Caro Karol,
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Foi com um misto de alívio e consternação que o vi partir na noite do passado Sábado. Alívio por saber que chegou ao fim o sofrimento que me incomodava, como a muitos, de cada vez que o via aparecer no écran da minha televisão, qual marioneta nas mãos dos cinzentos cardeais (Ratzingers e outros) que constituem a segunda linha do Vaticano. Consternação por saber que essa ‘entourage’ não lhe permitiria abdicar - fosse ou não essa a sua vontade -, por verem nisso um sinal de fraqueza, de humanidade, quem sabe até um subliminar aceder às práticas da eutanásia. Consternação também por saber que, morto um Papa que fez retroceder a mentalidade vigente na hierarquia da Igreja Católica para os níveis da que vigorava muitos anos antes do Concílio Vaticano II, nada mudará naqueles bastiões do conservadorismo que tão bem soube defender: a subalternização do papel da Mulher na sociedade (a começar pelas funções decorativas que lhe são atribuídas na hierarquia religiosa); a condenação das práticas sexuais não maioritárias; o contributo para a condenação de milhões de seres humanos a uma morte atroz, lenta e agonizante, não só por omissão mas por activamente sufragar a não utilização de métodos de protecção anti-concepcional que poderiam ter salvo essas mesmas vidas da sangria do HIV a que temos assistido na África e noutras regiões da periferia do ‘mundo evangelizado’ (para não falar na sua penetração nas nossas próprias sociedades).
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Consternação, ainda, por ter testemunhado o seu silêncio (ou, nalguns casos, condenação mitigada, que mais não permitiam as boas relações do Vaticano com as grandes potências mundiais) em momentos cruciais do pontificado a que tão mediaticamente soube dar cara: a chacina de 200 mil pessoas na remota - mas, predominantemente, católica! - ilha de Timor Leste; a lenta agonia do povo palestiniano, às mãos do ‘terrorismo de estado’ israelita; o massacre mútuo de Tutsis e Hutus no Ruanda, em 1994; o sofrimento das crianças iraquianas e das mulheres afegãs, antes e depois das intervenções militares ocidentais; as violações dos mais elementares Direitos Humanos (e, com eles, dos valores católicos) nas prisões iraquianas e americanas (Guantánamo), para mencionar apenas alguns casos gritantes.
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Consternação, finalmente, por assistir ao triste espectáculo mediático em que transformaram os últimos dias da sua vida, a sua morte e os ritos fúnebres que se lhe seguirão. Não acredito que tenham sido essas as instruções deixadas pelo homem de ar bondoso e coração aberto ao mundo que vi visitar o meu país por duas vezes.
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Descanse em paz.
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