quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

"Tua raça não morreu, Jim..."


por Fatima Oliveira*

Analistas têm dito que em "O Presidente Negro" Lobato foi clarividente. Engendrou um conflito racial eleitoral em 2228.


Muito esperançosa, estou ligada nas eleições dos Estados Unidos. Foram de muita peleja os anos de Bush Filho. De triste memória: o apoio incondicional ao ideário fundamentalista, a disposição e a prática bélicas do governo dele. Escrevo sob emoção da avalanche do entusiasmo pela vitória do senador Barack Obama nas primárias da Carolina do Sul que, dentre outros, sepulta o mito de que "negro não vota em negro".


O respeito aos ancestrais é sagrado na cultura africana. Ao minimizar o papel do venerado Martin Luther King, dizendo que o sonho dele foi concretizado por Lyndon Johnson, Hillary espezinhou a memória de um mito. Bill Clinton ousou tripudiar: "a mensagem de Obama é um conto de fadas". Obama soube capitalizar os deslizes do casal. Fez bonito ao destacar o apoio multiétnico: "não se trata de escolher segundo a região de cada um, a religião ou o gênero; de ricos contra pobres, jovens contra velhos, nem brancos contra negros. Trata-se do passado contra o futuro". É páreo duro. Duvidar, quem há de?


Intriga-me a citação exaustiva, no Brasil, com status de Nostradamus, de "O Choque das Raças" ou "O Presidente Negro: romance americano do ano 2228" (Monteiro Lobato, 1926). Pra quem ainda não sabe, Lobato compartilhava das falsas teorias científicas racistas de inferioridade dos negros, ideário que permeia sua obra, hegemônicas em seu tempo. O fim do seu romance só poderia ser a extinção da raça negra: "Tua raça morreu, Jim..."


Analistas têm dito que em "O Presidente Negro" Lobato foi clarividente. Engendrou um conflito racial eleitoral em 2228, quando os brancos se dividiram em Partido Masculino e Partido Feminino, possibilitando que o presidente da Associação Negra, Jim Roy, vencesse as eleições. Ganhou, mas não levou! Sequer tomou posse. Morreu antes. Vingativos, os brancos criaram uma tecnologia (raios ômega) que, ao alisar os cabelos dos afro-americanos, os esterilizava. E eles se apresentaram como manadas de bois aos "Postos Desencarapinhantes"! O presidente Kerlog, que era candidato à reeleição, casa-se com a líder do Partido Feminino, Evelyn Astor, e assim recupera o poder. Sem mais comentários.


Maria Ana Quaglino, em tese de doutoramento sobre raça, gênero e identidade nacional na vida e obra de Monteiro Lobato, afirma, no artigo "Noções de raça e eugenia em Monteiro Lobato: vida e obra", que relacionou as representações de raça e eugenia na obra do escritor com as teorias e noções "científicas" que as inspiraram. Todas falsas.


E concluiu: "A obra infantil de Monteiro Lobato há muito envelheceu no que diz respeito a representações de raça, sem que suas reedições tenham o cuidado de alertar o leitor para o fato. A bibliografia que analisa as questões de raça e de eugenia em Monteiro Lobato tende a analisar - quando chega a tanto - apenas parcialmente a vida e a obra do autor. Pouco ou nada trata a respeito da formação 'filosófica' do autor e do impacto desta tanto na sua obra de adultos quanto na obra infantil".


Em carta a Godofredo Rangel (1908), Lobato explicitou a "associação entre miscigenação entre 'raças muito desiguais' e degeneração física e admitia que o regime de segregação adotado nos Estados Unidos fosse a atitude correta para evitar a miscigenação entre brancos e negros no Brasil". Qual o intuito do uso de supostos pendores proféticos agourentos e de alicerces racistas na corrida em curso rumo à Casa Branca?


Se o enredo profetiza algo é o "ganhou, mas não levou", condizente com as concepções de Lobato sobre raça e eugenia e a sua crença na "degeneração racial", pois ele "condena a miscigenação entre brancos e negros, dizendo que este fato produzira uma classe de 'corcundas de Notre-Dame', ao invés da 'beleza grega,' entre as classes populares dos subúrbios do Rio de Janeiro".


Coluna publicada originalmente em:
http://www.otempo.com.br/otempo/noticias/?IdNoticia=68031





*Fatima Oliveira, Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e
Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das
Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005



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in vermelho
30 DE JANEIRO DE 2008 - 13h20

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