domingo, 27 de janeiro de 2008

O livro negro de Courtois & Cia.

O livro negro de Courtois & Cia.

Por JOSÉ CASANOVA
Membro da Comissão Política


Com o aparato mediático adequado às circunstâncias, chegou de Paris a cègada do "Livro negro do comunismo". Encabeçada pelo seu coordenador-mor - um tal Stephane Courtois, óbviamente "especialista na história do comunismo" - a carnavalesca função, cumprindo a tarefa de que estava incumbida , fartou-se de reinar : repetindo o espectáculo que já havia dado noutros países, correu quase tudo quanto se diz ser órgão de informação e o coordenador Courtois foi "entrevistado" à maneira, dando azo a que fossem produzidas mais algumas páginas negras dos negros tempos que vive a comunicação social actual. A cègada contou com uma claque local de se lhe tirar o chapéu e donde emergiam, aguerridos e belicosos, os consagrados Pacheco Pereira e Zita Seabra.

A Courtois e à sua troupe coube a tarefa de sentar o comunismo e os comunistas, globalmente, num banco de réus fabricado não sei se na França se nos EUA. Ao inevitável Pacheco foi distribuído o honroso e duplo encargo de repetir globalmente Courtois e de condenar, particularmente, os comunistas portugueses - encargo que ele, qual Dupont, na primeira parte da prestação e qual Silva Caldeira (no Plenário da Boa Hora), na segunda -cumpriu exemplarmente, como é seu timbre. Assim ascendeu Pacheco à altura historiográfica "do Stephane", como ele costuma chamar-lhe, colegas que são nas comuns andanças de falsificação da História como pode comprovar quem se der ao trabalho de ler as revistas gémeas que deram à luz :"Communisme" e "Estudos sobre o comunismo".

Courtois e Pacheco fazem parte de uma leva de estoriadores especialistas na fusão da investigação histórica com as mais modernas técnicas de publicidade. Ao que tudo indica contando com poderosos apoios e, como é visível, dispondo de fácil acesso à comunicação social dominante, se mais resultados não obtêm é porque a História, essa ingrata, não os ajuda. Observando esta mancha de "especialistas na história do comunismo" que, nos últimos anos, tem alastrado pelo mundo, pergunto-me se, entre eles, há algum que não tenha sido, antes, comunista ou esquerdista, se há algum que não seja vira-casacas, arrependido, ex..."ex-pecadores" e "peritos", como lhes chama Chomsky - peritos cujo destaque se deve essencialmente à utilidade que têm para quem os quer, e por isso os nomeou, "peritos"...

Este "livro negro" parece ter origem na necessidade (sentida por quem, eventualmente, o encomendou a Courtois e a outros Pachecos) de criminalizar o comunismo, e os comunistas - objectivo que, se alcançado, teria ainda a suprema vantagem de passar uma esponja sobre os crimes passados, presentes e futuros do capitalismo. Para isso, há que reconhecer que Courtois & Cia. seguiram o melhor caminho, a saber: o de, sempre negando que o estão a fazer, procurar comparar e identificar comunismo e nazismo a partir da comparação entre o número de mortos resultante do nazismo e o que, segundo as "estimativas pessoais" de Courtois, é da responsabilidade do comunismo. Mas tantas e tão grandes são as dificuldades em bem cumprir a tarefa que se veem em palpos de aranha para a levar a bom termo.

Assim, Courtois, sublinhando incisivamente que não é seu propósito fazer tal comparação, confessa que "os factos são teimosos" (...) "e mostram que os regimes comunistas cometeram crimes que "(segundo as suas "estimativas pessoais") "afectaram 100 milhões de pessoas" (ou, melhor dizendo:"cerca de 100 milhões"; ou, dizendo com mais rigor: entre 60 e 100 milhões; ou, mais precisamente...) "contra os cerca de 25 milhões do nazismo". Na deslizante "estimativa pessoal" de Courtois cabe tudo o que a Courtois interessa que caiba: pode dizer-se que, para ele, o comunismo é responsável por práticamente todas as mortes ocorridas desde 1917 em todo o mundo - exceptuando, para poder ter um termo de comparação, os 25 milhões de vítimas do nazismo. O estoriador inclui nas "vítimas do comunismo", por exemplo, todas as mortes ocorridas em Angola e na Nicarágua(incluindo as vítimas do terrorismo da Unita e dos Contra); todos os mortos do Cambodja (incluindo as vítimas de Pol Pot apoiado pelos EUA e as que resultaram do derrube de Pol Pot pelos vietnamitas...); os milhões de pessoas que morreram de fome em resultado da agressão externa organizada contra a Revolução de Outubro; e estou em crer que a "estimativa" de Courtois inclui igualmente todos os que, honrando a sua condição de comunistas, morreram lutando pela liberdade e pela democracia - quem é que os mandou ser comunistas, lutar por uma sociedade nova, combater a tirania e a opressão, não é verdade?...

