Le Monde: Alemanha reduz salários e esmaga classe média
Onze por cento! Isso nunca tinha acontecido desde a inflação de dois dígitos dos "trinta gloriosos", como é chamado o período de forte crescimento econômico na maioria dos países desenvolvidos entre 1945 e 1973. Aliás, 11% foi o aumento das remunerações, que incluiu todas as modalidades, conquistado pelos maquinistas de trens alemães em 13 de janeiro, após vários meses de um conflito social que teve o seu auge com uma paralisia total do tráfego por dois dias, em novembro de 2007. "Nós temos a consciência de estar escrevendo a história", afirma sem hesitação Thomas Huppeld, um dos dirigentes do sindicato GDL em Frankfurt.
Por Daniel Vernet, do Le Monde
Escrever a história? A expressão pode parecer excessiva. Entretanto, ela define adequadamente um movimento social diferente dos outros. Os maquinistas de trens apresentaram uma imagem fora do comum do sindicalismo alemão, distante daqueles "apparatchiks" de terno e gravata que freqüentam os conselhos de administração em nome da co-gestão e negociam de igual para igual com o patronato. Considerada até hoje como o último recurso, a greve também precisa ser tão organizada quanto os relacionamentos sociais. Lênin já havia constatado, não sem ironia, nos anos 1910, que os ferroviários alemães, antes de ocuparem as vias durante um movimento grevista, compravam um tíquete que dava acesso às plataformas.
Nada disso aconteceu desta vez. O que se viu foram estações vazias e milhares de usuários obrigados a ficarem em casa ou a recorrerem a outros meios de transporte. Tudo levava a crer que esses viajantes barrados se mostrariam furiosos diante da falta de respeito pelas convenções sociais, que eles teriam denunciado, da mesma forma que na França onde os ferroviários estavam em greve mais ou menos na mesma época, e tiveram o seu movimento criticado como sendo uma insuportável "transformação do cidadão num refém".
Mas não foi o que aconteceu. A opinião pública alemã deu mostras de uma grande compreensão pelos grevistas. Em todo caso, bem maior do que aquela mostrada pelo Partido Social-Democrata (SPD) e pela grande central sindical DGB. A esquerda moderada enxergou nesta greve um perigo de "corporativismo", um risco de esmigalhamento das reivindicações, além de um questionamento das grandes negociações, categoria por categoria, que fizeram a força do sindicalismo alemão. "Eu não posso aceitar que um grupo de assalariados busque vantagens exclusivamente para si mesmo", explica Jürgen Bothner, um dirigente regional do sindicato dos serviços públicos, o Ver.di. "Isso é muito perigoso, porque alguns desses grupos têm um poder mais importante de causar prejuízos e podem obter resultados mais facilmente do que os outros, em detrimento da solidariedade".
No mundo político, as únicas entidades que apoiaram os grevistas foram o Partido Liberal e a esquerda radical, ambas da oposição à grande coalizão dirigida por Angela Merkel. Nesse sentido, Willi von Ooyen, que encabeçou a lista do Linkspartei (a esquerda radical) nas eleições regionais de Hesse, em 27 de janeiro, afirma não desconhecer os riscos de haver uma greve corporativista, mas sublinha também que o movimento dos maquinistas afirmou a sua "identificação com uma profissão", orgulho da classe operária que tem sido maltratada nos últimos anos pelas diversas formas de trabalho precário.
Este conteúdo simbólico embutido na greve do setor ferroviário explica o amplo apoio que lhe foi dado pela opinião pública. Para muitos alemães, o limite do suportável foi alcançado na soma de todos os sacrifícios que têm sido exigidos ao longo dos últimos quinze anos. No momento em que a chanceler proclama que "o reaquecimento já chegou", poucos chegaram a sentir os seus efeitos. O slogan que foi popularizado por Gerhard Schröder, chanceler de 1998 a 2005 - "quando a indústria alemã vai bem, o operário alemão vai bem", uma versão germânica da expressão francesa "quando a construção civil vai bem, tudo vai bem" - não se verifica mais na atualidade. A idéia tradicional de que um operário especializado da indústria deveria ser bem remunerado foi minada pela globalização, as deslocalizações industriais e o desenvolvimento dos empregos precários. Aliás, segundo um sindicalista, as diversas formas de flexibilidade do trabalho mataram o próprio conceito de profissão.
As estatísticas mostram que a Alemanha se tornou um país de baixos salários, se comparado com outros países europeus. Esta constatação, que contradiz um grande número de clichês, pode ser explicada pela conjunção de diversos fatores, pelas medidas que foram tomadas pelo governo, entre outras a Agenda 2010, que havia sido preparada pela coalizão "Vermelha e Verde" liderada por Gerhard Schröder, e que foi mantida pela grande coalizão dos democrata-cristãos e dos social-democratas.
Ela também pode ser explicada pelo crescimento do desemprego no decorrer dos anos 1990, pelo recurso ao emprego de meio-período, cujas vagas foram multiplicadas por dois em dez anos, os contratos de duração determinada e pela terceirização de certas tarefas. Assalariados que foram demitidos são incentivados a fundarem a sua própria empresa e a fornecerem os seus serviços para o seu antigo empregador, por uma quantia inferior àquela da sua remuneração anterior. Ou ainda, companhias demitem os seus empregados e os recontratam para trabalharem numa filial criada para esta finalidade, com salários mais baixos, horários mais extensos e em condições mais severas.
Esta situação tem como outra conseqüência o enfraquecimento dos sindicatos. Desde os dias que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o modelo alemão (criado então pela Alemanha Ocidental) estava baseado no equilíbrio entre as associações de empregadores e os sindicatos de assalariados. O próprio vocabulário utilizado refletia esta suposta paridade. O tradicional confronto entre os patrões e os trabalhadores colocados frente a frente deixara de existir, sendo substituído por negociações entre os "Arbeitgeber" e os "Arbeitnehmer", os fornecedores de trabalho e os prestadores de trabalho. Esta nova situação foi chamada de "a autonomia dos parceiros sociais". Atualmente, muitas empresas passaram a dispensar este sistema que implicava em convenções coletivas setoriais e regionais, e até mesmo nacionais. O mesmo movimento está incentivando o aparecimento de sindicatos de categorias, tais como o GDL dos maquinistas de trens, que podem chegar a conquistar sucessos pontuais como resultados de conflitos duros, mas que parecem incongruentes no país da greve controlada e do compromisso social.
Dessa forma, vai se concretizando uma ruptura do tecido social consensual que, em conseqüência do milagre econômico do pós-guerra, havia transformado a República Federal numa vasta classe média. Naquela época, não só as diferenças entre os níveis de renda estavam entre as mais reduzidas da Europa Ocidental, como a grande maioria da população também levava um modo de vida homogêneo, que poderia ser qualificado de "pequeno burguês". Havia evidentemente pobres e ricos, mas ninguém era muito pobre ou muito rico, e, em todo caso, os muito ricos não exibiam um modo de vida que ostentava a sua condição. Os sociólogos falavam num "nivelamento social em volta do centro". Hoje, 60% dos alemães continuam se identificando com a classe média, mas o temor do empobrecimento tomou conta desta última. E não é por menos.
"A classe média está derretendo pelas duas pontas", constata o dirigente sindical Jürgen Bothner. "Pelo lado de cima, em que um número reduzido de pessoas vem ganhando cada vez mais, e pelo lado de baixo, no qual um grande número de pessoas vem empobrecendo". Até 2000, os salários nas duas extremidades da escala evoluíam como se fossem duas linhas paralelas. Desde então, as curvas vêm divergindo. Tomando por base o ano de 1992, a renda dos 10% mais ricos da população alemã havia aumentado em 12% em 2000, e em 31% em 2006. Enquanto neste mesmo período, a renda dos 10% mais pobres havia aumentado em 6% em 2000, mas acabou recuando 13% em 2006.
Também em 2000, que foi um ano de forte crescimento econômico (3,2%), o sentimento de equidade estava aumentando. Já, em 2007, apesar de um crescimento de 2,6% e de uma espetacular redução do desemprego, ele está diminuindo. Isso porque os frutos do crescimento estão sendo mal distribuídos, e isso de uma forma que está se tornando cada vez mais aguda. A reforma das alocações de desemprego, associada ao nome do antigo diretor dos recursos humanos da Volkswagen, Peter Hartz, e principalmente a reforma conhecida como Hartz 4, que combina as indenizações de desemprego com formas de ajuda social, acelerou o processo de empobrecimento. O número de crianças pobres, isto é, aquelas cujos pais são obrigados a viver com menos da metade da renda média, alcançou 2,5 milhões. Com a reforma Hartz 4, as famílias recebem a quantia irrisória de 2,39 euros (R$ 6,29) por dia, como ajuda para a alimentação, e de 1,79 euro (R$ 4,71) por mês para a compra de material escolar!
Assim, não surpreende que os salários elevados dos dirigentes de empresa, as stock-options, as indenizações por demissão, e, sobretudo, a atribuição dessas vantagens àqueles que fracassaram em sua missão, choquem o grande público, os homens políticos e as Igrejas, que permanecem até hoje uma força moral e exercem uma missão caritativa oficial. "Aquele que exige sacrifícios dos seus colaboradores deve se perguntar se é judicioso conceder a si mesmo generosos aumentos de salário", declarou o presidente da República, o democrata-cristão Horst Köhler.
Em determinado momento, a chanceler Angela Merkel estudou até mesmo estabelecer um teto para as remunerações dos chefes de empresa. Só que ela não demorou a dar marcha-ré. Mas ela não conseguiu impedir que se desenvolvesse um debate em torno da instauração de um salário mínimo. Alvos de zombaria por parte da oposição liberal, que acreditou detectar na sua iniciativa resquícios do socialismo à moda da Alemanha Oriental, os democrata-cristãos decretaram a implantação de um salário mínimo nos Correios. O SPD recuperou por conta própria a reivindicação sindical de um salário mínimo generalizado a 7,50 euros (R$ 19,75) a hora de trabalho, ou seja, pouco mais de 1.200 euros (R$ 3.160) por mês. O ministro (social-democrata) do trabalho, Olaf Scholz, está preparando uma lei nesse sentido, apesar da oposição do patronato. Este último está agitando a ameaça de uma nova disparada do desemprego e exige que a instauração de salários mínimos por categoria seja decidida por meio da negociação social. Trata-se de uma maneira de recusar o próprio princípio do salário mínimo, uma vez que o número dos assalariados que deixaram de estar cobertos pelas convenções coletivas está crescendo cada vez mais.
Mas isso não impede que o SPD tenha encontrado nesta questão um tema popular - 75% dos alemães se dizem favoráveis a um salário mínimo, segundo informou a revista semanal "Der Spiegel". Nesse sentido, ele se vale desta proposta para marcar a sua diferença em relação ao seu parceiro na grande coalizão e para trazer de volta à atualidade a questão da justiça social, um antigo cavalo de batalha da social-democracia.
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