desculpa pelo colonialismo e o escravismo e, às vezes, renegociações de suas dívidas externas. O perdão e a reparação não fazem parte da agenda do grupo dos sete países mais ricos (G-7).

A Idade Moderna, também denominada época dos descobrimentos, inaugurou uma nova forma de acumulação: o colonialismo. O mundo foi conquistado pelas potências européias, causando às populações nativas um verdadeiro genocídio. Nenhum crime do século XX, diz Tzvetan Todorov, pode ser comparado aos massacres daquele período. O livro negro do colonialismo (ii), que começa no século XVI e chega à atualidade, conclui que, se ontem o mecanismo de dominação foi o colonialismo e mais tarde o imperialismo, como também o neocolonialismo, hoje é a globalização.

Esse livro, fazendo par com o do comunismo e o do capitalismo, mostra a pilhagem das riquezas das terras dominadas. No entanto, ele é benevolente com as metrópoles ibéricas, vistas por Marc Ferro como menos sanguinárias que as demais européias, já que espanhóis e portugueses queriam fazer dos indígenas seres cristãos. Refere-se à carta emitida pelo Papa Paulo III, em 1537, na qual se dizia que os nativos eram portadores de alma e não animais selvagens. O conteúdo desse documento, porém, jamais chegou à América, e coube a alguns religiosos isolados, como Las Casas e Montesinos, fazer a defesa dos indígenas. Não há colonialismo brando quando se trata de dominar para expropriar. Neruda sintetizou a chegada de homens estranhos em um verso: “a espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem”. A resistência dos nativos, no entanto, logo se fez presente, esparramando-se por todo o continente. O grito de Tupac Amaru, quando sentiu que seria esquartejado, foi o de que muero, pero volveré hecho millones.

Na verdade, é um equívoco pensar em exploração mais humana, já que a América Latina paga até hoje o preço dessa subjugação. Os indígenas passaram, por exemplo, por um processo de extinção em algumas regiões. Contra eles, e mais tarde contra os negros, o peso da escravidão. “O que o burguês supercristão do século XX não perdoa a Hitler” – já assinalava Aimé Césaire, o poeta antilhano de Guadalupe – “não é o crime em si, não é a humilhação do homem em si, mas o crime contra o homem branco [...] de ter aplicado à Europa procedimentos colonialistas que até então só abrangiam os árabes, os cules da Índia e os negros da África”(iii) .

Ferro apresenta a Igreja e o Exército como instituições igualitárias na América luso-hispânica. Na verdade, ambas foram discriminatórias com os indígenas e o negros, pois os mesmos ocupavam espaços inferiores nos atos religiosos e também não ascendiam na carreira militar como os brancos. Simón Bolívar, quando os convocou a fazer parte de seu exército libertador, teve que lhes prometer terra e liberdade, ou seja, igualdade. Só assim os descalços o seguiram na travessia dos Andes.

O historiador francês Marc Ferro, organizador do livro e único representante da Escola dos Annales que se dedica ao estudo da história contemporânea, mostra o racismo como um componente fundamental do colonialismo. Classifica-o em dois tipos: um que se baseia na desigualdade, isto é, seres humanos menos desenvolvidos, mas que poderiam, eventualmente, ascender à condição do conquistador; outro que se escora em “diferenças de natureza ou de genealogia entre certos grupos humanos” que jamais chegariam à condição do europeu. Charles Boxer já dissera “que uma raça não pode escravizar sistematicamente membros de outra, em grande escala, por mais de três séculos, sem adquirir um sentimento, consciente ou não, de superioridade racial”(iv) . Respondia aos escritores portugueses modernos que afirmavam que seus compatriotas nunca tiveram qualquer sentimento preconceituoso de cor ou de discriminação contra o negro africano.

O colonialismo pode se transformar em uma forma de dominação totalitária, sempre e quando utiliza de sua própria ideologia e mantém a maior parte da população dominada por razões racistas. Muitos traços, diz Ferro, aproximam as práticas colonialistas daquelas dos regimes totalitários, tais como os massacres, o confisco dos bens de uma parte da população, o racismo e a discriminação correspondente.