Enquanto isso, Pacheco, este original Dupont português, interroga-se: "Há diferenças entre comunismo e nazismo?"e, sempre courtoismente original, responde-se: "sim", mas trata-se de diferenças "comparáveis"...A verdade de Pacheco é que "o comunismo matou mais que o nazismo" pelo que "o Stephane" tem carradas de razão ao expressar o seu protesto pelo facto de não ter havido ainda um tribunal de Nuremberga para julgar os comunistas.

Definindo como "genocídio de raça" e "genocídio de classe" "os crimes cometidos pelo nazismo e pelo comunismo", respectivamente, Courtois estabelece a equivalência entre ambos considerando que os dois são filhos das malvadas "ideologias". E o impagável Pacheco complementa profundamente o profundo pensamento do Dupond francês: "De 1917 até hoje, a experiência das ideologias foi essencialmente a do comunismo e do nazismo". Ou seja: ideologia capitalista é coisa inexistente o que dá um jeitão aos consagrados estoriadores na medida em que ficam dispensados de, como a honestidade intelectual lhes impunha, culpabilizar o capitalismo pelos seus crimes, pelos milhões e milhões e milhões de mortos de que é responsável nos vários séculos da sua existência e nos quais devem ser incluídos os crimes do nazismo nas várias expressões que assumiu. E a história de cada país é, como sabemos, um livro negro do capitalismo.

Assim sendo, ficam igualmente com as mãos livres, embora sujas, para estabelecer a comparação que mais interessa aos seus desígnios e fugir à única comparação possível de considerar nestas circunstâncias: a comparação entre comunismo e capitalismo.

Divertida é a incontida irritação dos assanhados estoriadores pelas "incompreensões" de que são vítimas. Desgosta-os e enerva-os o facto de "os crimes hitlerianos" terem o eco que têm na opinião pública mundial enquanto que, e por mais voltas que dêm, "os crimes comunistas" não gozam de tal eco. Porquê?, perguntam-se os tristes. E, não encontrando resposta nova para a cruel pergunta, ei-los recorrendo, mais coisa menos coisa, vejam bem!, ao arsenal argumentativo dos hilariantes tenores salazaristas ... Pacheco, talvez por efeito de menor traquejo em relação a Courtois, ainda tenta uma explicação: "Raras vezes foi a direita que históricamente denunciou a dimensão e o significado dos crimes do comunismo" - mas fica-se por aqui, talvez por lhe ter acudido a ideia de que, à direita, mais do que ser ela a cumprir esse papel lhe interessa que ele seja cumprido por ex-comunistas e ex-esquerdistas... (Afinal para que é que servem os pachecos e os courtois se não para isso?...). No entanto, estrebuchando ainda um desesperado lamento, pergunta-se por que razão é que, por exemplo, a palavra "antifascista" é "entendida como uma medalha" e a palavra "anticomunista" é "entendida como um anátema". E indignado com tamanha incompreensão das gentes, saca outra ocorrência exemplar lembrando "a tempestade" que Reagan provocou quando chamou à URSS "o império do mal"... e é já no meio de gritos e soluços convulsivos, e arrancando mãos cheias de pelos das suas brancas barbas que, sem perceber nada de nada, geme este gemido lúgubre: "Tivesse ele assim falado do nazismo haveria alguém que não o congratulasse?". Haveria - permito-me responder - haveria, pelo menos, o puro , o impoluto, o indefectível Pacheco.

Os autores globais e os divulgadores locais desta coisa abjecta que dá pelo nome de "Livro negro do comunismo" sabem que estão envolvidos num vergonhoso processo de falsificação da História que visa ilibar os crimes do capitalismo através da vergonhosa equivalência que estabelecem entre comunismo e nazismo.

Sem dúvida, em nome do comunismo foram cometidos crimes que os próprios comunistas não se eximem de condenar - crimes que representam, contudo, uma diferença substancial entre comunismo e capitalismo, seja qual for a expressão que este assuma: é que, enquanto no comunismo, os crimes resultaram de preversões e de afrontamentos dos valores e dos ideais que impulsionaram a luta generosa e abnegada de milhões de militantes comunistas - no capitalismo (seja qual for a expressão que assuma, repito), a opressão, a exploração, o crime constituem essência do próprio sistema.

Se a URSS e o seu Exército Vermelho tivessem sido derrotados na 2ª Guerra Mundial, a Europa e possivelmente o Mundo viveriam hoje sob a pata nazi. E se assim fosse, nós, comunistas, estaríamos no lugar que nos compete: lutando pela democracia, pela liberdade, pelos direitos do homem - e certamente constituindo alvos preferenciais dos courtois, dos pachecos & cia.


«Avante!» Nº 1303 - 19.Novembro.1998

Sem comentários: