sábado, 19 de janeiro de 2008

A matança dos «inocentes», segundo a História do Senhor M. Lima (o rastilho)

Reis, Presidentes e Índios

Cel. Luís Alves de Fraga

Juan Carlos de Espanha é um homem pouco mais velho do que eu (somente mais quatro anos, feitos no dia de ontem). Podemos dizer que somos da mesma geração. Várias diferenças nos separam. As principais são que ele é rei de Espanha e eu sou rei de mim mesmo, ele é o generalíssimo dos Exércitos de Espanha e eu sou um coronel da Força Aérea Portuguesa na situação de reforma, ele tem uma significativa fortuna pessoal e eu vivo de uma parca pensão e do pagamento das aulas que lecciono na Universidade, ele vive num palácio e eu num pequeno apartamento, ele tem empregados para o servirem e eu tenho, duas vezes por semana, uma auxiliar de trabalhos domésticos, para fazer as limpezas e lavagens mais pesadas, ele é convidado para grandes acontecimentos nacionais e internacionais e eu só sou convidado para lançamentos de livros, ele diz-se católico apostólico romano e eu sou agnóstico. Haverá outras diferenças, mas não vale a pena enumerá-las.

Com esta aparentemente longa introdução quero deixar claro que sou capaz de o perceber enquanto homem, porque vivemos as mesmas épocas, os mesmos acontecimentos e, curiosamente, quase teremos frequentado os mesmos ambientes, pois foi criado e educado bem próximo de Lisboa, no Estoril, conhecendo por dentro a ditadura de Salazar enquanto terá estudado a de Francisco Franco.

Há já várias semanas foi notícia, diria, mundial, a célebre interrogação de Juan Carlos a Hugo Chavéz ocorrida na cimeira ibero-americana. Não quis, na altura, pronunciar-me e trazer para aqui a polémica e popular questão, porque era necessário deixar arrefecer as emoções. Julgo que chegou o momento oportuno para os meus habituais leitores tomarem conhecimento do que penso sobre a ocorrência.

Juan Carlos, Rei de Espanha por vontade do generalíssimo Francisco Franco — que assumiu o Poder de forma ilegítima e sanguinária à frente de uma revolta militar contra o Governo republicano, legal e legítimo, o qual, por seu turno, se havia sujeitado ao voto popular depois do rei Afonso XIII ter fugido e deixado cair o trono — é um dos poucos monarcas existentes numa Europa fundamentalmente republicana. As pernas do trono onde se senta Juan Carlos mergulham muito fundo em milhares de mortos resultantes de uma tremenda guerra civil e de uma brutal repressão que se prolongou, em assassinatos políticos, até 1945. Juan Carlos era já, então, um menino crescidinho e com alguma capacidade para perceber o que acontecia no seu país. A Espanha aceita a Monarquia, porque ainda tem bem presente o que foi a guerra fratricida que opôs republicanos a tradicionalistas. A Espanha não discute o regime, porque ainda não sararam por completo as feridas deixadas pela guerra e as perseguições que se lhe seguiram; não discute, porque, acima de tudo, actualmente, na União Europeia, é insignificante e indiferente um Estado ser Monarquia ou República — é o que já está, não vale a pena mudar!

Isto, que é pacífico — ou quase — para os Espanhóis, não o é, todavia, para as antigas colónias americanas. Com efeito, a luta pela independência fez-se, em cada Estado da América, para libertar o território da alçada de uma coroa e para impor um novo ideal de regime que era, no século XIX, o republicano. A República representava, para os Americanos, uma libertação do colonialismo e, ao mesmo tempo, uma entrada na democracia, ou seja, no governo do Povo pelo Povo. O Brasil foi o único Estado sul-americano que se libertou da situação colonial, mantendo um regime monárquico.