O conceito de neocolonialismo, nova forma de imperialismo, é apresentado no livro como criação de Kwame Nkrumah – primeiro-ministro de Gana – para definir “a situação de um Estado independente em teoria e dotado de todos os atributos da soberania, mas que, na realidade, tem sua política dirigida a partir do exterior”. As potências imperialistas já não queriam controlar formalmente as velhas colônias, mas tão-somente ajudá-las a se desenvolver, substituindo “uma presença visível por um governo invisível, o dos grandes bancos: Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial etc.(v)” Edward Goldsmith diz que a única solução foi ampliar “nossos” mercados ao Terceiro Mundo, incorporando-os ao sistema industrial, dentro da órbita de “nosso” comércio. E esta é a parte central do que foi a conferência de Bretton Woods, em 1944.

O colonialismo sem colonos é outro fenômeno de dominação, no qual uma nova classe dirigente, autóctone e muito minoritária, enxertada nos grandes bancos, subjuga suas populações. Desse modo, os colonizados puderam livrar-se dos colonos, mas não do imperialismo nem de certos traços do colonialismo.

1 Algumas faltas com a América Latina

O livro negro do colonialismo, ao se referir à América Latina, mantém um silêncio doído sobre a última colônia de nosso continente: Porto Rico. Nenhuma palavra com relação à luta dos independentistas, alguns deles presos nas masmorras estadunidenses há mais de 20 anos. Embora a ilha leve o nome de Estado Livre Associado (ELA), é, na verdade, uma terra submetida inteiramente aos interesses estratégicos de Washington. Isso porque por aí passam algumas das principais rotas marítimas de petróleo que abastecem os Estados Unidos, como também porque Porto Rico está localizado na entrada do Canal do Panamá. Para complicar ainda mais a situação dessa colônia, ela se encontra muito próxima da Cuba socialista. O domínio sobre os assuntos portorriquenhos é tão grande, diz Maldonado-Denis, que já não somos uma neocolônia como a República Dominicana ou o Haiti, senão uma colônia no sentido clássico da palavra (vi).
Já a revolução dos escravos negros no Haiti, a derrota imposta ao exército de Napoleão e a primeira terra a proclamar a sua independência na América Latina são temas tratados no livro. No entanto, perdeu-se a oportunidade de mostrar que Toussaint L’Ouverture, comandando os negros haitianos, derrotou os planos coloniais de Bonaparte e o propósito de conquistar a Luisiânia(vii) . Desse modo, teve participação efetiva na manutenção da integridade territorial e no processo de independência dos Estados Unidos. É óbvio que o orgulho anglo-saxão não reconhece tais fatos.

No livro negro usam-se termos que expressam conceitos polêmicos. Dizer que a América Latina é um Novo Mundo ou que foi descoberta, quando os indígenas estavam aqui há mais de 50 mil anos, é, no mínimo, questionável. Também se chega ao extremo de apresentar como razão da conquista a conversão das nações pagãs ao cristianismo. “A busca do ouro, embora não dissimulada, só vem depois”(viii) . Na verdade, os europeus, como porcos famintos, ansiavam pelo metal precioso.

Dos nove autores que escrevem sobre a África, nenhum deles trata da última colônia existente naquele continente: o Saara Ocidental e a luta da Frente Polisário por sua independência. Todos os anos, na Quarta Comissão da ONU, onde se discute o processo de descolonização, é lembrada o nome da República Árabe do Sahauri Democrática. Os saarauís dizem que são pouco falados na imprensa internacional porque não costumam recorrer ao terrorismo. Por enquanto...

2 A história como arma de dominação

A história, como as outras ciências, será sempre incompleta se não ajudar as pessoas a viverem melhor. Ela tem obrigação de trabalhar em favor dos homens e das mulheres, já que os homens e as mulheres são o objeto primeiro de seu estudo. Por isso, Marc Bloch procurava “compreender o presente pelo passado” e ao mesmo tempo entender “o passado pelo presente”. Dessa maneira, abre-se uma perspectiva para o futuro. Não é ele apenas um historiador, mas também um homem de seu tempo, parecendo-se – como diz o provérbio árabe – muito mais com sua época do que com seus pais.