Olhando para o imenso Brasil, percebe-se a mistura étnica que por lá ocorreu durante os 300 anos de colonização portuguesa e percebe-se, acima de tudo, que mesmo tendo havido formas de genocídio de índios elas foram atenuadas — graças, em especial à acção da Companhia de Jesus. Por outro lado, percebe-se, também, que a riqueza esteve sempre nas mãos dos colonos ou dos seus descendentes. Contudo, se olharmos para a maioria dos Estados oriundos da colonização espanhola já se não nota um tão elevado grau de miscigenação étnica: há uma bem demarcada diferença entre colonos europeus e índios americanos. Por outro lado, percebe-se que a riqueza está só nas mãos dos descendentes dos colonos europeus e que a pobreza é domínio dos índios. Naturalmente, isto não invalida a existência de pobres entre descendentes de velhos colonos; mas a condição de pobre é apanágio dos índios. Em comum, todos os Estados ibero-americanos têm o facto de a independência ter sido proclamada pelos grupos economicamente dominantes em cada um deles.

Arrumado este aspecto, notemos a curiosidade da seguinte situação: no Brasil foi um filho do Rei quem proclamou a independência; nos Estados colonizados pelos Espanhóis foram os grandes agrários ou os seus representantes quem lutou pela independência. Acresce que Portugal é hoje uma República e a Espanha uma Monarquia — o regime político que oprimiu e colonizou o Brasil já não vigora em Portugal, contudo subsiste em Espanha.

Hugo Chávez, independentemente do seu comportamento político e dos seus ideais sócio-económicos, descende de índios, logo, do grupo social mais oprimido tanto pela antiga metrópole colonizadora como pelos descendentes dos colonos bem instalados. Hugo Chávez é o porta-estandarte de um todo social que foi sendo brutalmente morto, espoliado do seu território e reduzido à miséria. E isto é histórico; isto é a verdade de um comportamento que leva cerca de 500 anos de existência.

Quando o Rei de Espanha interroga o Presidente da República da Venezuela sobre a razão pela qual ele não se cala tem por trás de si, pelo menos, 300 anos de colonização opressora e disso Juan Carlos deveria ter-se lembrado antes de abrir a boca.

Acresce que a discussão entre Zapatero e Chávez resultava da crítica que o segundo vinha fazendo ao sistema neoliberal hoje em desenvolvimento — um sistema que, de novo, está pronto a colonizar e submeter povos e Estados em nome da liberdade de produzir e comerciar. Era uma discussão entre condutores de políticas — já que Chávez, constitucionalmente, é o presidente do Executivo venezuelano — e não entre Chefes de Estados, daí que a intervenção de Juan Carlos tenha pecado, logo, por inoportuna.

É conhecida a tendência espanhola para o tutear — prática que entre nós não é vulgar — no entanto, mesmo que em privado Hugo Chávez e Juan Carlos se tratem por tu, é diplomaticamente incorrecto que o Rei de Espanha tenha tratado um Chefe de Estado soberano e independente por tu. Esse tu, dito naquele momento, naquelas circunstâncias e naquele tom, soa a uma superioridade histórica que não é admissível.

Juan Carlos deixou transparecer o pior de si, da sua geração, da sua arrogância, quando interrogou imperativamente Hugo Chávez que se terá sentido mais índio, mais colonizado, mais subordinado do que o necessário e conveniente. Os povos do mundo inteiro que foram vítimas de colonialismo devem — e com razão — ter-se sentido solidários com o Presidente da Venezuela. Juan Carlos, um Rei aparentemente moderno, deixou cair a máscara da simpatia, do companheirismo e do populismo para se tornar digno de um qualquer seu antecessor tirânico, despótico e arrogante.

À luz da História e por causa de todas as implicações que expus, não ficaria mal a Juan Carlos apresentar um pedido formal de desculpas a Hugo Chávez ou, por um qualquer outro processo, mostrar ao mundo que sentia o peso do seu erro enquanto homem, Chefe de Estado e descendente de uma família com velhos pergaminhos.


Será que temos de continuar a admitir que de Espanha não nos chega nem bom vento nem bom casamento?

Cel. Luís Alves de Fraga

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