O colonialismo precisa ser estudado, lembrado e visto para ser vencido em sua nova forma: o imperialismo, o neocolonialismo e a globalização. O livro fala da necessidade de museus que mostrem os mecanismos de dominação e exploração impostos aos colonizados. “Diante das transformações políticas do mundo, os museus têm de evoluir redefinindo suas responsabilidades no seio das sociedades. Os museus da África do Sul, apesar de suas dificuldades orçamentárias, procuram ser a vitrine das mudanças políticas do país que aspira a uma reconciliação”(ix) . Hoje, nos Estados Unidos, existem sete grandes museus sobre o Holocausto. Nenhum sobre escravidão. É hora de fazê-los brotar em todas as partes do mundo.

Nos Países Baixos, o estudo da história ocultou a exploração e as intervenções armadas nas colônias, mostrando, apenas, o lado civilizatório. A história colonial também não atraía os estudantes, não havendo uma imagem histórica do processo de colonização e descolonização. Coube a um grupo de historiadores desencavar os arquivos que mostram os horrores das guerras coloniais.

Já no Portugal salazarista adotou-se, na década de 1930, a estratégia assimilacionista, isto é, o branqueamento da África. Com o fracasso dessa política e os novos ventos do pós-guerra apontando para o fim do colonialismo, Lisboa adere à tese luso-tropicalista do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que mostra a ação colonizadora nas províncias ultramarinas, contrapondo ao discurso da racionalidade econômica um outro, calcado nos valores culturais, civilizacionais e cristãos(x). Somente após a Revolução dos Cravos (1974) os historiadores encontraram ampla liberdade para pesquisar o Portugal que começava no Minho e terminava no Timor Leste.

3 Marcas profundas

O colonialismo deixou um rastro de miséria e sangue na maioria dos lugares por onde passou. As seqüelas são econômicas, políticas, ecológicas, sociais, culturais e militares. De cómo Europa subdesarrolló a Africa é o título do livro de Walter Rodney. Hoje, algumas entidades internacionais começam a discutir formas de devolver, pelo menos, parte da riqueza expropriada. Não basta perdoar as dívidas externas dos países que foram colonizados, mas sim repor o pilhado. A própria cultura dos povos vencidos, quando não destruída, foi levada para as metrópoles. Uma simples visita aos museus das principais cidades européias nos mostra todo um acervo de arte roubado das terras conquistadas. A cada vitória de Napoleão, diz o guia do Museu do Louvre, chegavam obras de todos os lados.

Portanto, se ontem a resistência se deu contra o colonialismo, hoje ela terá de lutar contra o imperialismo, que assume um novo nome: globalização. Isso porque, num futuro muito próximo, algum historiador será compelido a organizar O livro negro da globalização.

Uma observação pontual: o livro traz muitas datas erradas, assim como a paginação do sumário em nada corresponde ao que é apresentado ao longo dos textos.

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i FINKELSTEIN, Norman. A indústria do Holocausto: reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 93-94.
ii FERRO, Marc (Org.). O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, 957 p.
iii CÉSAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme. Presença Africana, 1995.
iv BOXER, Charles. Relações raciais no império colonial português 1415-1825. Porto: Afrontamento, 1977, p. 58-59.
v FERRO, Marc (Org.). Op. cit., p. 35.
vi MALDONADO-DENIS, Manuel. El imperialismo y la dependencia: el caso de Puerto Rico. In: vii GONZALEZ CASANOVA, Pablo (Org.). América Latina: historia de medio siglo. 4. ed. México: Século XXI, 1987, vol. 2, p. 459.
viii GUERRA, Ramiro. La expansión territorial de los Estados Unidos: a expensas de Espanha y de los paises hispanoamericanos. La Habana: Editorial de Ciências Sociais, 1975, p. 69.
ix FERRO, Marc. Op. cit., p. 55.
Ibidem, p. 559.
x RAMPINELLI, Waldir José. As duas faces da moeda: as contribuições de JK e Gilberto Freyre ao colonialismo português. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.

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